Gustavo Krause

Gustavo Krause

Livre Pensar

Perfil: Professor Titular da Cadeira de Legislação Tributaria, é ex-ministro de Estado do Meio Ambiente, dos Recursos Hídricos e da Amazônia Legal, no Governo Fernando Henrique, e da fazenda no Governo Itamar Franco, além de já ter ocupado diversos cargos públicos em Pernambuco, onde já foi prefeito da Capital e Governador do Estado.

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A Copa, o Gol e o Voto (I)

Gustavo Krause, | seg, 19/05/2014 - 13:09
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Nas Copas do Mundo, futebol e política andam juntos. O que difere é a finalidade e a intensidade com que são usados. No Brasil, análises e opiniões se dividem sobre a influência dos resultados nos campos sobre a decisão do eleitor nas urnas. O debate esquentou por aqui. O tema será tratado em dois artigos.

Além das funções organizadora e reguladora, a FIFA exerce um papel eminentemente político (209 filiados, 16 a mais do que a ONU). É detentora do poder máximo sobre as competições de futebol. Onde há poder, há política para o bem ou para o mal.

Escolher a sede da Copa é uma decisão política, ainda que apoiada em critérios objetivos e compromissos explícitos. A primeira Copa, realizada em 1930, por exemplo, contemplou o mérito do pequenino Uruguai, bicampeão olímpico (1924 e 1928).

Se, de um lado, a escolha da sede é política, de outra parte, os países escolhidos fazem uso político das copas de acordo com os interesses que permeiam a conjuntura histórica das nações. Neste sentido, vai da apropriação econômica do evento às possibilidades de legitimação do sistema de poder.

As Copas de 1934/38. Foram usadas como instrumento de  propaganda fascista. A ordem de Mussolini era “Vencer ou Morrer”. Os jogadores adiaram a morte. Em 38, o talentoso atacante, Meazza, ao receber a taça Jules Rimet, saudou o Presidente da França com o gesto fascista e passou para história como o único capitão de equipe campeã a ser estrepitosamente vaiado.

A Copa de 1950. A primeira depois da Segunda Guerra Mundial contemplou o Brasil, um aliado (apesar das hesitações getulianas) das forças que venceram os algozes da democracia liberal. Vargas sucedeu Dutra. Pelo voto. A profunda decepção com a Copa não mexeu com a fidelidade governista das urnas. Preterida a Argentina,  o Brasil mobilizou-se para mostrar ao mundo que era uma nação capaz realizar a copa, de construir o maior estádio do mundo e encantar o planeta com um futebol brilhante. O final infeliz a gente sabe: o “maracanazo”, a mais inesperada das derrotas; a mais desavergonhada politicagem em proveito da provável vitória; a alma brasileira ferrada pela novidade psicanalítica, o complexo de vira-latas.

A Copa de 1958. Um negro genial, adolescente, e um cafuzo de pernas tortas lideraram “o vareio de bola" que endoidou o sputinik, obrigou o Rei da Suécia a reverenciar o gesto imortalizado por Bellini e detonou o complexo. Ninguém, à exceção de Nelson Rodrigues, acreditava na seleção. A preparação adotou métodos modernos. O psicotécnico ferrou Garrincha. Os boleiros ferraram o psicotécnico e escalaram Mané. Naquela época, o Brasil vivia um momento mágico: Juscelino,  bossa-nova, democracia e progresso. O Brasil ganhou a Copa, marcou gols de bela feitura e as urnas funcionavam.

A Copa de 1970. Nesta época, não tínhamos copa, não tínhamos urnas e carecíamos de gol. A vitória opaca de 1962 fora soterrada pelo abalo sísmico do futebol-força de 1966. Tempos difíceis. O auge do ciclo militar: uma economia atlética e liberdades caquéticas. No futebol, descrédito. Aí a contradição inacreditável: um comunista de carteirinha, inteligência privilegiada e tamanha coragem que nele caberia o titulo de sua “Insolência João Primeiro e Único”, muda tudo. Saldanha abriu a jaula e colocou em campo 22 “feras”. O João Sem Medo arretou-se com interferências indevidas e jogou a toalha.  Antes, pavimentou o caminho para o disciplinado Zagalo e uma comissão técnica engalanada. Tiveram o bom senso de não misturar hierarquia, disciplina e a alegria libertária de jogar futebol. Juntaram grandes craques. Sem posições definidas e uma tarefa sagrada: tratar com carinho e intimidade sua majestade, a bola. Não deu outra: a taça Jules Rimet é nossa...para sempre.

A Copa de 1978. O refinado futebol argentino jamais precisou de governos civis ou militares para conquistar troféus. Porém, o ditador Jorge Videla precisava desesperadamente do título mundial. Para os donos do poder absoluto, não era suficiente a boa qualidade do time argentino. Armaram. A goleada dos argentinos na seleção peruana tirou o Brasil da final. Coutinho desabafou: “o Brasil é o campeão moral”. Este título não se contabiliza, mas um indigno conluio maculou a ética esportiva. (Continua amanhã(20), na próxima coluna)

Coitado do Consumidor

Gustavo Krause, | seg, 12/05/2014 - 11:42
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Para evitar confusão semântica: coitado não deriva de coito que vem do saudoso latim, verbo coire (ir com, fazer com); também não tem nada a ver com o particípio passado do ver cozer (biscoito, cozido duas vezes); coitado é sinônimo infeliz, desgraçado, miserável, enfim uma pessoa digna do dó. Depois da leitura do artigo, a associação de ideias é livre.

