Na cadeia, detentos apostam em notas altas no Enem

Apesar das feridas do sistema prisional, reeducandos investem nos estudos sonhando em ingressar na universidade. Veja como eles estão se preparando

por Nathan Santos qui, 12/09/2019 - 16:27

Em 2018, mais de 40 mil reeducandos foram inscritos no Enem prisional. Provas deste ano serão em dezembro. Foto: Rafael Bandeira/LeiaJáImagens

O sol é inquieto. Insiste em enviar seus raios em direção às estreitas brechas de dezenas de grades. Tenta, a todo custo, iluminar um vasto corredor onde centenas de homens circulam de um canto para o outro. A estrela maior, imponente do lado de fora, age como uma representação concreta do ditado “Ainda há luz no fim do túnel”. Na área interna da cadeia, contudo, o imponente muda de forma: aos olhos de presos, abandona o formato circular e passa a nascer quadrado. Sob resquícios de luzes que tentam transcender a fortaleza, detentos buscam o próprio brilho em uma jornada pela liberdade e, principalmente, em prol da sobrevivência. Nessa corrida por dias melhores, alguns reeducandos, assim como o sol, lutam para irradiar suas conquistas, ao acreditarem na educação mesmo diante de muros, celas e do traiçoeiro mundo do crime.

Olhares ao chão, mãos para trás mesmo sem algemas. Passos cuidadosos, respeitosos cumprimentos. As regras do presídio, definidas pelos próprios detentos, exigem cordialidade com as visitas, desde que não sejam indesejáveis. Da entrada principal da prisão à unidade escolar instalada em meio à cadeia, a caminhada da reportagem do LeiaJá é marota, porém tensa, uma vez que o sistema prisional vive sempre em alerta sob o risco de explosão de motins ou rebeliões. Porém, durante a nossa visita ao Presídio de Igarassu (PIG), na Região Metropolitana do Recife, presenciamos presos que se rebelam contra a inércia e que demonstram valor à educação como estratégia de ressocialização. Na unidade, existem 620 estudantes matriculados na Escola Estadual Dom Helder Câmara, que funciona nas dependências do próprio presídio, atendendo presos do ensino fundamental ao nível médio. De acordo com a direção do PIG, desse total, cerca de 500 vão às aulas frequentemente, nos turnos da manhã e tarde. Ao adicionarmos detentos que já finalizaram o ensino médio, estima-se que em torno de mil reeducandos do Presídio de Igarassu farão as provas do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) para pessoas privadas de liberdade (PPL), marcadas para os dias 10 e 11 de dezembro deste ano.

Segundo o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), órgão responsável pela aplicação do Enem em todo o Brasil, o Exame para PPL também serve de ferramenta avaliativa e pode proporcionar notas que beneficiem os reeducandos - na ampla concorrência - em programas que utilizam o resultado da prova, tais como o Programa Universidade Para Todos (ProUni) e o Sistema de Seleção Unificada (Sisu). O órgão, contudo, informou ao LeiaJá que não acompanha e não realiza balanço dos detentos com notas que propiciam acesso a cursos de graduação, uma vez que, segundo o Inep, o ingresso na universidade depende de ordem judicial.

“O Enem PPL, para pessoas privadas de liberdade e jovens sob medida socioeducativa que inclua privação de liberdade, também visa a avaliação do desempenho escolar ao final da Educação Básica e o acesso à Educação Superior, além de contribuir para elevar a escolaridade da população prisional. Desde 2011, é realizado anualmente pelo Inep, em parceria com Ministério da Justiça e Segurança Pública, por meio do Departamento Penitenciário Nacional do Ministério da Justiça e Cidadania (Depen). As provas do Enem PPL têm o mesmo nível de dificuldade do Enem regular. A única diferença é a aplicação dentro de unidades prisionais, incluindo penitenciárias, cadeias públicas, centro de detenção provisória e instituições de medidas socioeducativas. A aplicação é posterior ao Enem regular e ocorre em dias úteis. Os participantes, com idade a partir de 18 anos, podem utilizar o desempenho no exame como mecanismo único, alternativo ou complementar para acesso à educação superior. Já os participantes menores de 18 anos, considerados treineiros, podem utilizar os resultados individuais para a autoavaliação de conhecimentos”, detalha o Inep.

