Quando a dança vai além do movimento

Através dos passos, é possível traduzir discursos contundentes e politizados dando diferentes formatos à causas relevantes

por Paula Brasileiro qui, 29/04/2021 - 10:00
Arthur Souza/LeiaJá Imagens A dança também pode ser usada como engajamento. Arthur Souza/LeiaJá Imagens

Segundo médicos e especialistas, dançar traz inúmeros benefícios físicos e emocionais aos indivíduos. Mexer o corpo embalado por alguma melodia, pode aprimorar a saúde cardiovascular, a resistência física, desenvolver a coordenação motora e aumentar o desempenho cognitivo, entre outras outras benesses. Mais: as vantagens não se atém somente ao corpo físico. A movimentação da dança atua, também, na autoestima e pode até ajudar a curar doenças ‘da alma’, como ansiedade e depressão. 

Como se não fosse suficiente, essa expressão artística - que é celebrada mundialmente por apaixonados e profissionais nesta quinta (29), Dia Internacional da Dança - ainda pode ser usada como uma poderosa arma de engajamento e representatividade. Através dos passos de uma coreografia, é possível traduzir discursos contundentes e politizados, dando diferentes formatos à causas relevantes e atuando como ferramenta de pertencimento e inclusão social. 

Determinadas danças já surgem com um caráter, por assim dizer, contestatório. É o caso do breakdance, um dos elementos da cultura Hip Hop, nascido na década de 1970, no Bronx, Nova Iorque. O breaking foi criado pelas comunidades negra e latina dos Estados Unidos da América, com o propósito de distanciar seus jovens das gangues e da violência urbana. Popularmente chamada de ‘dança de rua’, a modalidade cresceu e perpetuou-se como manifestação identitária da cultura negra e vetor de transformação social. 

Em seu trabalho, Neto Cabuh mistura a dança com outras linguagens como a poesia e o teatro. Foto: Arthur Souza/LeiaJáImagens

O artista multimeios Neto Cabuh descobriu tudo isso muito cedo, aos 15 anos, quando começou a participar de projetos do Escola Aberta, em Pernambuco, quando iniciou sua relação com o breaking.  O então b-boy - como são chamados os dançarinos da modalidade - começou a participar de competições e apresentações, ao passo que dedicava-se ao estudo de outros tipos de dança e expressões artísticas - como o teatro e a poesia -, e profissionalizou-se incorporando ao seu trabalho todo o aprendizado que, muitas vezes, foi conquistado “pedindo”: “Eu era um pidão, porque eu não tinha dinheiro pra pagar as aulas, então para me especializar eu tinha que falar com os professores pra fazer de graça mesmo”, relembra o bailarino em entrevista ao LeiaJá. 

A própria vivência e os fundamentos da dança que Cabuh abraçou como sua imprimem ao trabalho do artista um tom muitas vezes de protesto. Em intervenções como Democracídio e Etnia, assinadas por ele, o dançarino aborda temas como a violência urbana, extermínio da juventude negra e desigualdade social. “Na bagagem do breaking a gente traz muito dos antepassados negros que vieram de África; no continente americano, a gente sofreu tanto a escravidão como, depois de alguns anos, a segregação racial. O breaking dance traz muito da explosão da dança, do corpo que explode pra poder se expressar. Eu vim moldando essa história e fui conseguindo aderir outras danças que conseguissem também expressar quando eu estivesse feliz, mais leve, como o frevo consegue fazer, por exemplo”.

Misturando os passos de diferentes origens  a outras linguagens, como música, poesia e teatro, Neto converte discurso e engajamento em movimento. Para ele, é possível adequar qualquer tipo de dança a esse propósito colocando o corpo a serviço da comunicação. ‘A tua expressão  fala muito mais do que a própria dança em si. Expressão facial, corporal, o corpo fala, a dança serve pra te guiar, na minha concepção. Se você quiser dançar uma valsa mais triste, eu tenho que estudar como meu corpo vai apresentar isso. Tudo depende da proposta”, explica o artista.

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Pertencimento

Outra modalidade de dança que se propõe a ir além da expressão corporal é o voguing. Esse estilo surgiu nos Estados Unidos, nos anos 1960, mas popularizou-se apenas duas décadas depois. Um dos maiores ícones da cultura pop, a cantora Madonna, contribuiu para isso a partir de sua música Vogue. Após o lançamento da canção, que chegou acompanhada por um clipe ‘icônico’, o mundo pôde conhecer os movimentos e fundamentos criados e vivenciados pelas comunidades negra e LGBTQI+ de Nova Iorque. 

No Brasil, mais precisamente no Recife, o dançarino, pesquisador, professor e mãe da House of Guerreiras, Edson Vogue, é considerado o pioneiro do estilo em terras pernambucanas. Desde 2018, o artista se dedica a difundir a modalidade bem como estudá-la, sobretudo em suas interseções com o frevo, o chamado frevoguing.

Edson também conheceu o estilo através da música da rainha do pop e foi pagando várias horas nas (quase extintas) lan houses de seu bairro que ele pôde iniciar suas pesquisas a respeito. Em entrevista ao LeiaJá, o dançarino explica sobre o que se trata o voguing. “(Ele) vem da cultura de baile criada por mulheres trans negras, pela urgência da luta contra o racismo e transfobia. Então, é uma dança na qual a comunidade ALGBTTIQ se sente pertencente e é uma forma de organização política para fortalecer o sentimento de pertencimento, valorização da vida e proteção à população ALGBTTIQ”.

Edson Vogue é considerado o precursor do voguing no Recife. Foto: Reprodução/Instagram

Na pista, os voguers, como são chamados os adeptos da modalidade, imitam as poses de modelos que aparecem nas revistas e passarelas de alta costura. Eles podem participar de apresentações ou batalhas, chamadas de balls ou ballrooms, em que são avaliados não só pelas coreografias, mas também pela beleza do desfile e de sua própria figura.

Diretamente ligada às questões de gênero, raça e classe, essa expressão se propõe a fortalecer a autoestima de seus praticantes promovendo o seu empoderamento e senso de liberdade. “As pessoas procuram o voguing e as outras categorias da cultura ballroom para se expressar, ter sentimento de pertencimento e valor. Elas então se tornam multiplicadoras do conhecimento da cultura ballroom e desse sentimento.”, explica Edson.

Além disso, os grupos de dançarinos que se formam, as chamadas houses, funcionam como meio de acolhimento e suporte para seus integrantes. Elas atuam como verdadeiras famílias, com ‘pais’ e ‘mães’ que cuidam de seus ‘filhos’ e mantém a organização da comunidade. Essa forma de organizar-se veio da necessidade de dar suporte a muitos dos adeptos do voguing, no início do movimento, que eram expulsos de suas casas e terminavam em situação de vulnerabilidade. 

Edson é a 'mãe' da House of Guerreiras. Foto: Reprodução/Instagram

Edson é a ‘mãe’ da House of Guerreiras, na capital pernambucana, coletivo que conta com sete integrantes, além dele próprio. Na página oficial do grupo no Instagram, eles esclarecem que seu objetivo é unir-se “na luta pelas minorias, porque o vogue além de dança é também um ato político”. O dançarino sintetiza a ‘missão’: “Fazer com que a cena permaneça firme é uma batalha diária que não se faz só, então cada house é tão responsável pela sua casa quanto pela cena no geral, para que possamos sempre contar umas com as outras e dar os suportes necessários para que a cena não só cresça mas possa chegar em mais pessoas”.

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