Memórias do cárcere e o difícil caminho de volta

Reportagem especial mostra relatos de quem passou pelo sistema penitenciário, no Pará, e aponta os programas de ressocialização que contribuem para a reconstrução da vida. Texto e fotos: Caroline Monteiro. Edição: Antonio Carlos Pimentel.

ter, 21/01/2020 - 11:28
Caroline Monteiro/LeiaJáImagens Manu, 44 anos, em seu local de trabalho Caroline Monteiro/LeiaJáImagens

Manu, 44 anos: “A minha experiência de estar presa...eu aprendi muita coisa. Aprendi que a liberdade da gente não tem preço, nem com todo o dinheiro do mundo. Porque o que tu vê, o que tu passa dentro de uma cadeia, é uma coisa que tu não deseja nem para o teu pior inimigo.”

De cabelos presos em um coque, batom vermelho, sempre com um sorriso. Está sentada em um banco de cimento do Bosque Rodrigues Alves, em Belém, Manuela, de 44 anos, mais conhecida como Manu. O fim de tarde está ensolarado, mas com algumas nuvens anunciando a chuva. A entrevista começa após o expediente. Ela trabalha no Bosque há três anos, em um projeto de ressocialização da Susipe (Superintendência do Sistema Penitenciário do Pará).

Por oito anos esteve entregue à vida do crime, fazendo o transporte de entorpecentes de Manaus para Belém, Fortaleza, Imperatriz, no Maranhão, e até Guiana Francesa e Itália. Em uma dessas viagens, trabalhando como “mula” (expressão dada a quem carrega a droga), Manu foi detida pela polícia, em Belém, com 12 quilos de pasta base de cocaína e condenada a doze anos de prisão.

“Foi o surgimento de dinheiro fácil, na verdade. E de adrenalina também. Eu conheço pessoas no mundo do tráfico que entraram por influência de amigos, isso também aconteceu comigo”, diz.

Manu ainda cumpre pena domiciliar, que se encerra somente em 2022. Voltou para a sociedade e para sua vida normal há três anos. Passou cinco anos presa no regime fechado, e dois anos no semiaberto.

A vida na prisão não é nada fácil. Diferentemente do que muitos bradam em discursos nas redes sociais e em conversas do dia a dia, de que há privilégios e mordomias nas cadeias, lá dentro o “bagulho é doido”. Higiene mínima, ambiente totalmente insalubre, disputa de camas e espaço para dormir, sem falar na violência policial.

A situação piora quando o indivíduo em questão, dentro do cárcere, é homossexual. A primeira “ala gay” no Brasil foi criada em 2009, com o objetivo de evitar práticas de violência e garantir a integridade física dos homossexuais. Em 2014, foi determinada pela Secretaria Nacional de Direitos Humanos a ampliação da medida para todos os presídios do país, porém não é o que de fato acontece.

No Pará, há somente celas exclusivas, sem alas. Pesquisadores consideram a ação como algo paliativo, em razão de um contexto de fragilidade e insegurança nas prisões brasileiras.

Durante sua passagem pelo sistema penitenciário, de 2011 a 2017, Manu, que é mulher transgênero, vivia em uma cela com cerca de 35 homens. Nesse período, o presídio em que estava custodiada, no CTM 1 do Conjunto Satélite, periferia de Belém, não possuía as celas somente para homossexuais. Manu foi exposta a todo tipo de constrangimento, humilhação e discriminação. Ela relata que chegou a sofrer tentativa de abuso sexual.

“Na minha vida dentro do cárcere, eu enfrentei e vi muita coisa. Não foi fácil pra mim, que sou homossexual, conviver no meio de 400 presos. No meio de muitos homens eu sofri preconceito, sofri ataques. Então eu tive que me impor, tive que pôr minhas regras. Tive que me respeitar e aprender a ser respeitada como sou até hoje. Foi bem difícil, eu morava com 35 homens dentro de uma cela 6 por 8, e só eu de homossexual dentro”, relata.

Ela ainda conta que só se sentiu segura e tranquila quando casou na cadeia com um chefão do tráfico. O casamento, no entanto, não foi nos moldes tradicionais, com cerimônia, como acontece na maioria dos casos. Eles apenas passaram a viver juntos. Depois de um certo tempo, Manu descobriu que o companheiro era portador do vírus HIV. Após seis anos e seis meses se separaram, mas os dois mantêm uma amizade até hoje.

