Transformador ou doutrinador? Saiba quem foi Paulo Freire

Pedagogo pernambucano é acusado de querer implementar “doutrina ideológica de esquerda” nas escolas. Veja a opinião de especialistas sobre o assunto

por Adige Silva ter, 15/01/2019 - 17:51

“Eu sou um intelectual que não tem medo de ser amoroso. Amo as gentes e amo o mundo. E é porque amo as pessoas e amo o mundo que eu brigo para que a justiça social se implante antes da caridade”. É assim que o próprio Paulo Freire se descreve, em uma das suas tantas frases famosas. Desde 2012, o educador é considerado o patrono da educação brasileira. Acusado de ser um "doutrinador comunista" por membros do atual governo Bolsonaro, o pedagogo é o único brasileiro a estar entre os 100 mais citados no Google Scholar - ferramenta de pesquisa para literatura acadêmica, na língua inglesa. Mas afinal, quem foi Paulo Freire? 

Para Agostinho da Silva Rosas, professor da Universidade de Pernambuco (UPE) e ex-presidente do Centro Paulo Freire de Estudos e Pesquisas, Freire foi um homem a frente de seu tempo. “Paulo Freire foi um homem que pensou a sociedade em um tempo de censura e que se arrasta com uma perspectiva profunda de libertação dos povos. Eu estou cada vez mais convencido que Paulo Freire é uma referência mundial para a paz, para aprendermos a viver na diferença”, exalta o docente.

Nascido em Pernambuco, no ano de 1921, Paulo Freire e sua obra são mundialmente conhecidos por seu método alternativo de educação e alfabetização de jovens e adultos. O prestígio mundial veio por meio do seu método aplicado na cidade de Angicos, interior do Rio Grande do Norte. No ano de 1962, Freire alfabetizou, em menos 40 horas, 300 pessoas entre iletrados jovens e adultos. Segundo ele, os homens aprenderam a ler, escrever e a discutir os “problemas brasileiros”.

Na ocasião, que ficou conhecida como “40 horas em Angicos”, Freire utilizou de “palavras geradoras”, baseadas na experiência de vida dos alunos para acelerar o processo de alfabetização. Por exemplo, um pedreiro tem mais familiaridade com palavras como ‘tijolo’, ‘casa’ e ‘obra’. A partir disso, o estudante começava a decodificar a fonética das palavras e a ampliar seu repertório.

“A perspectiva freiriana, quando ele trabalha com a educação de adultos incrementando o estudo político, possibilita pensar a dinâmica do processo de alfabetização muito à frente do domínio da palavra, seja ela falada ou escrita”, explica Agostinho.

Com o feito, Freire foi indicado ao posto de Coordenador do Plano Nacional de Alfabetização, pelo então presidente João Goulart, em 1964. Porém, o decreto teve vida curta. A intervenção militar realizada no mês de abril daquele mesmo ano, porém, extinguiu o plano e deixou o educador preso. Tempos depois, ele decide se exilar, retornando ao Brasil só em 1980. "A Embaixada da Bolívia foi a única que o aceitou como refugiado político. Em setembro de 1964, Paulo Freire deixa o Brasil rumo ao exílio", afirma, em nota, o Instituto Paulo Freire. Durante o período do regime militar, seus ensinamentos foram amplamente combatidos e censurados, sobre acusações de serem subversivos e de origem comunista.

 Segundo Agostinho, o fato explica o motivo pelo qual certa parcela da população, atualmente, o acusar de querer implementar uma suposta doutrina ideológica de esquerda nas escolas. Para o docente, as acusações são feitas por falta de conhecimento da vida e obra do autor. “A ideia de acusar Paulo Freire de um retrógado ou de qualquer tema nesse sentido é um atestado a falta de conhecimento, de uma leitura autêntica, autônoma e inadequada da vida e obra dele”, afirma.

Uma das hipóteses apontadas pelo instituto para a acusação de "comunismo" é o fato de que uma das ideias de Paulo Freire era de que a educação transformava as pessoas e as pessoas transformadas, por consequência, tinham o poder de transformar o mundo. "Se a população começar a ter acesso a uma educação problematizadora, que questiona a desigualdade social e econômica, os privilégios das elites, que questiona a ausência de mecanismos de controle social, por exemplo, sobre a mídia e sobre o sistema financeiro, que questiona a injustiça social e todas as formas de preconceito e de discriminação", salienta o instituto.

