"Me chamavam de filho de leproso safado", lamenta idoso

Hoje com 75 anos, Antônio ainda sente vontade de chorar ao relembrar infância e adolescência distante dos pais

por Eduarda Esteves sex, 31/05/2019 - 19:11

Antônio José Cisneiros ainda criança no preventório. Foto: Arquivo Pessoal

Antônio José foi afastado dos pais e só conviveu três meses com a mãe. Foto: Chico Peixoto/LeiaJáImagens

Antônio José Cisneiros, 75, passou doze anos da vida no Instituto Guararapes. Foi mais uma criança separada da mãe e do pai, que permaneceram internados no hospital. Só conviveu com a mãe por três meses, ela veio a falecer noventa dias após ele sair do orfanato. Conversava com ela pessoalmente e nunca se esqueceu das lembranças daquele tempo.

Passou anos morando na rua e passando fome, após ser retirado do orfanato por uma suposta tia, que o fazia de empregado. Vendeu jornal, fez biscaite e a vida só melhorou quando aprendeu a dirigir e um conhecido lhe ofereceu um emprego para trabalhar de motorista. Ele foi empregado pelo governo do estado e passou a dirigir o carro do Hospital da Mirueira.

Ao lado da filha Irene Lopes, 49, José relembrou as etapas vencidas de sua trajetória. Conviveu com o pai durante alguns anos quando dirigia para o hospital e guarda ótimas lembranças. O tempo que passou no Instituto Guararapes ainda provoca arrepios pelo tratamento que sofreu.

Irene ao lado do pai. Foto: Chico Peixoto/LeiaJáImagens

Thiago Flores, diretor nacional do Morhan, Diretoria Jurídica e Diretoria de Filhos Separados, luta também para que os filhos afastados ganhem uma indenização do governo. “É aos moldes da Indenização da Lei 11.520/07, ao qual indeniza todas as pessoas com hanseníase no Brasil que foram separadas compulsoriamente, essa luta tem 9 anos e ninguém ainda foi indenizado, não existe ainda a lei. Alguns filhos já entraram na justiça pedindo danos morais, mas o tempo é um dificultador, a maioria dos magistrados consideram que os "crimes" estão prescritos.”, explicou.

Pai de cinco filhos e casado desde 1964, Antônio ainda espera receber a indenização em vida. "Quando chega dia de finados, eu venho ao hospital para acender velas. Eles estão enterrados aí. Esse dinheiro não vai pagar o sofrimento, mas é justo que a gente receba pelos danos", comentou. 

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Deitado em uma cama dentro da enfermaria para hansenianos no Hospital da Mirueira, o aposentado José Ancelmo, 80, é integrante do pequeno grupo que restou por lá. Um papel ofício colado na parede ao seu lado o identifica de longe. Com letras escritas por um hidrocor preto, qualquer pessoa ao entrar na sala já sabe quem é aquele senhor. O procedimento é praxe para todos pacientes, mas não precisaria estar ali como auxílio para o lembrete. Todos no hospital conhecem seu Ancelmo e sua história de vida. Carismático e muito querido, o senhor é lembrado pela lucidez e simpatia para conversar com qualquer um, conhecido ou não.

Ancelmo é cego desde os 38 anos e também não pode mais se locomover sozinho. Por causa das consequências da hanseniase, precisou amputar os dois pés e as mãos ficaram sequelados e com tremores constantes. Ele está bem acomodado com uma fralda descartável e parece até que voltou a ser criança. Não fosse a tonelada de histórias que carrega, poderia voltar a ser um bebê.

Ele aproveitou a vida ao máximo até quando sua saúde permitiu. Gostava de tomar chopp em barzinhos, ouvir Nelson Gonçalves e dançar. A vida era um barato para Ancelmo, que antes mesmo de iniciar a conversa já canta versos que o fazem lembrar dos tempos da boemia, no centro do Recife.

Senhor,

Aqui estou eu de joelhos

Trazendo os olhos vermelhos

De chorar, porque pequei



Senhor, 

Foi um erro de momento

Não cumpri o mandamento

O nono de vossa lei



Senhor,

Eu gostava tanto dela

Mas não sabia que ela

A um outro pertencia



Perdão,

Por este amor que foi cego

Por esta cruz que carrego

Dia e noite, noite e dia



Senhor,

Dai-me a vossa penitência

Quase sempre a inconsciência

Traz o remorso depois



Mandai,

Para este caso comum

Conformação para um

Felicidade pra dois...