À noite, pavilhão. No raiar do sol, escola 

A preparação para o Exame Nacional do Ensino Médio é dura dentro e fora do presídio. A prova tradicional para pessoas livres – marcada para os dias 3 e 10 de novembro -, considerada o principal canal de acesso às universidades brasileiras, recebeu mais de 5 milhões de inscritos. A concorrência exige séria dedicação aos estudos. Por outro lado, o Inep não estima quantos presidiários farão o Enem PPL em 2019; na edição do ano passado, 41.028 detentos foram inscritos no Exame pelas direções prisionais; 29.609 compareceram às provas, segundo o Inep.

No presídio, a escola é um oásis diante dos entraves do sistema carcerário. Para muitos reeducandos, sair por algumas horas dos pavilhões - locais onda há celas e dormidas improvisadas, chamadas de barracos - é sinônimo de alento. Superlotação, conversas sobre crimes, calor e barulho integram a lista de empecilhos para os que tentam dedicar atenção aos livros. “No pavilhão não dá para estudar, é muito barulho”, confirma o detento *João Peixoto, 47 anos, dos quais 23 são sob a pena do regime fechado. Sedento por um bom desempenho no Enem, João revela que, antes de se envolver em um crime, trabalhou como professor de física e matemática em colégios relevantes do Recife, chegando, inclusive, a lecionar em uma universidade pública.

O docente, antes com a missão de compartilhar conhecimento entre seus alunos, hoje divide o pão da sabedoria com companheiros de cela, além de revisar os assuntos cobrados no Enem. “Na rua, sou professor universitário. Na área de matemática dava aula de cálculo e estatística. Próximo ano estou indo embora e por isso quero retomar as minhas atividades. Pretendo fazer outro curso superior em direito, porque me identifiquei muito vendo a realidade do sistema presidiário, percebendo as distorções da Justiça. Existem muitas pessoas sentenciadas de forma errônea pela Justiça. Não me deram o direito de recorrer, por exemplo. Aqui dentro tive muito apoio do nosso gestor e de outras pessoas que me incentivam; me mandam para a biblioteca, que é um espaço agradável e tranquilo, no qual me identifico muito. Não só leio a minha área, vejo outras também, e por isso estou muito atualizado. Já fiz o Enem três vezes; no primeiro ano fiquei com 928 pontos em 2015; depois, em 2016, fiquei com 892 pontos e no ano passado tive 740 pontos; deu uma caída porque estou com problema na visão”, relata João.

O reeducando afirma que toda sua bagagem profissional não é sinônimo de superioridade no universo prisional. Na cadeia, diploma não o faz melhor que ninguém. O ex-professor é um dos 4.127 detentos do Presídio de Igarassu, cuja capacidade é para apenas 426 pessoas. Em busca de um bom desempenho no Enem, João dedica, no mínimo, três horas do seu dia a leituras na biblioteca do presídio. Otimista, ele acredita que alcançará, na edição 2019, uma nota superior a 800 pontos, além de arriscar quais assuntos de matemática e física deverão ser cobrados no Exame. “Acho que o Enem é um exame clássico, não deve mudar muita coisa. Na parte de física, a prova será dividida em 50% de mecânica, 30% de eletricidade e 20% de termologia. Matemática acho que vai enfatizar muito a parte de geometria. Quero de 800 pontos para lá”, diz o reeducando.

