Após boticas, ondas farmacêuticas formam expansão do setor

No período colonial brasileiro, boticários deram início a um trabalho que antecedeu a atuação dos farmacêuticos. Após essa fase, ondas moldaram o mercado

por Nathan Santos seg, 28/10/2019 - 09:10

Farmácia localizada em Fortaleza, com dois mil metros quadrados, é considerada a maior da América Latina. (Nathan Santos/LeiaJáImagens)

Com 2 mil metros quadrados de área construída e um conjunto de 15 mil produtos, a unidade da rede de farmácias Pague Menos, em Fortaleza, considerada a maior da América Latina, é a representação nata da expansão de um dos segmentos econômicos mais fortes do Brasil. As escadas rolantes da loja, dando ao local um ar de centro de compras, conduzem clientes impressionados com a grandeza física do empreendimento, em um exemplo claro de como as empresas de ponta do ramo farmacêutico ampliam suas lojas, quadro de funcionários e gama de produtos, obtendo resultados lucrativos e remando contra a crise econômica que afeta diferentes setores da sociedade.

Ao passear entre os corredores do estabelecimento, o professor de matemática Ricardo Rocha, de 35 anos, compara a unidade a um shopping. Cliente assíduo de farmácias, Rocha questiona, porém, como o segmento expandiu largamente sua atuação no Brasil? O professor nunca imaginou que, por trás de toda a criação da gigantesca farmácia em Fortaleza e do intenso crescimento das demais companhias nação a fora, existe uma longa história que perpassa pelos principais capítulos da abrangência do setor farmacêutico no País.

No Brasil, os primeiros relatos de atuações que antecedem o trabalho farmacêutico são oriundos do período colonial. Segundo publicação de 2011 da Revista Brasileira de Farmácia (RBF), de autoria dos farmacêuticos Mariana Linhares e Mariana Martins Gonzaga do Nascimento, os boticários, apontados como “curandeiros ambulantes”, percorriam as populações a burros “mascateando remédios e drogas para doenças humanas e animais (Gomes-Júnior, 1988)”. Existe ainda, conforme o estudo, a informação de que os jesuítas também criaram farmácias e boticas, com o objetivo de prestar assistência em seus colégios, “colocando um irmão para cuidar dos doentes e outro para preparar remédios”.

De acordo com a RBF, em São Paulo, o “irmão que preparava os remédios era José de Anchieta, por isso podemos considerá-lo o primeiro boticário de Piratininga (Gomes-Júnior, 1988)”. Conforme o professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e doutor em ciências farmacêuticas, Danilo Bedor, a história aponta que o boticário, de fato, deu origem ao farmacêutico. “O farmacêutico vem do boticário, aquele que preparava os medicamentos nas boticas, no Brasil Colônia. Existe o pensamento que vem dos jesuítas. Quando eles chegam ao Brasil e começam a tratar as doenças dentro das escolas, passam a manipular medicamentos em maior quantidade, criando estoques”, comenta o professor. No áudio a seguir, o docente explica como se dava a preparação dos remédios do período.

Em 1640, as boticas foram autorizadas como comércio no Brasil. Nesse período, de acordo com a publicação da Revista Brasileira de Farmácia, iniciou-se o que podemos considerar um processo de expansão desses estabelecimentos, ainda de maneira rústica. “Elas se multiplicaram de norte a sul, e devido à facilidade de abertura, muitos o faziam, principalmente, devido à expectativa de bons lucros com o negócio. Consistiam em casas comerciais ou lojas onde o público se abastecia de remédios. Eram dirigidas por boticários, que nada mais eram que profissionais empíricos, às vezes analfabetos, possuindo apenas conhecimento de medicamentos corriqueiros e possuindo uma carta de aprovação do físicomor de Coimbra. Botica também era a denominação do compartimento existente nos hospitais, civis e militares, destinado ao preparo e à administração de medicamentos aos doentes internados (Gomes-Júnior, 1988; Filho & Batista, 2011)”, diz trecho da publicação da Revista Brasileira de Farmácia.