 

Na minha opinião, o consumidor brasileiro é, no mínimo, digno de dó.

 

A propósito, o escocês Adam Smith, filósofo moral (Teoria dos sentimento morais) e pai da economia moderna (A riqueza das Nações, sua obra magna), tão genial quanto difamado, observou, analisou e formulou teorias (o auto-interesse) que, aparentemente contraditórias, encontram harmonia na providência benigna da mão invisível.

 

Pois bem, o sábio escocês antecipava, em arguta observação, a sina do consumidor: “As pessoas de um ramo do comércio raramente se encontram para se divertirem, mas a razão do encontro é conspirar contra o consumidor e, em algumas ocasiões, para aumentar preços”.

 

Em 1776, tratava o consumidor como elo do sistema econômico que consome para viver e não vive para consumir. E via no agente da produção, movido pelo auto-interesse, a capacidade de satisfazer necessidades, a troco do preço justo desde que a concorrência mantivesse o mercado em equilíbrio. Na prática, a fome voraz do consumismo e a sede incontida do lucro incendeiam a arena econômica que clama pela mão do mediador mais forte do que invisível.

 

Daí a necessidade de mecanismos de regulação e proteção jurídico-institucional para que o mercado não se torne uma arena povoada por canibais: monopolistas, oligopolistas e delinquentes de um lado e, de outro, o vício do consumo conspícuo.

 

Desta forma, nosso foco foge ao estrito campo da economia para penetrar na esfera da Política e do Direito. Política e Direito se fundem na proteção da cidadania no seu sentido amplo e, em particular, no caso do cidadão/consumidor. Apesar, dos inegáveis avanços legais, não é exagero afirmar que o consumidor brasileiro é digno de dó.

 

Não conheço uma só pessoa no meu círculo de amizades que não tenha sido vítima, como cidadão/consumidor, de desrespeito, descortesia, transgressão, embuste e prejuízos concretos.

 

Não vou computar o consumidor/vítima de concessionários ou permissionários de serviços públicos e daqueles providos diretamente pela maldita burocracia estatal.

 

No mais, todos têm história para contar sobre: planos de saúde, serviços de telefonia, internet e assemelhados, serviços bancários, compras de eletro-eletrônicos, produtos de cama, mesa e banho, o precinho das oficinas autorizadas de automóveis, hotelaria, hospitais, objetos de decoração de interiores, carpintaria, pintura etc...,etc....

 

Agora, o mais grave: a estarrecedora interdição de quase duas dezenas de supermercados em razão das irregularidades cometidas na área de alimentos. Estarrecedora, repito, porque desde os pequenos estabelecimentos às gigantescas redes multinacionais, cometem-se graves atentados à saúde pública.

 

Tudo bonitinho. Arrumadinho em obediência à “ciência do varejo”. Quem vê gôndola, não vê depósitos e áreas de armazenamento. Autênticas incubadoras de bactérias prontas para atacar o organismo humano (salmonelas), doenças latentes nos enlatados com datas vencidas (botulismo), enfermidades suficientes para ameaçar a vida das pessoas.

 

Ao lado das incubadoras de bactérias, desfilam baratas cascudas (vi retrato do inseto no saco de pão) e, no painel asqueroso da sujeira, gatos e ratos comemoram o armistício do covil de roedores do bolso e da boa-fé dos clientes.

 

Cabe atentar, ainda, para um mercado paralelo que vende produtos vencidos às mercearias da periferia do Recife.

 

Que recaia sobre os responsáveis a mão pesada das autoridades, do Procon-PE, da Vigilância Sanitária, da Delegacia do Consumidor e da Agência  de Defesa e Fiscalização Agropecuária de Pernambuco (Adagro), órgãos que merecem o aplauso da sociedade pernambucana ao exercer eficientemente o papel de defensores do cidadão. Que a ação fiscalizadora se transforme numa saudável e necessária rotina.

 

Para completar o cerco aos infratores, bem que as redes sociais poderiam mobilizar os consumidores com o apelo #reajaconsumidor. 

As Eleições e o acendedor de postes

Gustavo Krause, | seg, 05/05/2014 - 15:27
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“Eu sou o segundo poste”. Assim se definiu o prefeito paulista Fernando Hadadd em meio à euforia da comemoração da vitória no pleito de 2012. As referências implícitas eram facilmente decifráveis: o primeiro poste foi a presidente Dilma; o autor das proezas o grão-mestre da política brasileiro Lula da Silva que prepara o terceiro poste, se é que se sustenta em pé, o ex-ministro da saúde Alexandre Padilha.

Com efeito, o eleitor brasileiro já se viu diante de duas “teorias” eleitorais: a do poste e a do andor. Ambas têm um traço em comum: dependem para o êxito nas urnas da força política de um líder ou de um conjunto de forças que carregam, tanto num caso, como no outro um candidato “pesado” e sem luz própria. Pode dar certo ou não, mas, no caso de vitória explicação é simples: o candidato não ganhou, ganharam por ele e, a partir da posse, trate de iluminar seu próprio caminho.

Importante não esquecer que a “invenção do poste” tem origem numa das inúmeras tiradas mordazes de Delfim Netto que mandou bala em Fernando Henrique: “Se um poste disputar com Fernando Henrique tem grandes chances de ganhar. Mas se derem nome ao poste, FH se elege sem fazer força”. Deram nome ao poste, Lula, o neo-amigo de Delfim, que perdeu duas eleições para FHC.

Bom, mas isso é passado. O que interessa são os postes atuais, o maior deles que é a presidente Dilma.