“Já sofri ameaças, em termo de me pegarem para fazer alguma coisa, mas sempre fui precavida. Casei com um homem muito forte no tráfico de drogas, então eu tive a proteção dele. A gente sempre se preveniu, mas só depois ele foi me contar que era portador do HIV. Fiquei assim mesmo, porque eu gostava dele. Casei lá dentro da cadeia.

Ainda que contasse com o cuidado e segurança por parte do marido, em muitos momentos ela se via sozinha. Totalmente indefesa. À mercê da violência. Era quando a Tropa de Choque visitava o presídio.

A ida à cadeia, de surpresa, era para realizar revistas, em busca de armas e drogas. Todos os internos ficam nus. Manu, sendo mulher transgênero, tem seios. No ato da revista policial, tirava toda a roupa, menos uma miniblusa para não se sentir tão desprotegida e exposta aos olhares de centenas de homens. Não adiantava. Era obrigada a tirar a peça.

“Quando a Choque invade lá dentro, quando ela entra de madrugada, tu tens que sair nu. Eles entram invadindo, quebrando tudo, batendo nos presos. A gente fica pelado numa área muito grande, um encostado no outro. Eles vêm para fazer a revista, mas no meio dessa revista nós somos espancados. A gente leva tiro de borracha e os cachorros que eles colocam para assustar e amedrontar, os rottweilers, os pitbulls, às vezes ainda mordem. Tem muitas coisas que eu já passei. Policiais me deixavam por último só para me bater. Rasgavam minha blusa. Como eu sou mulher trans e tenho peito, então eu não podia sair toda nua. Mas a tropa de choque, toda vez que ia lá, eles queriam me puxar e rasgar minha roupa. Um deles saiu me arrastando e me deu porrada de cassetete”, revelou.

“Então é uma coisa que você se revolta. Só não aconteceu mais porque eu tinha advogado e falei que queria que ele fosse lá nos Direitos Humanos. Porque querendo ou não, quando invadem o cárcere privado, têm que saber que tem pessoas diferenciadas no meio. Que no caso são os homossexuais, que não têm defesa para nada”, conta.

Abandono e preconceito

Manu sabe muito bem o que é lidar com o preconceito e abandono. Na infância, o pequeno Reginaldo da Silva Costa, nascido no interior do Maranhão, foi expulso de casa aos 12 anos de idade pelo pai. Os trejeitos e o comportamento afeminado, que indicavam a homossexualidade, motivaram o pai a tomar atitude drástica: tirá-lo do convívio com a família, pais e seis irmãos.

Ao ser obrigado a sair de casa, Manu perambulou e morou na rua durante a infância. Lutou para sobreviver. Comeu comida do lixo. Foi criado pelo mundo. Não teve o momento de brincadeiras, de ser criança. Já não era mais Reginaldo, adotou um novo nome: Manuela. Dormia em casas, prédios e carros abandonados, ao relento. Uma criança cuidando de outras crianças: parou de estudar aos 12 anos e começou a trabalhar como babá. Em troca de comida e de um lugar para ficar, começou a namorar um homem mais velho, aos 16 anos, mesmo não gostando. Um senhor com idade para ser seu pai.

“Hoje em dia eu já tenho contato, mas é eles lá e eu aqui. Depois de 30 anos reencontrei todo mundo de novo. Eu não tive amor por eles. Aquele amor que tu tens por um pai, por uma mãe. Não tive porque eu fui criada só. Pra mim eles são estranhos. Eu queria só um perdão da minha mãe, dela dizer: ‘Minha filha eu errei,’ mas nunca tive. Me sinto triste porque todo mundo sente falta de sua família, mas no momento eu não posso contar com mais nada. É só eu e pronto”, contou com um semblante de tristeza.

Manu fugiu para Manaus aos 17 anos. A nova cidade parecia trazer um ar de recomeço para sua vida. Foi lá que começou a cortar cabelo. Estudou e aprendeu mais sobre estética e em seguida conseguiu montar seu próprio negócio, um salão de beleza. Arranjou um namorado. Tudo parecia ir bem, parece que de fato tinha conseguido vencer as adversidades do passado e viver uma nova história. Até descobrir que seu namorado era envolvido com o tráfico de drogas. O momento da descoberta foi com a polícia batendo em sua porta. Já era tarde. Foram encontrados entorpecentes dentro de sua mochila. Foi levada junto com ele. Ficou sete meses presa.

