Sobreviventes do isolamento e do preconceito

Em meio à calmaria e à solidão dos corredores do abrigo João Paulo II, em Marituba, no Pará, estão escondidas dores e memórias de um passado que segregou famílias, destruiu sonhos, retirou a liberdade e marcou para sempre a vida de pessoas atingidas pela hanseníase. Reportagem e texto: Adrielly Araújo. Fotos: Caroline Monteiro e Adrielly Araújo. Edição: Antonio Carlos Pimentel.

qui, 16/01/2020 - 10:15
Caroline Monteiro/LeiaJáImagens Pátio de um dos pavilhões do abrigo João Paulo II, em Marituba, Região Metropolitana de Belém Caroline Monteiro/LeiaJáImagens

“Faz 50 anos que eu não vejo a minha família, eles nem sabem que fui mandado pra cá.”

No primeiro quarto, do bloco 05, do pavilhão masculino, mora um senhor de 61 anos, conhecido como “Peixinho”. Um homem pacato, tímido, quase não exprime sentimentos. Quem o vê consegue perceber a angústia em seu olhar. Jorge da Silva foi um dos condenados à exclusão. Interno da ex-colônia de hansenianos de Marituba, perdeu o vínculo e o contato com a família e se viu obrigado a transformar a antiga prisão em lar.

Nascido no município de Breves, no Marajó, interior do Estado do Pará, quando criança era um menino travesso que costumava brincar e tomar banho no rio, mas aos 10 anos viu sua vida tomar um rumo completamente diferente. Após uma inspetoria de saúde médica, realizada todo mês nas cidades do interior, ele foi examinado e recebeu o diagnóstico temido: estava com a lepra. Começou um pesadelo. Foi arrancado e levado para longe dos braços da família, contra a sua vontade.

“Não tive nem o prazer de me despedir da família, que na época não era permitido, da feita que fosse diagnosticado não se tocava em nada mais da família. Inclusive, tudo que era meu que tinha na casa foi queimado, não ficou nada”, recorda.

Pela falta de solução do Estado e pouca informação sobre a forma de contágio da doença, pessoas eram submetidas a situações desumanas. A lei da época tratava os pacientes como monstros. A voz de Jorge estremece quando ele lembra de como chegou na colônia. Apenas com a roupa do corpo, foi jogado dentro de porão de um barco, chamado de batelão, responsável por transportar os leprosos daquele tempo.

“Eu vim de lá no porão de um barco, eu e mais doze doentes, só sabíamos o que era dia e o que era noite porque levavam as refeições: café, almoço e janta. Foram três dias e três noites de viagem”, afirmou e silenciou por alguns minutos.

A maioria dos internos da colônia de Marituba chegou lá por rotas fluviais, já que boa parte morava próximo aos rios. Na parte de trás da estrutura da colônia passa um traço do rio Guamá, chamado de rio Mocajatuba. Conforme o tempo passava, as perspectivas dos internos de regressar novamente à sociedade diminuíam. O que lhes restava era aprender a conviver com a saudade e a dor.

“Peixinho” ainda encontrou luz no fim do túnel. Na adolescência, conheceu uma freira, que trabalhava na colônia. Foi ela que resgatou suas esperanças e lhe ofereceu proteção e acalento materno. “Depois que eu, entre aspas, consegui me acostumar aqui, eu passei a ser cuidado por uma freira, foi ela a responsável por tudo que eu sei hoje em dia, pela minha educação, pelo meu trabalho, era ela que me sustentava. Fiz vários cursos, mas Deus não quis que eu trabalhasse”, relatou e acrescentou que era muito grato à irmã.

Estigma e discriminação

A hanseníase é uma doença infectocontagiosa que age de maneira lenta e caracteriza-se por manifestações e evoluções neurológicas e dermatológicas, atingindo nervos periféricos da mão e do pé, como também membros da face, especialmente nariz e olhos, causando vários tipos de mutilações e limitações físicas, principalmente se não houver um diagnóstico precoce. Denominada por muitos anos como lepra, e conhecida desde antigas civilizações, a doença carregou ao longo de sua história um estigma de discriminação e isolamento.

Inaugurada em 1942, a colônia de Marituba, município da Região Metropolitana de Belém, a cerca de 20 quilômetros da capital, tinha o propósito de combater a endemia. Por meio do Serviço Nacional da Lepra, criado um ano antes, além do isolamento compulsório, a colônia de Marituba também teve uma política interna ditatorial, com regras e leis punitivas para qualquer infração.

Doença da pobreza

A hanseníase é uma doença que existe há milênios, mas a proliferação da endemia acontece até os dias atuais. A enfermidade, que deveria ter sido erradicada em 2015, ainda apresenta uma alta transmissão e detecção de novos casos em várias regiões do país, principalmente onde reinam condições de extrema pobreza e falta de atendimento médico.

Conforme os parâmetros do Ministério da Saúde, o Estado do Pará ocupa o 5º lugar no ranking de incidência da doença, com 29,73 casos por cada 100 mil habitantes notificados em 2018, ficando atrás do Maranhão, Mato Grosso, Tocantins e Rondônia. Segundo dados da Secretária de Estado de Saúde Pública do Pará (Sespa), somente em 2019 já foram confirmados 973 novos casos. A negligência e o atraso no combate contribuem para o fortalecimento do estigma e preconceito em relação à doença.

Com o objetivo de afastar de diminuir o preconceito que o termo “lepra” impunha aos doentes, o governo brasileiro proibiu o uso da nomenclatura através da Lei nº 9.010, de 1995. Conforme a nova legislação, a doença passou a ser chamada de “hanseníase”, em homenagem ao médico norueguês Gerhard Amauer Hansen (1841–1912), que descobriu, em 1873, o micróbio causador da infecção, chamado de Mycobacterium Leprae.

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