Agostinho é ainda mais duro na hora de descrever quem profere tais críticas. “Quem acusa Paulo Freire desta maneira tem medo. Tem medo da liberdade, da diversidade, do diálogo, da autonomia, da libertação dos povos. É a única coisa que eu posso especular”, finaliza.     

Com o fim da ditadura militar no Brasil, em 1980, Freire volta ao País e começa a lecionar na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Neste mesmo ano, o autor publicou sua obra mais emblemática, escrita nos tempos de exílio. Na “Pedagogia do Oprimido”, um dos livros mais citados em obras acadêmicas no mundo, Freire critica o então modelo vigente de ensino, o chamando de “Educação Bancária”. Segundo ele, por sua posição privilegiada, os professores acabam por oprimir os estudantes. Ele salienta, ainda, que os professores tratam os alunos como simples depósitos de informação, que por sua vez absorvem dócilmente os assuntos abordados.

A pedagogia desenvolvida por ele vai na contramão disso. Segundo o escritor, a pedagogia do oprimido tem como “tônica incentivar nos educandos a curiosidade, o espírito investigador, a criatividade”. Para Socorro Vital, coordenadora pedagógica da UNINASSAU Fortaleza, a obra promove uma forma de ensino na qual todos os envolvidos no processo de educação aprendem.     

“Na hora que ele prega essa nova filosofia, ele tira o poder do professor. O professor deixa de ser o detentor do saber, do conhecimento, da verdade absoluta. A partir disso, é proposta uma educação onde ambos aprendem. Tanto professor vai aprender com o aluno, quanto o aluno vai aprender com o professor”, explica a pedagoga. 

  Para a Socorro, além de otimizar o sistema educacional, o estudo tem como objetivo tornar os alunos um ser político consciente e ativo. “No livro, ele fala que existe o opressor e existe o oprimido. E até que ponto esse oprimido se deixa oprimir realmente. O que fazer para sair dessa opressão, para que esse oprimido passe ter vez e voz dentro da sociedade”, explica a especialista.   

Paulo Freire faleceu em 1997, no estado de São Paulo, aos 75 anos. Quase 21 anos depois de sua morte, o educador continua sendo homenageado e questionado durantes os anos. Para Agostinho, as críticas, soam com certa normalidade. “Eu vejo como normal, Paulo Freire não era implacável nos acertos. Era uma pessoa comum, como qualquer outra. Uma pessoa humana, não livre de erros”, pondera.

Legado no Exterior    

Paulo Freire é um dos acadêmicos brasileiros mais prestigiados no mundo. O pedagogo ganhou 41 títulos de doutor honoris causa de universidades estrangeiras, como Havard, Oxford, Cambridge, Genebra, Estocolmo e Lisboa. O livro Pedagogia do Oprimido é o terceiro mais citado em trabalhos acadêmicos do mundo na área das ciências humanas, segundo levantamento feito pelo pesquisador Elliott Green, educador da Escola de Economia e Ciência Política de Londres (ING).   

A Finlândia, considerada como um dos países com melhor qualidade educacional do mundo, conta com um instituto exclusivo para discutir a obra do escritor. Em seu site, a iniciativa disponibiliza três livros com artigos do educador traduzidos para o finlandês. Ao total, a publicação obteve cerca de 17 mil downloads. Institutos semelhantes ao encontrado na Filândia podem ser encontrados na Suécia, Inglaterra, África do Sul, entre outros países de todo o mundo. 

Na Suécia, Freire aparece em um monumento público. A obra “Depois do Banho” é feite em uma peça de pedra-sabão esculpida entre 1971 e 1976, pela artista Pye Engström. Ao lado de Freire, aparecem outras personalidades políticas, como Pablo Neruda, Sara Lidman e Elise Ottesen-Jensen.   

Porém, assim como no Brasil, a obra Freiriana está longe de ser unanimidade. Em 1970, John L. Elias, então pedagogo da Universidade de Nova Jersey, nos Estados Unidos, questionou o sentido da obra de Freire. “A teoria da aprendizagem de Freire está subordinada a propósitos políticos e sociais. Tal teoria se abre para acusações de doutrinação e manipulação. A teoria de Freire da aprendizagem é doutrinária e manipuladora?", questionou Elias.   

Ainda segundo o pedagogo norte-americano, Freire observava os sistemas educacionais da época como “principal meio que as elites opressoras usam para dominar as massas". "Conhecimento e aprendizado são políticos para Freire, porque eles são o poder para aqueles que os geram, como são para aqueles que os usam”, provoca.

COMENTÁRIOS dos leitores