O poste não acendeu. Sob uma conjuntura econômica favorável, ampla base política, vitaminada com o apelo eleitoral do dinheiro público sob forma de “bolsas”, montada no Estado aparelhado de fio a pavio, e desfrutando de um animador de comício com retórica populista, a candidata venceu a eleição. O Brasil estava diante de mais uma promessa de Lula: a “gerentona” que levaria o país à terra prometida.

Repita-se: o poste não acendeu. A herança maldita no plano ético exigiu atividades comparadas a de uma faxineira que encantou a classe média. Bom começo. No entanto, com o passar do tempo, a experiência mostrou que não houve faxina que desse jeito. O Estado brasileiro foi capturado, cupinizado em setores e estatais nunca dantes imaginados e, na mesma toada, a Presidente provocou um apagão na política, erodiu os fundamentos da economia e, ao manter imobilizadas as reformas estruturais, jogou uma densa nuvem de incerteza na esperança dos brasileiros.

Um curto-circuito nos fios desencapados da insatisfação represada provocou, em junho de 2103, um choque de alta voltagem na sociedade. Não se sabe para onde caminha esta situação do ponto de vista político-eleitoral. Uma coisa é certa: as manifestações de rua ratificam um sentimento majoritário de mudança.

Resultado: acendeu a luz amarela para o longevo projeto de poder engendrado pelo lulopetismo. E agora? Uma solução: “Volta, Lula!” Surpresa? Para mim, nenhuma. Diante das opiniões discordantes da hipótese, analisava, em primeiro lugar, o perfil do caudilho que vive do poder, para o poder e, mesmo quando morre, sobrevive sob a forma de mito; em segundo lugar, porque a soberba de quem resdescobriu e reinventou o Brasil, alimenta o ego e canta aos ouvidos do condutor de massas “eu sou a força”; terceiro, porque o messianismo (fonte de inspiração de candidatos e movimentos sociais no Brasil) é filho do velho sebastianismo lusitano que esperou por muito tempo a volta do salvador, o Rei D. Sebastião que morreu lutando contra os mouros, em 1578, na batalha de Alcácer-Quibir. Atenção: Lula está, felizmente, mais vivo do que nunca. Só pensa naquilo: entrar em campo como solução para a manutenção do projeto de poder e, espero, não seja rebatizado com nome Luiz Inácio lula Sebastião da Silva.

No Brasil houve um tempo em que, no crepúsculo vespertino, o acendedor de lampiões, não passou despercebido pelo poeta alagoano Jorge de Lima que, assim, definiu sua função: “Parodiar o sol e associar-lhe à lua, quando a sombra da noite da noite enegrece o poente!”

No Brasil atual, a conta salgada da energia elétrica tirou de cena o “acendedor de lampiões”. Por sua vez, o eleitor bem que poderia eliminar o “acendedor de postes” ou evitar que Lula seja o poste de si mesmo.

Não vá o sapateiro além do sapato

Gustavo Krause, | seg, 14/04/2014 - 10:42
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Milenar provérbio romano. De força indiscutível como conselho aos que se aventuram falar sobre o que não sabem ou fazer o que está além de suas habilidades. O jovem contemporâneo reproduziria o antigo lema com um descolado "te manca, velho. Fica na tua".

Depois de ler os artigos de Adriano Oliveira e Maurício Romão, autoridades sobre ciência política e leitores privilegiados de pesquisas de opinião, eu me arrisco a desobedecer o velho dito. Não para contraditar ou para desdizer, apenas meter o bedelho onde não fui chamado, mas que trata de assunto estimulante para qualquer cidadão.

Uma preliminar antes de entrar no mérito do assunto: meu respeito profissional pelos articulistas é de tal ordem que não hesitaria em tê-los como conselheiros se poder tivesse para tanto. Eles sabem disso.

O tema é a interpretação das recentes pesquisas do Datafolha e a questão magna é a majoritária tendência de mudança revelada pelos entrevistados e a quem esta tendência beneficia.

Afirmo com convicção: a maioria quer mudança. Ora conselheiro Acácio, qual é a novidade? Os números estão aí dizendo. Então para não ser confundido com a ridicularia solene do personagem eciano, vou expor minhas razões.

 

1. Em todas as eleições, somente existem dois caminhos ou, digamos, duas propostas dialeticamente opostas: continuidade ou mudança;

 

2. De um modo geral, a experiência do jogo democrático das competições eleitorais demonstra que as mudanças se operam, entre 8 e 12 anos, alternando forças política e ideologicamente opostas seja por fadiga de material, seja por desgaste das políticas públicas praticadas;

 

3. Na história da novel democracia brasileira tem sido assim: FHC 8 anos (governo de quatro continuado por mais quatro anos); Lula 8 anos (governo de mudança em  4 e de continuidade em mais 4 anos). Aqui há um dado curioso: a "Carta aos Brasileiros" do então candidato Lula, abjurando tudo o que disse ele, disseram os documentos oficiais, os economistas do PT, e, em particular, largando de mão toda a maluquice da heterodoxia econômica. Tradução: cambiar, pero no mucho;

 

4. Com Dilma, Lula prorrogou a lógica da mudança e aproveitando os bons ventos da economia, creditou-se integralmente das melhorias da elevação da renda do brasileiro; deu um porre de consumo generalizado à base social; assumiu  a condição de novo "pai dos pobres" (o autêntico é vô Getúlio), e verdadeira mãe dos muito ricos; metamorfoseou-se em Dilma, a "mãezona (fake) do PAC" e logrou alargar o ciclo de poder para doze anos; 

5. Com Dilma, sem Dilma, apesar de Dilma, a mudança é inexorável por uma simples razão: pior não pode ficar. O governo derrete e joga na população o óleo fervente da Petrobrás; a gerentona distribui esporro em quarenta ministros e adjacentes; a gestão política é comandada pelos notórios de sempre; a política econômica e seus antigos pilares ruíram e austeridade não rima com eleição, mas sua falta rima com inflação e com a intoxicação dos juros altos. Reformas estruturais, nem pensar.