Fotos: Rafael Bandeira/LeiaJáImagens

Crítico, João acredita que a justiça brasileira deve ser maleável quanto aos presos que podem, por meio das notas do Enem, ingressar em uma universidade. “Já mandei várias cartas para o Tribunal de Justiça de Pernambuco e para a Seres (Secretaria Executiva de Ressocialização), pedindo para que as pessoas, mesmo em regime fechado, possam sair diariamente para estudar de forma monitorada. Teve gente aqui com nota até para medicina. Eu liberaria mesmo no regime fechado”, opina o preso.

João Peixoto, amargando uma pena de mais de duas décadas entre grades, define a sua prisão como uma “tragédia”. “Para mim foi muito duro, foi uma tragédia na minha vida. Costumo dizer aos meus amigos que não sou um bandido, sou um criminoso, cometi um crime em uma ação de legítima defesa. A Justiça foi muito dura comigo”, diz. Mas ao comentar sua participação no Enem, o discurso ganha tons esperançosos. “Pretendo dar uma guinada na minha vida”, finaliza.

Liberdade ao menos para os sonhos

O ócio é cruel no sistema carcerário. Muitas vezes, dá margem para pensamentos e atitudes maléficas. A preparação para o Enem PPL, contudo, surge como uma rota de fuga. Na cadeia, ter a mente ocupada é fundamental para que ela não se torne “oficina do diabo”. *Paulo Santos, 37 anos, lamenta sua passagem pelo sistema prisional. “Foi a primeira e se Deus quiser a última vez que estou preso”, diz. Por outro lado, reconhece que na cadeia teve a oportunidade de finalizar o ensino médio e, agora, enfrentará as questões do Enem mirando aprovação em um curso de nível superior.

Em meio a grades e muros, apenas os sonhos têm liberdade. “Meu sonho é passar em educação física, porque é uma área que me chama muita atenção. Não vejo diferença na estrutura de uma escola daqui para uma de fora. Acho que aqui os alunos se dedicam mais. Gosto mais de física, matemática, português e inglês, além da própria educação física”, relata o reeducando, há três anos cumprindo pena em regime fechado. “Vai ser minha segunda vez no Enem. Todos os dias estou lendo, tentando me aprimorar em alguma coisa, focando mais em redação. Prefiro fazer minhas leituras na escola, porque, realmente, é muito difícil estudar no pavilhão, pois nossa atenção é tirada, há muita rotatividade de reeducandos, há dificuldade na hora do alimento”, acrescenta Santos.

Presídio de Igarassu, na Região Metropolitana do Recife. Foto: Rafael Bandeira/LeiaJáImagens

Esperançoso, o detento ainda valoriza os estudos no presídio e aposta em uma nota no Exame Nacional do Ensino Médio: “Se estou tendo a oportunidade de estudar aqui, por que vou esperar chegar lá fora? Pretendo chegar em 900”.

Assim como seus companheiros de presídio, *Thiago Santana acredita que o Enem pode ser uma alternativa viável de ressocialização. Para ele, a prova traz esperança de recomeço, já que a aprovação em um curso superior abre as portas para uma formação profissional. Antes de ser preso, o rapaz de 25 anos cursava sistemas da informação; agora, confiante em um bom desempenho no Enem, Thiago sonha em ingressar em uma qualificação na área de análise de sistemas.

Mesmo amargando a prisão, Thiago acredita que aprendeu várias lições na cadeia. “A escola do presídio ensina mais. Na escola da rua, a gente tinha várias oportunidades e não aproveitava. Eu mesmo estudei nos melhores colégios de Olinda e muitas vezes gazeava aula. São muitos momentos da nossa vida que a gente acaba perdendo e lá na frente pagamos pelos erros. Aqui, no presídio, eu aprendi a dar valor às coisas”, reflete.

Santana é otimista quanto ao seu desempenho no Enem PPL e afirma que sua preparação, regada a cerca de três horas de estudos diárias, está sendo bem feita. “Nunca relaxei no meu dia a dia, sempre gostei de ser aquele cara atualizado. O que me motiva mais ainda é a minha liberdade. Minha expectativa para o Enem é ótima, arrisco uma nota acima de sete”, projeta.

