Como é ser uma empreendedora negra no Brasil

Conheça a trajetória profissional de duas mulheres, suas dificuldades, apoios e inspirações

por Caroline Nunes qua, 20/11/2019 - 15:06

A partir da década de 1970 o Brasil comemora o Dia da Consciência Negra, em 20 de novembro, sendo escolhida tal data em respeito a Zumbi dos Palmares, símbolo de resistência ao regime escravocrata, assassinado em 1695. O marco serve, principalmente, para refletir sobre a inserção do indivíduo negro na sociedade nacional, assim como pontuar questões relacionadas à igualdade racial.

A história associa Zumbi como companheiro de Dandara que, como ele, também lutou de forma ativa pela libertação total das negras e negros no Brasil. Dandara, de acordo com a Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana, é descrita pelo pesquisador da cultura afro-brasileira e compositor Nei Lopes como “personagem lendária da história de Palmares. Celebrada como a grande liderança feminina. Contudo sua real existência está ainda envolta em uma aura de lenda”.

A vivência de Dandara divide opiniões, pois existe a real possibilidade de que ela possa ter sido a condensação de várias mulheres negras quilombolas em uma só. Lendária ou não, Dandara simboliza o trabalho árduo das mulheres pretas e demonstra a importância da individualidade de pensamento feminino perante à problemática sexista no que tange a liderança e o sucesso em diversos campos, inclusive o do trabalho.

A mulher negra e o empreendedorismo

De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), por meio da pesquisa “Desigualdades Sociais por Cor ou Raça”, as mulheres pretas ou pardas continuam na base da desigualdade de renda no Brasil. Em 2018, elas receberam, em média, menos da metade dos salários dos homens brancos (44,4%), que ocupam o topo da escala de remuneração no país. Além disso, uma pesquisa do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), divulgada em outubro deste ano (2019), mostrou que 49% das mulheres negras, que possuem seus próprios negócios, começam a empreender por necessidade.

Para a empresária capixaba e criadora de uma linha de fitocosméticos Paula Breder, de 40 anos, as mulheres negras precisam transpor diversas barreiras quando se propõem a empreender. “Todos os dias quando acordo eu tenho plena consciência que serei julgada, questionada. Tenho sempre a impressão que para outras mulheres as coisas sempre são mais simples”, diz a empresária. “Meu marido [Márcio Breder, 36] adoeceu e eu precisei substituir a renda que ele tinha. Depois de um ano que eu estava estudando sobre fitoterapia comecei a vender os meus produtos justamente por isso”, explica.

A ideia de desenvolver fitocosméticos (cosméticos cujos princípios ativos são extratos integrais de vegetais e óleos) começou de maneira discreta: Paula produzia apenas para si mesma e para algumas mulheres próximas, pois era revendedora de outra marca de produtos. Ela diz que sua situação financeira era estável e conseguia complementar a renda familiar trabalhando como cabelereira – apesar de não possuir todos os equipamentos que um salão de beleza dispõe. Durante o atendimento diário de suas clientes, a profissional percebeu que as mulheres estavam consumindo diversos produtos para o cabelo e não se sentiam satisfeitas com o resultado. “Como eu tinha muito acesso a ativos naturais, manteigas, óleos, extratos e plantas, por morar no interior do Maranhão, comecei a fazer algumas alquimias e a estudar sobre fitoterapia de forma autodidata”, explica.

A empresária diz que o assunto lhe despertou bastante atenção, principalmente pelo resultado de suas misturas superarem fórmulas industrializadas de marcas famosas.

Observando os resultados e se aprofundando nos estudos, a empreendedora começou a fazer um curso de fitoterapia, a fim de formular seu primeiro fitocosmético capilar. “Comecei a perceber que os produtos que eu desenvolvi apresentavam resultados superiores até do que os produtos que eu vendia de marcas conhecidas. Foi nesse momento que eu comecei a estudar mais, principalmente patologias do couro cabeludo e, após um ano, vendê-los”.

Atualmente, Breder investe em e-commerce e mantém uma equipe de 12 pessoas próximas a ela, além de 120 revendedores credenciados em todo o Brasil.  Paula viaja o país oferecendo palestras e treinamento de seus produtos – em salões de beleza, principalmente – e, segundo a empreendedora, planeja contratar mais pessoas até o final de 2019.

Paula Breder durante treinamento sobre a utilização de fitocosméticos. Foto: acervo pessoal

Trabalhos informais, objetivos e sonhos

Além da necessidade financeira, a escassez de empregos formais piora a situação das mulheres negras brasileiras, pois a taxa de trabalhadores informais (serviços sem registro em carteira ou vínculo empregatício, o que inclui a área artística, geralmente) é maior entre pretos ou pardos. Enquanto 34,6% dos trabalhadores brancos estão em empregos informais, entre os pretos ou pardos o percentual é maior: 47,3%, segundo a pesquisa do IBGE. Dados da PNAD Contínua mostram também que a crise econômica atingiu mais as mulheres pretas: de 4,1 milhões de desempregados que o país tem hoje, 63,2% são mulheres negras. No primeiro trimestre do ano passado, o desemprego atingiu 73% das mulheres. Entre as negras, o percentual foi de 96%.

Para a artista visual Di Monique Novaes, 31 anos, trabalhar com arte é estar atrelada à ideia de somar a renda com outros tipos de serviço. “A palavra artista demorou para ficar confortável na minha boca por parecer muito pedante, principalmente por vir acompanhada de comentários como ‘você é artista/alguma outra coisa’, como garçonete, operadora de caixa e afins. É impossível viver apenas de arte por enquanto, portanto preciso complementar a renda com outros tipos de trabalho, ainda que eu tente colocar um pouco de minha arte em todos esses ambientes”, desabafa.