6. Vai mudar. E nos primeiros dias de janeiro de 2015, serão ministrados remédios amargos ao povo brasileiro que se imaginava a salvo da reprise de filmes de terror: tarifaço, arrocho salarial, arrocho orçamentário, juros em ascensão, contas externas desequilibradas, câmbio (quem sabe?). Vai mudar e pode ser com Dilma ou o Padrinho: sob a euforia do hexacampeonato mundial de uma Copa onde tudo vai funcionar. Neste glorioso momento, ela ou ele escreve um "Bilhete aos brasileiros" prometendo o inverso de 2002, ou seja, 2015 o ano de grandes mudanças. O eleitor brasileiro vai adorar. De estelionato eleitoral, a gente entende. Lembrem-se do Cruzado II nas eleições de 1986.

Adoro Celulite

Gustavo Krause, | qui, 10/04/2014 - 10:15
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A vida é dureza. Sempre foi. Cada vez mais. Hoje em dia, invade a casa da gente. Rádio, televisão e a hipnose da família eletrônica dos “I”, “Face”, “WattsApp” nos levam a prestar menos atenção ao próximo mais próximo. Em matéria de informação o que nos chega é a violência nas mais variadas e requintadas formas; a corrupção organizada pelos homens do colarinho branco, amarelado pelo suor fétido dos seus usuários rechonchudos; tome imposto de verdade e engula a mentira dos serviços públicos.

O jeito é falar de moleza. Moleza inocente. Natural. Na maioria das vezes, herdadas. Vem no DNA. É mole e atormenta quem não merece: as mulheres. E  atende por um nome assustador: celulite. Um terror que se localiza nas redondezas da região glútea e, dependendo do caso, se espalha pela parte posterior das coxas. As magrinhas não estão imunes às ondulações do tecido fibroso que nem casca de laranja.

No começo da década de noventa, em parceria com o famoso J. Michiles, nasceu a marchinha cujo refrão é o seguinte: “Gordinha, linda Afrodite/parei no seu it de anjo barroco/você me deixa louco com seu apetite/acredite/adoro celulite!”. Criamos o bloco. Disputa acirrada para escolher a porta-bandeira (quem ganhou? Segredo de confissão). Quase sai tapa. O bloco era curtição e somente uma vez foi às ruas. A preguiça era muito grande. A gente anunciava todo ano a presença de celebridades (Jô Soares, Wilza Carla) e, no clima de carnaval,...tudo era fantasia. Mas as portadoras de celulite estavam de alma e tecido adiposo lavados: o frevo-canção era uma resposta ao Bloco da Malhação da academia da saudosa Jandira Airam, letra de minha autoria, musicada, adivinhem por quem? O doce amigo e notável compositor Luiz Bandeira. Refrão: “Malha, menina!/menina, malha!/fica durinha senão encalha!” Quase linchado, fui perdoado com a apologia à celulite.

Bem, a celulite é a saúva do século XXI: ou se acaba com ela ou ela põe em risco  o sexo feminino. Tem receita de todo tipo: fórmulas caras, “cientifícas”, naturais, soluções caseiras (manteiga de cacau com açúcar e pó de café, eca!, banho de algas, três copos ao dia de suco de limão e pimenta caiena,  a couve milagrosa e por aí vai).

E haja maluquice. As loucademias de ginásticas são verdadeiros sanatórios que fabricam a neurose da “mulher perfeita” (para ela e o espelho, espelho meu), o ideal da Vênus calipígia (com todo respeito) de bunda dura e pacientes de ortopedistas e fisioterapeutas.

Aliás, “A bunda dura” é um artigo atribuído (?) a Arnaldo Jabor e leitura recomendável para auxiliar o tratamento psicanalítico no mundo que glorifica os “máximos”; canoniza a aparência; subestima a essência; e, para mergulhar na inconsciência, consome, adoidado, pílulas para dormir, para acordar, para sorrir, para sentir prazeres em escala negada pela natureza. Somos vítimas da civilização do medo generalizado em fuga permanente do real que dói, maltrata, mas que precisa ser enfrentado.

Ora, a mulher não precisa ser dura, nem mole; não precisa ser uma estátua de charme; não precisa se redesenhar a cada década passada; basta ser mulher no corpo cuidado, adequado a cada idade e sem perder o viço interior do senso de humor e do amor; manter acesa a luz de uma sabedoria que emana dos sentimentos da maternidade; mulher que ria, faça rir e que tenha idéias mais longas do que os cabelos. Esta escultura da alma feminina jamais perderá a graça e a capacidade de sedução.

E nós homens, fracotes, como precisamos delas. Precisamos daquela metade que na narrativa da obra platônica, o “Banquete”, é separada do ser original completo e, a partir de então, vaga pelo mundo em busca da outra metade.

Encontrando, amigas, é prudente relevar o desleixo do toalha molhada em cima da cama; de mijar no assento do vaso sanitário; de jogar a pelada regada a cerveja, conversando leseira. Encontrando, amigos, vale sentir no corpo da mulher, o suave aconchego, revestido pela gordurinha localizada e pela indesejada celulite. E todo dia, repetir, em tom de prece, o que diz o cancioneiro “Meu amigo, se ajeite comigo e dê graças a Deus”.