*Sandro Ferreira, de 25 anos, está no segundo ano do ensino médio. O jovem estuda na escola instalada no Presídio de Igarassu visando participar do Enem na condição de treineiro. Reforçando o discurso dos companheiros, Ferreira diz que, no pavilhão, é praticamente impossível dedicar atenção aos livros, sendo a escola um refúgio para os presos que acreditam na força da educação. “Depois que comecei a estudar a vida ficou melhor. No pavilhão a gente não tem em o que pensar. A rotina é um pouco complicada, é questão de cadeia, tem a comida, água, entende? Realmente quem quer estudar tem que ficar em um canto, mas é impossível que alguém não te interrompa. Na escola não, é como se a gente estivesse na rua. Pretendo cursar história ou direito”, relata o reeducando.

Diretor da Escola Estadual Dom Helder Câmara, Wagner Cadete garante que o nível das questões do Enem prisional é igual à prova tradicional. No entanto, o educador reconhece que o nível de escolaridades dos detentos é baixo, assim como em outras unidades prisionais do País.

“A oferta de educação é proporcionada para quem não concluiu o ensino fundamental ou médio. Oferecemos a Educação de Jovens e Adultos. A gente também cria espaços para que pessoas que já concluíram o ensino médio estudem para o Enem na nossa biblioteca. Quem já tem o ensino médio pode formar grupos para criar a condição de se preparar”, garante Cadete. “É uma regra a baixa escolaridade. A relação de muitos com a escola sempre foi fragilizada e isso para o professor que está no dia a dia da rotina pedagógica se torna um desafio a mais. Assim, o professor precisa ter mais ações pedagógicas”, complementa.

De acordo com o diretor, há algumas exigências para que detentos sejam inscritos no Enem PPL. Ter CPF é uma delas, bem como o participante deve estar no ensino médio ou ter concluído esse nível. Atualmente, o PIG conta com 12 docentes.

*Nomes fictícios - personagens preferiram não revelar suas identidades

A questão é chegar à universidade

Segundo a superintendente de capacitação e ressocialização da Seres, Valéria Fernandes, um detento com nota suficiente para chegar a uma instituição de ensino via Enem depende de autorização judicial. “Na maioria das vezes, quando tem nota para cursar, não são todos que saem. Os do semiaberto são mais fáceis de sair”, explica. Questionada se existe um acompanhamento ou levantamento sobre os reeducandos que conseguiram ingressar na universidade, a gestora diz que não há balanço sobre os dados.

O LeiaJá questionou o Departamento Penitenciário Nacional (Depen), do Ministério da Justiça, sobre possíveis números de reeducandos que, por meio do Enem PPL, conseguiram ingressar no ensino superior. As respostas do Depen, por meio da sua assessoria de comunicação, indicam que o governo federal, até então, não possui um balanço oficial. Confira:

LJ - Nas últimas duas edições do Enem prisional, quantos reeducandos alcançaram notas que garantiam aprovação em cursos via Sisu e ProUni?

Depen: O dado que o Inep repassa ao Depen é apenas o número de inscritos. A aprovação não depende apenas de nota única. Para o Sisu, a nota que dá garantia de vaga na graduação depende do curso pretendido, por isso é difícil esse acompanhamento.

LJ - Também sobre os últimos dois anos, dos reeducandos que garantiram nota para aprovação, quantos, sob liberação judicial, conseguiram ingressar nas graduações?

Depen: Não possuímos dados sobre liberações judiciais para graduação.

LJ - O Depen tem o número de presos que, ainda na unidade prisional, conseguiram aprovação e, posteriormente, concluíram suas graduações nos últimos cinco anos? Se sim, qual é o número? Qual o índice de evasão?

Depen: Não possuímos esses dados

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