Dor de mãe: “Eu nunca amamentei meus filhos”

Terceira reportagem da série "Sobreviventes do isolamento e do preconceito" mostra o drama de quem teve filhos na colônia de hansenianos de Marituba, no Pará

qui, 16/01/2020 - 11:08
Caroline Monteiro/LeiaJáImagens Ana Dias Pantoja mostra foto com suas companheiras do pavilhão infantil feminino da colônia de Marituba Caroline Monteiro/LeiaJáImagens

No abrigo João Paulo II, um dos quartos chama a atenção pelo capricho. Da janela, dá pra ver várias mudas de plantas. Na cozinha, panos de prato decorados com crochê. Em cima da geladeira, um porta-retrato com a foto de mãe e filha. No quarto, a colcha de cama combinando com as fronhas cheias de borboletas, iguais aos adesivos colados na geladeira.

Quem mora ali é Maria Lemos de Sousa. Ela descobriu que estava com hanseníase aos 7 anos de idade, mas só foi internada na colônia de Marituba aos 14, isso porque sua mãe não queria que ela fosse levada para o leprosário pois sabia que perderia o contato. Eram ribeirinhas, e realizar as visitas seria algo difícil. Mas não teve jeito. Maria foi denunciada à vigilância sanitária e seguiu para a colônia de leprosos, a prisão perpétua dos atingidos pelas chagas malditas.

Quando chegou na colônia, o susto: descobriu que estava grávida de 4 meses. Na hora do parto ficou sabendo pelas enfermeiras que não poderia tocar nem amamentar o seu bebê. A filha foi doada para uma família que ela sequer conhecia. “Mandaram eu dar para uma família, eu dei. Mas acabou que a menina morreu. Já estava sentando a bichinha, faleceu com uma espinha na garganta, foi o que me disseram”, contou.

Mesmo com a dor da perda, Maria precisou retomar a vida novamente. Casou-se na colônia e teve mais seis filhos. “Eu nunca amamentei meus filhos, nenhum deles. Eles se criaram tudo lá no Educandário. Por isso que eu digo: a gente não tem muito amor pelos filhos porque a gente não criou. Eu era só ter, levavam. Eu tive sete filhos todos dentro da colônia.”

A filha Ivonete, cuja foto está estampada no porta-retrato, tem 46 anos e viveu no educandário até os 8 anos de idade. Também foi contaminada pela hanseníase, mas fez o tratamento precocemente e não adquiriu nenhuma sequela da doença.

A política de isolamento devidamente respaldada pelo governo e reconhecida como única medida de combate à disseminação da lepra deixou um buraco irreparável na relação entre pais e filhos. No ano de 1940 foram instituídas algumas normas para a prevenção da doença, e uma delas abordava diretamente sobre os filhos. Pela Lei nº610, nos Artigos 15 e 16, a ordem de segregação era clara: “Todo recém-nascido, filho de doente de lepra, será compulsória e imediatamente afastado da convivência dos pais. Os filhos de pais leprosos e todos menores que conviviam com leprosos serão assistidos em meio familiar ou preventórios especiais”.

De maneira desumana, bebês eram arrancados de suas mães logo após o nascimento e levados imediatamente para um educandário, um tipo de orfanato que, na maioria das vezes, era administrado por freiras. Em Belém, todo filho de hanseniano foi encaminhado para o educandário Eunice Weaver, localizado próximo à Base Aérea, no bairro da Pratinha.

Ana Dias Pantoja Saraiva também passou pela mesma situação da sua colega de pavilhão. Ficou grávida duas vezes dentro da colônia, e viu suas filhas serem arrancadas do seu ventre e levadas para o educandário, sem o direito de receber um cheirinho de mãe. Ela conta que se sentiu muito satisfeita porque ainda conseguiu ver suas filhas quando nasceram, mesmo que fosse de longe. “Tinha mãe aqui que tinha o filho e só recebia a notícia que o filho tinha falecido. Que nada! Às vezes eles tinham era doado a criança”, falou. 

Ana explicou que nas poucas vezes em que foi visitar as filhas no educandário não conseguiu nem tocar nas crianças. “Não podia nem chegar perto das crianças que as irmãs não deixavam. Não podia levar nada, nem comida, nem dinheiro. Eu fui pegar na minha filha quando já era grandinha.”

Além do isolamento, na colônia também existiam diversas regras e punições. Quem cometesse alguma infração já estava ciente que iria responder. Quem praticasse o ato sexual antes do casamento, por exemplo, era obrigado a casar.

Foi o que aconteceu com Ana, que conheceu seu marido dentro da colônia, casou-se, mas alega nunca ter sentido amor pelo cônjuge. “Aqui a regra era clara, tinha que obedecer. Aí eu conheci meu marido, mas eu nem gostava dele, era só aquele negócio, sabe. Aquele desespero, aquela influência, porque era muito fechado aqui dentro, a gente vivia isso aqui”, disse.

Ana ficou grávida e encurralada pela situação. Ela e o pai da criança tiveram que “juntar as escovas” e seguir com o matrimônio conforme as regras e protocolos da colônia. Ela conta que o diretor, quando soube do que tinha acontecido, ofereceu-lhes duas opções: casamento ou transferência para a colônia do Prata, que ficava afastada cerca de 150 quilômetros da capital e que negligenciava ainda mais os pacientes. Ana afirma que ninguém queria ir para lá.

Sem saída, o que lhes restava era casar, porque nem o bebê com eles iria ficar. “Eu casei, mas eu nem queria, eu tentei pegar uma amizade, mas não era amor, a gente só estava habituados. Ele era muito diferente de mim, muito diferente. Aí fomos morar no pavilhão dos casados e ficamos casados nove anos”, disse.

Doença milenar

Apesar da hanseníase ser uma doença milenar, ela ainda encontra dificuldades para se libertar das profundas raízes do preconceito e do medo. Por muito tempo pessoas infectadas pelo bacilo de Hansen foram isoladas da sociedade e obrigadas a viver como indigentes em cavernas ou florestas, abandonadas para se deteriorar.

Acreditou-se por vários anos que a moléstia era uma espécie de maldição. As chagas de um castigo divino.

Na Idade Média, o tratamento contra os hansenianos foi bem mais cruel. Os enfermos tinham seus laços cortados com a sociedade, e na maioria das vezes tinham que ser considerados legalmente mortos, eram obrigados a esquecer da família, bens etc. O doente ainda era obrigado a usar vestimentas específicas que o identificassem como tal e fazer soar um sino ou algum objeto que causasse ruído e avisasse aos sadios da sua chegada. O sistema era tão perverso e rigoroso que, para desfazer definitivamente as ligações com a sociedade ou com vida que levava antes da doença, rezava-se uma missa para oficializar a separação.  

Antes de serem encontrados a cura e o tratamento correto para a hanseníase, alguns pacientes passaram por diversas formas de experimento, muitas vezes com uso de substâncias que lhes causaram muito mais danos que benefícios. 

Reportagem e texto: Adrielly Araújo.

Edição: Antonio Carlos Pimentel.

 

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