Clávio, doeu demais!

Gustavo Krause, | qui, 03/04/2014 - 09:37
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Quarta, 02 de abril, cedinho, renovo o hábito: a leitura dos jornais. No Caderno C do Jornal do Comércio, a manchete - MORRE O ESCRITOR CLÁVIO VALENÇA - apunhala traiçoeiramente o cantinho onde guardo os bons sentimentos.

Sabia que sua saúde vinha abalada, fazia algum tempo, mas desconhecia o agravamento das últimas semanas; estou farto de saber que a morte é amiga da velhice e chega devagarzinho com os sinais de cansaço, a companhia das dores e as marcas das perdas; e mais, depois de certa idade, o caminho é um vale de lágrimas esculpidas em lápides até que chega  a nossa vez.

A verdade é que não passa uma semana sem que saudades se inscrevam em nossos corações. Ainda bem que a saudade congela o tempo e conserva a lembrança. Clávio, a partir de hoje, o tempo parou, continuamos a nos ver e a querer bem um ao outro.

Em relação a Clávio, não vale a acrimônia de Machado de Assis: "Está morto: podemos elogiá-lo à vontade". Dele, não era eu dos mais próximos; cada um no seu canto, mas em cada canto e mesa de bar compartilhada, em jornadas boêmias, projetavam-se luzes interiores que nos faziam fraternos. Virtude dele que tinha, sem querer e sem saber, visgo (de jaca? Podia ser desde que fosse de São Bento do Una). Era um visgo de outra natureza e que se revela na dimensão dos dotes espirituais: gentil, cavalheiro, leve e encharcado pelo bem da família Valença que se manifesta na imaginação poderosa, inteligência sensitiva, emocional, sempre pronta para a tirada de humor refinado e uma ironia, acreditem, inofensiva porque jamais dirigida às pessoas.

Sempre que o encontrava, ao lado da dedicada e amorosa Iana (esta eu conheço desde a adolescência, filha de "seu" Lauro, moça bonita e educada e que fazia parte de um prole numerosa, precocemente, órfãos de mãe), perguntava: "A saúde, como vai?" E vinha a resposta espirituosa: "O doutor liberou uma dose de de uísque, dia sim, dia não, e eu pedi para acumular créditos das doses não tomadas para o fim de semana" (risos). Ou então, porque sempre admirei o estilo da prosa fluente e dos textos saborosos, : "Clávio, escreva mais. Dê este prazer aos seus leitores". Ele respondia com um riso encabulado, mas seguro de que só escreveria quando lhe desse na telha.

A propósito, foi a poderosa imaginação de Clávio que gerou uma obra surrealista - Dona lili do Grão-Pará - uma biografia desautorizada, amparada numa espécie de realismo mágico da vida boêmia, misturada com histórias anárquicas do universo mundano do Recife onde ele introduziu Lili, personagem inspirada na Lilly do bloco carnavalesco Nem sempre Lily toca flauta, de origem lituana, mas, de fato  Lili era uma cidadã do mundo e que se adaptara às circunstâncias da vida profana da zona do meretrício e das aventuras/desventuras das casas da luz vermelha. O livro foi lançado no Pátio São Pedro no dia 25 de janeiro de  2001.

Em 2010, Clavio lançou o livro de contos Interioranos (Comunigraf Editora). São treze contos de quem sabe contar história fincada nas raízes culturais da vida simples das pequenas localidades, delas, porém, universalizando valores e a crítica social, atributo do grande autor.

Neste ponto, cedo a palavra aos mestres no assunto. Eis o que disse Garibaldi Otávio: "Ninguém precisa morar em São Bento do Una para entender o mundo. Mas compreenderá bem mais a complexidade da vida humana conhecendo pessoas como as que habitam as páginas deste livro".

Do Professor Nelson Saldanha: "Sua prosa é fácil e fluente, sua narrativa espontânea e sem maiores complicações. Verossímil, embora não banal, descritiva mas não isenta de psicologia".

Do grande Raimundo Carrero, vem o testemunho de que Clávio "Não é apenas um pessoa que escreve". É, segundo ele, um escritor, o escritor não some. Marca. E explica: "Assim tem sido o trabalho deste escritor que se construiu pela reflexão e, para revelá-la, foi em busca da Beleza".

Pois é, naquela mesa ele vai faltar e vai doer demais.

Embromar e Convencer

Gustavo Krause, | qui, 27/03/2014 - 16:10
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Existe muita gente disposta a embromar e um número de embromáveis infinitamente maior. Trata-se de uma luta desigual entre vigaristas e pessoas de boa fé, os otários, na linguagem dos criminosos.

Por falar em linguagem, o leitor pode ficar sossegado: tenho juízo suficiente para não ir além do trivial. Nada de entrar na semiótica de notáveis teóricos como Peirce, Saussure, Umberto Ecco, etc... Muito menos profanar as ideias de Aristóteles sobre retórica, lógica, dialética, poética e suas relações com a metafísica, a política e a ética que o passar dos milênios absorveu e reverencia.

Vou simplificar. Ou seja, pensar um pouco nessas categorias tão presentes no nosso cotidiano como a nutritiva mistura do feijão com arroz.

Mas vamos pensar, tentando identificar quem ilude e os sintomas da farsa da embromação.