No tempo em que ficou presa pela primeira vez, fez amizades e conheceu como funciona o mundo do crime e se jogou de cabeça no tráfico de drogas. Após deixar a cadeia, começou a trabalhar como “mula”. Viajava para outras cidades entregando a droga. Ficou oito anos nessa ocupação, até ser presa novamente. Dessa vez, o tempo enclausurada em uma cadeia seria bem maior. Foi condenada a doze anos de prisão.

Durante o período em que esteve presa, Manu começou a desenvolver atividades dentro da cadeia, como cortar o cabelo dos internos, devido à sua experiência quando era cabeleireira. Também fazia artesanato. Manu conta que as tarefas foram fundamentais para lhe tirar da ociosidade dentro da cela e ocupar seu tempo. Além de preencher o vazio e tristeza que sentia por não receber visitas.

“Me ajudou muito, porque eu não sofri tanto como os outros sofreram. De ficar o tempo todo encarcerado atrás das grades. Eu tinha uma coisa para ocupar minha mente. Diferente dos outros que ocupavam a mente só em pensar besteira, em pensar em suicídio, pensar em muitas coisas erradas”, disse.

Após o término da pena no regime fechado e saída da prisão, começou a procurar emprego, porém fracassou. Afinal, quem daria oportunidade para uma pessoa que já esteve presa? Após uma entrevista de emprego, ao puxar a ficha criminal de um candidato (a), o preconceito e o medo são fatores decisivos. Foram longos seis meses à procura de uma vaga, mas graças ao laço de carinho e amizade que criou com alguns funcionários da Susipe, no tempo em que esteve presa, conseguiu um emprego ofertado por eles. Começou a trabalhar no setor de serviços gerais, na sede da Susipe, limpando as salas e escritórios.

Após um ano e três meses, foi remanejada para um novo trabalho, no qual permanece até hoje. Ao todo são 17 ex-presidiários que trabalham no Bosque Rodrigues Alves, exercendo diversas funções. Manu faz de tudo um pouco. Realiza a limpeza de canais, limpeza das trilhas e ajuda na cozinha. Ela conta que o projeto “Ressocializando” foi uma verdadeira transformação em sua vida, em razão de lhe permitir voltar a sonhar novamente e viver de forma digna.

“Me sinto muito feliz porque foi uma oportunidade que me proporcionou muitas coisas boas. Hoje eu moro em um apartamento bom, pago meu aluguel. Hoje em dia vivo bem, vivo feliz”, diz.

Manu se preocupa com o futuro de projetos como esse, que têm o objetivo de oferecer uma melhor qualidade de vida a ex-presidiários. “Apesar de serem poucos, mas os poucos que têm já ajudam bastante. Os presos têm medo de os projetos acabarem. Ninguém sabe como vai ficar, mas eu acho que não vai acabar, porque facilita muito o Estado. Não tem aquela coisa de carteira assinada, direitos trabalhistas, não tem nada disso. O Estado ganha e o preso também ganha”, afirmou. 

A lenta mudança de vida

“Muitos querem uma oportunidade, passam necessidade, muita gente não abre porta de emprego. Muitos têm medo de contratar um reeducando. Preconceito de contratar uma pessoa que já foi presa. Eu acho que deveriam dar uma oportunidade para as pessoas, porque todos querem mudar. Todo mundo merece uma segunda chance. O que mais me toca é isso, de oportunidade de trabalho. A questão de voltar, a gente volta aos poucos, conquistando a confiança das pessoas. Contando a verdade que a gente já foi preso, que a gente passou por isso e aquilo. Isso é uma luta. Uma batalha que a gente tem até hoje, de enfrentar esse preconceito de ter sido preso.”

Com tudo o que passou, Manu adquiriu alguns traumas devido a situações de extremo sofrimento e crueldade. Precisou tomar remédios para amenizar a dor emocional. Contudo, carrega no olhar a esperança de um futuro melhor e pretende retomar sonhos que foram interrompidos. “A minha perspectiva de vida agora é tocar a minha vida pra frente. Montar o meu próprio negócio, comprar a minha casa. Eu quero abrir o meu salão de novo e me inscrever no ‘Minha Casa Minha Vida’.”

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