A publicação indica ainda que o ensino de farmácia no Brasil começou no ano de 1824, a princípio como uma cadeira da formação em medicina. Posteriormente, em 1839, duas escolas de farmácia foram criadas em Minas Gerais, sendo uma em Ouro Preto e outra em São João del Rey. “Porém, apesar das diversas instituições de ensino de farmácia distribuídas pelo país, no século XIX, a passagem do comércio de botica para farmácia, com um farmacêutico formado em sua direção, não foi nada fácil. Os farmacêuticos e boticários tinham pouca diferença para a maioria da população e para os legisladores, e o farmacêutico só toma seu espaço exclusivo na produção de medicamentos definitivamente depois de 1886 após diversas batalhas. Já no início do século 20, o farmacêutico tornou-se o profissional de referência para a sociedade nos aspectos do medicamento, dominando não só a prestação de um serviço que visava a ‘correta utilização do medicamento’, mas também a produção e comercialização do arsenal terapêutico disponível na época (Valladão et al., 1986)”, consta na pesquisa da RBF.

O estudo explica ainda que a farmácia se tornou um centro de irradiação cultural, aproximando não apenas as pessoas que buscavam remédio, “mas também os demais que procuravam novidades e notícias do mundo quando eram escassos os meios de comunicação dos acontecimentos político-sociais (Gomes-Júnior, 1988)”. Porém, a partir da segunda metade da década de 30, diante da expansão da indústria farmacêutica, os “preparados magistrais foram quase inteiramente substituídos pelas especialidades, ou seja, medicamentos preparados industrialmente com antecedência e apresentados sob uma embalagem particular”. Como reflexo, a atividade de “fazer” o medicamento, que tradicionalmente caracterizava o perfil do farmacêutico, despareceu quase por completo, de acordo com o texto da RBF. “O modelo de prática predominante na farmácia comunitária passou a ser a orientação e dispensação farmacêutica (Dupuy & Karsenty, 1974; Reis, 2003; Filho & Batista, 2011). Esse processo transformou as ações que aproximavam o farmacêutico do médico e de seus clientes em atos vazios de um sentido transcendente às relações comerciais”, consta na publicação da Revista Brasileira de Farmácia.

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De acordo com o conselheiro do Conselho Federal de Farmácia (CFF) Gerson Pianetti, após a Segunda Guerra Mundial, o desenvolvimento industrial disparou e, por consequência, o setor farmacêutico não ficou para atrás. Pianetti explica que o Brasil e outros países passaram a consumir produtos e serviços oriundos dos Estados Unidos; empresas farmacêuticas seguiram essa dinâmica de “cópia de experiências exitosas dos americanos”.

No decorrer da história, no período dos anos 80, os consumidores tinham à disposição as farmácias tradicionais. Eram estabelecimentos que apenas vendiam medicamentos; lojas pequenas, com balcão e prateleiras com remédios, marcaram a fase.

Primeira onda

Já nos anos 90, diante da influência americana oriunda das grandes drugstores, o Brasil começa a implantar modelos de farmácias que fogem do tradicional, formando o contexto de primeira “onda” que explica a expansão do setor farmacêutico no País. As lojas dessa época eram estabelecimentos que possuíam, além de remédios, produtos para o dia a dia, como itens de beleza e até de alimentação. “Nos Estados Unidos, na drogaria você encontra de tudo. É quase um mini supermercado. Além disso, todo medicamento ético, de prescrição, fica em uma área restrita e reservada onde existe um profissional farmacêutico”, explica a doutora em engenharia de produção e pesquisadora do segmento de farmácias pela Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP), Vânia Passarini Takahashi.