Por definição, seja astúcia, embuste, mentira, ardil, em maior ou menor escala,  pecado venial ou mortal, ninguém pode atirar a primeira pedra contra o embromador. O que interessa é a grande embromação, a embromação dos que têm o poder de atingir o respeitável público a exemplo de líderes políticos, empresariais, grandes executivos, jornalistas, técnicos de futebol, enfim, todo e qualquer profissional que, ao lidar com a opinião pública, engana e do engano obtêm proveito ilícito ou aparentemente lícito.

Em comum, eles tratam o respeitável público como idiotas.

Infelizmente, não foi descoberta uma vacina. A gente só se dá conta depois. Eita! Bateram minha carteira.

Todavia, alguns sinais ajudam na proteção coletiva:

- A pedra de toque do discurso do embromador é o jargão. Ele usa com a grave solenidade como se fosse o dono (cuidado com o discurso “moderno” da “governança corporativa” dos CEOs);

- o discurso do embromador é sempre uma exaltação aos “conhecimentos especializados”, usando termos técnicos em moda, se possível, em outros idiomas;

- para o embromador, importante é impressionar. Um rolando lero elegante. Impressionou, enganou o besta;

- o discurso do embromador tem algo de obscuro, melhor dizendo, misterioso. Na vida laica, mistério é ilusionismo;

- no conjunto da obra, o discurso impressionista é uma espécie de “turbina intelectual”. É um arretado! Sabe tudo. A plateia baba.

 

Mas não sejamos tão inclementes. Existe o outro lado da moeda que é o discurso do convencimento:

- é breve e fundamentado em fatos consistentes;

- é objetivo, claro e conquista pela forma e pelo conteúdo;

- é próximo das pessoas e a proximidade se alimenta de “histórias” que contêm  grandezas e fraquezas. Ninguém aguenta os “heróis” que jamais levaram porrada;

- é, na dose certa, bem humorado. É preciso não se levar muito a sério para levar a sério tudo que faz;

- quem convence não precisa optar entre ser chato um autêntico ou um simpático artificial. Estilo não se inventa e as pesquisas sobre o assunto indicam que a comunicação convincente deriva 7% das palavras e 93% de pistas não-verbais.

Resta uma grande questão: diante de um escândalo de dimensão nacional, internacional, multinacional, como agir? Simples: contratar a maior consultoria do Planeta em embromação: a BRASILBRÁS. 

Lágrimas de Pierrô

Gustavo Krause, | qui, 06/03/2014 - 10:50
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Quarta-feira de cinzas é um dia triste. Devia amanhecer sempre sob chuva torrencial para lavar corpos e almas que se entregaram aos apelos mundanos do carnaval. É dia de ressaca orgânica da viagem ao êxtase da fantasia e, na tradição cristã, é o momento de elevação espiritual porque simboliza a fragilidade da vida. Assim, cessada a chuva, seria celebrado o encontro do sol interior com o sol da natureza.

 

Como não brinco o carnaval na terça-feira gorda (acredite quem quiser), começo a quarta de cinzas, bem cedo, com os pensamentos em caminhada pelo Parque da Jaqueira. Este ano, na entrada que fica do lado da Av. Rui Barbosa, dei de cara com um resto de carnaval: o pierrô encolhido no banco da praça, abraçando as próprias pernas que davam sustentação à cabeça.

 

Ele chorava copiosamente. O primeiro impulso foi respeitar a solidão da tristeza; o segundo impulso foi consolar aquela alma penada que, supus, estava de coração partido por causa de uma colombina. Aquela lágrima desenhada no rosto triste do pierrô, cristalizada como um pingente, se transformara numa catarata de sentimentos incontidos.

 

Cedi à convicção de que o pierrô, personagem herdado da commedia dell´arte do teatro popular italiano, sofria da cornice universal da traição amorosa. No entanto, estranhei as cores da fantasia: o preto e o branco deram lugar ao verde/amarelo.

 

Fui direto ao ponto: - Por que tanto choro e tanto sofrimento, amigo pierrô? Você já sabia o fim do enredo: arlequim se aproveitaria de sua ingenuidade, de sua crença na bondade humana, e a colombina já era. – Não choro por colombina – balbuciou, sem levantar a cabeça, e entre soluços, completou – choro pela pátria amada, Brasil.

 

Surpresa! Refeito, argumentei que contivesse aquela angústia contagiante. – O Brasil, florão da América, é hoje uma das dez maiores economias do mundo; moeda estável; 40 milhões de brasileiros incorporados ao mercado de consumo; as instituições democráticas funcionando livremente e...

 

Senti que ele não queria ouvir e desatou a falar. – Choro pela impunidade. A sabedoria popular tem razão: nada como dias atrás de outros e um Toffoli no meio. E o que dizer da teoria da chavasca que desquadrilha a quadrilha e abre alas para o bloco dos sujos passar? Tem mais: o cara que tem cara de artista de cinema mudo, contracenando, em terreno lodoso, com outro canastrão que mais parece galã de novela mexicana, liquidam a esperança do “Moleiro de Sans-Souci” segundo a qual “ainda existem juízes em Berlim”.

 

Tentei contra-argumentar, mas o pierrô não interrompeu a catarse. – Que economia? A do pibinho? Atrás dos emergentes, do Chile, do Peru, da Colômbia? O Brasil do 85º lugar no IDH? O Brasil da segunda pior distribuição de renda em ranking da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE)? O Brasil de baixíssima produtividade que compromete a capacidade de competir no mercado globalizado? O Brasil cujo Estado monstruoso nós carregamos nas costas e nos devolve ineficiência generalizada na prestação de serviços? O Brasil da infraestrutura estrangulada? Da contabilidade maquiada? Das contas externas desequilibradas?