Di Monique é natural de Iguape – litoral sul – e veio para a capital paulista com o sonho de ser artista visual, em tudo que o termo contempla: artes cênicas, pintura, escultura, performance e desenho, entre outras coisas. Licenciada em Artes, atualmente trabalha com encomendas de quadros e esculturas e é líder de equipe em um restaurante na região central de São Paulo, o Mira – antigo Mirante Nove de Julho. O espaço é de livre acesso, prega a diversidade cultural e expõe obras de diversos artistas, inclusive de Novaes.

Obra "Terra", exposta no Mira. Foto: Caroline Nunes

Contudo, a artista sonha em um dia ter uma casa de cultura em que possa oferecer oficinas e viver confortavelmente apenas de seus trabalhos artísticos. “Eu quero viver essa arte, expandi-la. Ter um espaço que seja um lugar de afeto em que as pessoas possam aprender arte, praticar e conversar sobre tudo que está sendo feito ali”. Di Monique ainda diz que deseja lecionar para crianças de diversas capacidades cognitivas de forma inclusiva.

Já a empresária Paula Breder tem como objetivo expandir os negócios, visando estabelecer lojas físicas por todo o país. “Eu quero que as pessoas tenham a opção de não usar ativos nocivos em seus cabelos. Que tenham a opção de não usar química e que entendam o poder das plantas. Quero ter um espaço PB [sigla de Paula Breder] em cada canto do Brasil e também no exterior”, declara. “Os nãos que eu tomei nunca me fizeram desacreditar do meu trabalho, muito pelo contrário”, completa a empreendedora.

 

Inspirações e apoio afetivo

Para Paula Breder, uma mulher negra inspiradora é a apresentadora de televisão, atriz e empresária norte-americana Oprah Winfrey. “A imagem dela já é muito representativa, por ter chegado onde chegou sendo uma mulher negra. É a referência-mor de mulher bem-sucedida”, explica.

Para Di Monique, a inspiração de todo o seu trabalho e de outros campos da vida é oriunda das mulheres. Criada em um ambiente composto majoritariamente pelo gênero feminino e sem a presença do pai, a artista recorda que observava situações cotidianas com admiração pela feminilidade ao redor dela, fato que inspirou sua série artística “Pele”, que retrata diferentes mulheres nuas. “Inspiração? Elza Soares. Alcione, Nina Simone, Ângela Davis, Daniele Almeida – ex-educadora do Museu Afro. Marta Souza e Márcia Saraiva também, que serviram de modelos para a minha série de obras. São todas mulheres negras, fortes, que eu realmente me espelho. Mulheres que vi de perto e outras que somente pela televisão”, afirma Novaes.

No recenseamento mais recente, realizado pelo IBGE, dados sobre a mulher negra brasileira chamaram a atenção: o levantamento aponta que mais da metade delas – 52,52% – não vive em união estável, independentemente do estado civil, e não possui uma rede familiar de apoio emocional e afetivo.

Breder acredita que, apesar de todas as barreiras que uma mulher negra enfrenta, tanto no campo profissional quanto na questão da autoestima intelectual, o bom ambiente familiar e profissional são essenciais para seguir em frente. “Meu marido suporta e apoia tudo que me aflige, está ao meu lado enfrentando todos os meus leões diários. E a minha filha [Acsa Raquel, 12] também. Ela entende a minha ausência para trabalhar, entende a minha luta. Depois deles, me apoio em minha equipe de trabalho, que é sensacional. Meninas fortes que nunca trabalharam antes, vestiram a camisa da empresa e criaram uma expectativa profissional gigante. Essa é a minha rede de apoio”, completa Paula.  A empreendedora diz que o mês de novembro, em especial a comemoração do Dia da Consciência Negra, representa gratidão e reflexão sobre às expectativas impostas à uma mulher negra. “Neste dia em especial, eu me sinto vitoriosa, pois, segundo a expectativa – e enquanto mulher negra – não era para eu estar aqui”, diz.

A empresária Paula Breder. Foto: Divulgação

Para Novaes, dia 20 de novembro significa, principalmente, atenção e visibilidade. “Tento retratar pessoas negras, em minhas duas séries [‘Pele’ e ‘Pretas’], para que elas sejam visíveis. É um dia de comemoração e eu penso que posso contribuir com meu olhar para que essas pessoas pretas, essas mulheres, sejam vistas e suas questões, tão particulares, enxergadas”, declara a artista.

A artista visual Di Monique Novaes. Foto: Caroline Nunes

Sobre as redes de apoio afetivo e inspiração, a artista se emociona e enfatiza que a figura materna é a fonte de sua força. “Tenho uma rainha em seu trono fixo. Eu louvo a minha mãe, dona Eliana Novaes, por toda a minha existência. Além de artista, ou qualquer outra nomenclatura, eu sou filha dessa mulher magnífica”, completa.

Eliana Novaes, mãe da artista, retratada na série "Pele". Foto: Caroline Nunes

Di Monique ainda acredita que para que exista visibilidade feminina dentre os espaços de profissionais é necessário que as pessoas “apoiem o trabalho das mulheres negras. Consumam seus produtos, valorizem sua arte, inspirem-se com seus sonhos e deem voz aos seus empreendimentos”, finaliza.

 

Serviço

Paula Breder

Site oficial:  https://paulabreder.com.br/wp2/

Loja: www.lojapaulabreder.com.br/

Página: facebook.com/PB.Fitocosmeticos/

Contato: (27) 99885-6336/ (27) 3063-6336/ contato@paulabreder.com.br

 

Di Monique Novaes

Página: facebook.com/dimoniquearte/

Instagram: @dimoniquenovaes/ @mirantemira

Contato: moniquedinovaes@gmail.com

 

COMENTÁRIOS dos leitores