É nas letras da canção 'Novo Mandamento', de Cauby Peixoto, que a memória se faz viva e presente. A juventude bem aproveitada orgulha Ancelmo, que também adorava dançar. 

Ancelmo entrou no hospital aos 16 anos, mas passou períodos morando nos arredores da região da Mirueira, quando tinha melhora. Depois adoecia novamente e aí voltava.  Ele é natural da Paraíba e nasceu na roça. Desde os cinco anos já aparentava estar doente, mas a família não sabia ao certo o que poderia ser. Um dia seu primo montou com ele em um cavalo e foram a um povoado próximo para o atendimento médico. 

Quando relembra deste dia, o senhor lamenta a humilhação sofrida. O médico explicou o que ele tinha e falou na frente de todos que ao retornar para sua casa, todos seus pertecens precisavam ser separados, até mesmo o copo de água. "Voltei chorando muito no cavalo, nunca tinha sido tratado daquele jeito", lamentou.

"Era 1954. Estava em casa sofrendo muito e meu cunhado me levou em Serra Branca. Fiquei aguardando o atendimento. O dono da farmácia me colocou logo na frente da fila porque eu estava muito doente. O médico mandou logo eu me afastar. Perguntou se eu tinha mãe ou pai. E continou escrevendo em um papel. Ele me entregou a receita médica e tinha que tomar cinco injeções todos os dias e eu saí chorando. Quando eu cheguei em casa e contei a minha mãe, ela disse para eu não me preocupar", detalhou Ancelmo.

Registro de um aniversário de Ancelmo. Ele canta ao lado de uma amiga. Foto: Arquivo Pessoal

Anos depois foi transferido para se tratar no Hospital Geral de Mirueira e entre as saídas e retornos, fez muitos amigos, conquistou corações e repensou a vida. “Sou internado há 64 anos e estou vivendo mais alegre e feliz”, disse.

Ancelmo conhece cada esquina do hospital. Mesmo após as reformas com o passar dos anos, ele ainda sabe onde cada instalação fica. Frequenta atualmente o centro espírita porque foi na religião que encontrou paz. 

Casou duas vezes. Com a segunda esposa, que também estava internada na colônia, teve uma filha. A criança nasceu no dia 8 de março de 1965 e no mesmo dia foi enviada ao preventório, como era o costume da época. . “Eu me arrependo de colocar a minha filha lá, mas não havia outra maneira. Eu já estava com uma condição física ruim e minha família era toda sertaneja, não tinha ninguém para tomar conta dela", afirmou. 

A pequena Dolores Anselmo Barbosa passou os primeiros anos de vida na Várzea. Os pais conseguiam tirar a licença vez ou outra para encontrá-la. Os internos podiam sair do hospital por algumas horas ou alguns dias. Bastava fazer os exames e ser detectado que estava “negativo”. O médico dava uma licença que valia mais do que qualquer outro documento. Esse papel dizia o tempo que os pacientes podiam ficar na rua. “Era um documento que se a gente fosse chamada atenção na rua, podíamos mostrar e ficava tudo bem", disse ele.

Na conversa, Ancelmo relembra o primeiro encontro com a filha, aos quatro anos. Ouça abaixo:



Quando a criança completou onze anos, ele teve uma melhor condição e tirou a filha daquele local. "Ela não ficou aqui e foi morar na casa do meu enteado em Santo Amaro", contou. Atualmente, ele e Dolores são próximos. Ela está com 54 anos e visita o pai na Mirueira com frequência. O neto vai ao hospital todos os dias para dar banho no avô. "Logo mais ele chega por aí, o meu netinho Diego Anselmo", falou.

A saudade de casa sempre foi grande, mas a necessidade do tratamento era uma realidade "Esse era o mundo de todos internados. Era aqui. Aos poucos foram se espalhando. Uns pediam alta e iam embora. Outros a família vinha buscar e outros partiam para um mundo melhor. A vida é boa de se viver, só quem não sabe viver a vida é quem sofre muito. Eu não sofro".

Clique nas fotografias abaixo para ter acesso às reportagens:



"O passado presente presente e a dor do afastamento pela hanseníase"

"Helena Bueno, afastada de seus pais no dia do nascimento"

"Achei que nunca mais ia rever meus filhos", assume mãe



"Maus-tratos e abusos eram práticas comuns no orfanato"







"Isolamento desnecessário não controlou surto de hanseníase"



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