Segundo o coordenador do Programa de Assistência Farmacêutica da Associação Brasileira das Redes de Farmácias e Drogarias (Abrafarma), Cassyano Correr, a diversidade de produtos marca a primeira onda da expansão das grandes redes no Brasil. “Nos anos 90, a farmácia começou a diversificar os produtos que vendia, começando um movimento que ficou popularizado como drugstore a partir da influência americana. Empresários do Brasil, em viagem para os Estados Unidos, viram o que estava acontecendo lá. As farmácias passaram a vender, além de remédios, alimentos, presentes, brinquedos, entre outros”, detalha o coordenador do Programa de Assistência Farmacêutica da Abrafarma.

Essa mistura de produtos e o tamanho físico das lojas, que passou a ser maior, são as principais características dos estabelecimentos da primeira onda. “No modelo tradicional, o cliente ia até a farmácia para comprar um medicamento porque tinha receita, o que chamados de destino. Na medida em que você passa a ter muitas farmácias à disposição, elas ficam mais próximas das pessoas. A vantagem de você investir em um mix de produtos é que, além de atrair as pessoas que têm que comprar medicamento, você atrai as pessoas que estão em rotina. Um modelo alimenta o outro. Tem a ver com a vida moderna, congestionamento no trânsito, entre outros aspectos”, comenta o representante da Abrafarma.

Assim como Cassyano Correr, a farmacêutica mestra em gerontologia e especialista em Saúde Pública e Saúde da Família, Alamisne Gomes da Silva, aponta que o modelo de farmácias americano influenciou, de maneira considerável, o mercado brasileiro. “Inicialmente, os empresários donos de farmácias no Brasil queriam uma forma de rentabilizar mais seus negócios, e uma das estratégias foi utilizar justamente a comercialização de outros produtos não farmacêuticos. Para os empresários foi interessante porque aumentou a questão do lucro e das vendas, não só de produtos farmacêuticos. Para o consumidor, ele passou a se comportar de uma forma diferenciada, uma vez que passou a ter acesso a produtos de utilidades básicas, até mesmo próximo de suas residências. No Brasil, as grandes redes pioneiras nesse processo foram a ‘Araújo’ no Sul e aqui no Nordeste temos a Pague Menos. Produtos de perfumaria, dermocosmético, sorvete e refrigerante estavam à disposição dos clientes nas farmácias”, comenta a mestra.

Segunda onda

No decorrer do processo de expansão econômica do segmento farmacêutico no Brasil, o período a partir dos anos 2000 é considerado a segunda onda. Essa fase é marcada pelo início da venda de dermocosméticos. “Aqui você tem o movimento da beleza. Com a influência das farmácias americanas e europeias, de países como França e Itália, você passa a ter diversidade grande de produtos, muitos lançamentos no mercado da dermatologia. Foi nessa época que as farmácias começaram a colocar dermoconsultores para atender os clientes”, descreve Cassyano Correr.

Terceira onda

“Desde 2014 passamos a viver a terceira onda. É a fase da diversificação de serviços, que tem a ver em converter os espaços da farmácia em espaços de saúde. Esse movimento significa oferecer serviços de vacinação, acompanhamento de pacientes crônicos, consultas com farmacêuticos e outros profissionais. É o que a gente chama de revolução da saúde por meio das farmácias”, explana o integrante da Abrafarma.

Uma nova onda começa a ganhar forma. Ainda lenta, sem prazo claro para ser colocada em prática. É notório, no entanto, que a tecnologia será uma figura primordial do processo de reformulação na relação entre as grandes redes e os consumidores. Confira as próximas reportagens e saiba mais detalhes sobre a quarta onda da expansão farmacêutica na última matéria da nossa série, que aborda o futuro do segmento no Brasil.

Matéria integra a série do LeiaJá ‘Expansão farmacêutica: dos primórdios ao futuro’. Trabalho explica como as grandes redes de farmácias expandem seus negócios no Brasil e registram faturamentos que contrariam a crise econômica. Leia, a seguir, as demais reportagens:

Expansão farmacêutica: dos primórdios ao futuro

Redes de farmácias combatem crise com aumento de vendas

Novo farmacêutico está transformando clientes em pacientes

As projeções do segmento farmacêutico

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