 

O Pierrô fez uma pausa para respirar, aí aproveitei. – Houve grandes avanços: a redução de taxa de mortalidade infantil, o aumento da expectativa de vida, universalização do ensino... Fui interrompido abruptamente. – Choro pelos 50 mil mortos por homicídio doloso todo ano e, por favor, não me venha falar em educação: segundo o Relatório de Capital Humano do Fórum Econômico Mundial, o Brasil ocupa o 88º lugar entre 122 países e, na qualidade do ensino de matemática e ciência, tem o 15º pior desempenho do mundo. Na avaliação do relatório PISA, entre 65 países, o Brasil obteve o 55º lugar em leitura, 58º em matemática e 59º em ciências. Sem falar no silencioso e perverso analfabetismo funcional: muita gente sabe ler, chega a ter diploma, mas não entende o que lê.

Concluí: seria inútil o esforço para aliviar a dor patriótica do Pierrô. Sugeri uma saída amigável e poética: - Vamos “tomar vermute com amendoim” como receitava Noel Rosa em “Pierrô Apaixonado” para “romper a esfera dos astros”, proposta de Manuel Bandeira em “A Canção das Lágrimas de Pierrot”. Ele aceitou. – Seu nome? – Apenas, pierrô .

O Voto ziguezague

Gustavo Krause, | ter, 04/02/2014 - 14:39
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Voto. Palavra curta e de enorme significado. Muita coisa bonita e muita coisa feia podem ser ditas sobre sua história. A mais bonita: uma conquista da humanidade, elemento constitutivo da cidadania e mecanismo essencial para aferir a preferência das maiorias de modo a legitimar as competições eleitorais e a alternância pacífica do poder.

O que tem de feio é que a prática nem sempre corresponde à bela teoria. A história do voto é uma história de exclusões e inclusões. De outra parte, como expressão manifesta de preferência nas regras do jogo democrático, nem sempre reflete a consciência livre e a vontade soberana do eleitor ao escolher seus representantes a quem, em grande medida, confiam o destino da coletividade.

 

No caso brasileiro, são inegáveis os avanços dos processos eleitorais em contraste com o anacronismo dos sistemas partidários e eleitorais alimentado pela falta de vontade política em aperfeiçoá-los.

 

Com efeito, o percurso histórico do voto no Brasil foi marcado, ora pela falta de democracia, ora pela exclusão social, até que a Constituição de 88 transformou o País num amplo colégio eleitoral de 140 milhões de votantes.

 

Um voo rasante sobre a história é capaz de demonstrar a evolução e, até mesmo, curiosidades sobre o voto no Brasil.

 

- O voto indireto para os Conselhos Municipais (ou Senados da Câmara). A primeira eleição: 23 de janeiro de 1532. Dois representantes escolhiam os integrantes do colegiado. O voto era um fato local.

 

- O voto luso-brasileiro. Em 1821, o Brasil votou pela primeira vez, em âmbito nacional, para escolher representantes junto às Cortes portuguesas observando os dispositivos da constituição espanhola. Foram eleitos 72 brasileiros. Cinquenta chegaram a Lisboa.

 

- O voto dos “homens bons” e dos “homens novos”. Era o voto censitário. Prerrogativa dos que tinham posses equivalentes a cem mil réis, depois duzentos mil réis, aí incluídos a nobiliarquia e os emergentes (“homens novos”).

 

- O voto por procuração. Este era apenas um tipo de voto que assegurava a fraude, extinto em 1843. Neste sentido, é importante registrar que a fraude e a intimidação estiveram presentes ao longo do Império e da República Velha de forma ostensiva e violenta (o voto não era secreto). A intimidação ostensiva ocorria com a ajuda dos “capoeiras” e dos “cerca-igreja” (de 1824 a 1881, quando a Lei Saraiva instituiu o título de eleitor). Até então, as eleições eram realizadas nos templos católicos.

 

- Voto de cabresto, curral eleitoral, eleições de bico de pena e o voto fósforo. A constituição de 1891 adotou o voto  secreto, porém, excludente (não votavam menores de 21 anos, mulheres, analfabetos, mendigos, soldados, indígenas e membros do clero). No entanto, a fraude corria solta, legitimada pelas oligarquias estaduais. O cabresto revelava a dominação do chefe político; o curral ou viveiros era um local de reclusão do eleitor, transportado do interior, alimentado e mantido incomunicável até a hora de votação; a eleição de bico de pena era uma tramoia das comissões eleitorais que elegiam os candidatos de acordo com o sistema de poder, inclusive, lavrando atas escritas na véspera da eleição; o voto fósforo “riscava” a urna que era semelhante a uma caixa de fósforo, várias vezes, ressuscitando eleitores mortos e ausentes.

 

De fato, o código de 1932 (voto feminino, criação da Justiça Eleitoral, etc..), seguido de outros códigos e leis específicas buscaram limpar a sujeira das eleições. Recordo-me da cínica resposta de um deputado pernambucano, nos idos da década de oitenta, quando confrontado com a irreverente pergunta: “Tá difícil comprar voto?” Lampreiro, ele não perdeu a bossa: “Estou tranquilo, não compro, vendo”.

Que avançou, avançou, mas o voto, a moeda da democracia está mais valorizada do que nunca no mercado político. No atacado, o balcão dos negócios; no varejo, a cabeça do eleitor de opinião, cada vez mais reduzido, uma confusão enorme: 40 partidos, ideias, princípios, doutrina, visão ideológica, tudo misturado em cinquenta tons de cinza; no marketing, o ilusionismo associado à neurociência.

 

E aí como votar? Primeiro uma tendência ditada pela desilusão que é não votar, ou, votando, criando o Voto Ziquezague, uma chapa personalíssima que vai do capital ao trabalho, da esquerda para a direita (?), do verde ao cor-de-rosa.

 

Resta uma advertência: “Não é política que faz o candidato virar ladrão; é o voto que faz o ladrão virar político”.

Pafúncio, o hipocondríaco

Gustavo Krause, | sex, 03/01/2014 - 08:00
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Colégio Padre Félix (saudade!), primeiro dia de aula, ano de 1958, o bedel fez a chamada para identificar os alunos. Era uma apresentação coletiva. “Pafúncio Ramirez”! Curiosidade silenciosa e sacana à espera do detentor de nome tão bizarro. Timidamente, o corpo, magérrimo e banhado por uma palidez enfermiça, ergueu-se lentamente e com o indicador em riste balbuciou o quase inaudível “preseeeente”.

 

Adolescentes impiedosos esboçariam o urro de sarcasmo não fora a cara, preventivamente, ameaçadora do experiente bedel. Restaram sibilantes sussurros, contendo risos de mofa. O pobre coitado acabara de ser nomeado vítima preferencial das almas sebosas.

 

Não demorou. A mórbida curiosidade logo foi satisfeita: Pafúncio era filho único de Dr. Euprépio Ramirez, falecido, havia um ano. Deixara viúva dona Zorilda Francisca Ramirez e, uma pensão razoável do IAPI, complementada pela escola particular da respeitada Professora Zorinha cujos alunos eram campeões nos exames de admissão dos mais famosos colégios do Recife.

 

Fervorosa beata, era toda cuidados com os estudos e, sobretudo, com a saúde de Pafúncio, coroinha da igreja da Soledade, pertinho do sobrado da Rua do Sossego. No térreo, funcionavam as salas de aula e o andar de cima servia de acolhedora residência. Pafúncio, para completar o orgulho materno, fazia parte do coro da Igreja.

 

Pafúncio era tão tímido, tão indefeso, tão aplicado nos estudos, tão leso que, mesmo contrariando os padrões dos meninos endiabrados, sua pureza assegurou-lhe sossego, respeito e certa admiração.

 

A gente sabia que D. Zorinha protegia Pafúncio de vento encanado; antes de dormir, untava de vickvaporub o peito do menino para evitar “puxado” (acesso de asma); o sereno era um veneno tanto que, às cinco da tarde, retornava ao calor do lar; praticar qualquer esporte era um sacrilégio (uma vez “desmentiu” o punho e usou a semana inteira "Emplastro de Sabiá"); tomava fortificantes famosos como “Óleo de Fígado de Bacalhau”, “Biotônico Fontoura” e, para o funcionamento correto dos intestinos, engolia, estoicamente, colheradas do imtragável “Óleo de Rícino”.

 

Futebol, nem pensar. O pai era torcedor do Auto Esporte, um Íbis de curta existência, por conta do xará Euprépio, um zagueiro especialista em botinadas. Levou Pafúncio ao estádio. Perdeu de 8x0 para o América. Para Pafúncio, futebol nunca mais, exceto quando “a pátria de chuteiras” entra em campo.

 

Eis Pafúncio, adulto. Celibatário. Macho. Casto(?). Mistério. Parte dos amigos achava que ele (ainda) é virgem: outra parte desconfia que, em matéria de sexo, era um Tartufo e, segundo rumores, proprietário de um apartamento no Edifício Continental (garçonière) onde mantinha secretos encontros amorosos.

 

Funcionário público concursado e, hoje, aos setenta anos, aposentado, jamais teve dificuldades financeiras. Tudo regrado. Tem uma poupança milionária destinada por testamento a uma congregação religiosa, atendendo à caridosa mãezinha. Aos noventa e três anos, Dona Zorinha, lúcida, saudável, candidata séria ao centenário, recebe todo afeto e dedicação do filho exemplar. Hoje moram numa confortável chácara em Aldeia.

 

Pafúncio tem quatro passatempos preferidos: leu e releu 522 vezes a coleção de gibis e todos os números das revistas “Tico-Tico”e “O Cruzeiro”; lê bulas de remédios, em especial, novidades sobre doenças sistêmicas; planta os alimentos que consome; diariamente compra os jornais para dar uma olhada no necrológio e só.

 

Todo Natal vou visitá-los. Reviver a alegria para contrastar com os encontros fúnebres cada vez mais frequentes (Pafúncio compareceu durante 25 anos à celebração de missa de um amigo). E não resisti: “Bicho, que história é essa de ler bula de remédios e comer o que planta”? “Guga, foi curto e grosso, eu sou meu próprio médico. Não tenho plano de saúde. Tenho pavor a estetoscópio. E não morrerei pela boca, envenenado pelas pesquisas mutantes sobre ovo, chocolate, carboidratos, frutas, legumes que ora, dizem, fazem bem; ora, dizem, fazem mal”.

 

Saí de lá e fui ouvir um doutor de cabeça e a outro que manja de nutrição. “Seu amigo, ambos disseram, é hipocondríaco. Tem doenças imaginárias. Isto se chama também nosomania”. O outro sentenciou: “Sofre de fagofobia. Medo de comer”.

 

Não sei quem tem razão. Mas se Doutor Freud conhecesse Pafúncio diria que, embora tenha “casado” com a mãe, Pafúncio é um caso raro de sanidade mental.

 

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