É comum associarmos a imagem de uma drag queen à comédia e, também, a um homem. Porém, a arte drag vem transcendendo limites com o fortalecimento cada vez maior de seu caráter político, sobretudo através das mulheres que, corajosamente, se aventuram a ocupar um lugar que muitos defendem não ser o delas. Com a 'explosão' da cultura drag queen, as mulheres estão se apaixonando por essa forma de expressão e fazendo dela ferramenta para se descobrir e se posicionar no mundo.
Ganhando cada vez mais espaço na cultura pop e na mídia, a arte drag queen tem revelado algumas de suas facetas antes desconhecidas pelo grande público. Entre elas, e talvez a mais forte, sua veia política. Por ousar questionar estereótipos e questões de gênero, essa expressão artística caiu como uma luva para quem busca uma maneira diferente de se colocar na sociedade. A elas, se dão alguns nomes como lady queen, bio queen e até faux queen, termo pejorativo que significa "falsa drag". Porém, nomenclaturas à parte, o que elas buscam mesmo é se libertar de todo e qualquer padrão e, simplesmente, se permitir. .
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No Recife, ainda são poucas as mulheres que atuam como drag queens. Maria Eduarda do Rêgo Barros, internacionalista e DJ de 23 anos, conta ter sido uma das primeiras. Na ânsia de encontrar sua personalidade, há cerca de quatro anos ela descobriu essa arte e, com o nascimento da drag Karma, se achou. "Eu estava buscando confiança com meu corpo, que não é um corpo que se encaixa nos padrões, confiança em mim mesma para me colocar pra fora e sair da bolha que eu estava imersa. Acho que a drag traz isso pra gente, nossa aceitação enquanto mulheres. No meu caso, Karma me fez aceitar minha sexualidade e me assumir para minha mãe. Se não fosse por Karma, eu não estaria aqui", diz.
Karma: "Hoje em dia a cena tá muito mais inclusiva e forte e acho que era isso que faltava, mais mulheres."
Pouco depois, foi a vez da cientista social Ericka Cariri Costa, de 41 anos, fazer a mesma descoberta com o nascimento da drag Donna Flash. "Mudou minha vida, me encorajou mais para enfrentar as dificuldades, os preconceitos, as desigualdades. A gente faz amizades no nosso meio e aprende muito com as histórias dos outros. A gente consegue se fortalecer pra vida fora da arte drag", explica.
A publicitária e produtora de eventos Inês Munhoz, de 20 anos; e a atriz Catarina Martins, de 24, engrossam o coro das amigas. As duas são drags 'recém nascidas', com 10 e quatro meses de vida, respectivamente, mas já entenderam a potencialidade que essa forma de se expressar é capaz de trazer a quem se dedica a ela. "Eu precisava de algo pra falar, eu queria me expressar artisticamente, por ser atriz e estar parada, estava sentindo falta de estar em palco, de atuar. Hoje em dia também uso minha drag pro trabalho, produzo festas, foi um grande diferencial na minha vida, posso dizer que a drag mudou minha vida e pra melhor", diz Inês, ou melhor, Energy Fantasy.
Já Catarina, foi 'montada' pela primeira vez em uma brincadeira com os amigos, mas o momento funcionou como uma revelação para ela, que ali viu nascer a drag Margot Dejour. "Eu sempre tive muito problema com o meu corpo, sou uma mulher muito grande, então sempre me achei muito ‘over’. E aí eu me limitava muito. Foi como se, de fato, eu encontrasse meu corpo naquele dia. Foi uma brincadeira que me levou para outro lugar, um lugar que eu nunca tinha estado com o meu corpo. Foi aí que eu comecei a me descobrir como mulher presente o tempo todo. Sou outra pessoa agora, ela (Margot) me abriu a porta pra me reconhecer como Catarina".
Donna Flash: "A questão é não limitar, a gente deve fazer o que a gente quiser, sempre."
Espaço de mulher
Embora pareça e seja, de fato, muito divertido se 'montar' com perucas coloridas, roupas e maquiagens extravagantes, encarnar sua drag queen pode ser tarefa bastante árdua e ser mulher não diminui a dureza arraigada nessa manifestação artística. Elas precisam enfrentar a desconfiança do público, a falta de oportunidades de trabalho, preconceito e assédio moral e físico - dentro e fora do meio LGBT.
As quatro são enfáticas ao constatar que, por serem mulheres, acabam sofrendo mais assédio do que homens e transexuais que fazem drag. "A gente sabe que o corpo da mulher quanto mais desnudo ele é visto como um convite. Nunca vai ser um convite. (Estarmos aqui) é quebrar esses paradigmas e padrões sociais", diz Donna Flash. Karma, que chegou a passar um período sem se 'montar' por conta dos assédios físicos sofridos, complementa: "Nossos corpos de mulheres incomodam porque as pessoas não estão acostumadas a vê-los. O maior desafio para nós é se colocar na sociedade, se impôr, a gente não tem esse poder, ele não nos é dado".
Margot Dejur: "Eu sou 'aqui' tudo aquilo que não posso ser enquanto Catarina."
Além disso, se estabelecer no meio LGBT entre drag queens veteranas também é um obstáculo que é preciso superar. Elas garantem que há uma certa resistência e o preconceito faz até com que elas sejam confundidas com homens, além de terem menos oportunidades de trabalho. "Eu tinha receio (no início), porque é uma arte que as pessoas construíram um senso em cima de que só o homem pode fazer, eu tinha medo de não ser reconhecida, nem aceita no meio. Você está dentro de um espaço, querendo ou não e você acaba sendo oprimida pela própria minoria, é totalmente ilógico. Você deveria acolher a pessoa que tá fazendo parte do mesmo movimento, você se sente muitas vezes acuada, é complicado", diz Margot.
Sobre o meio profissional, elas revelam que os contratantes preferem as drags feitas pelos nascidos no gênero masculino. A alternativa é fazer "seus próprios rolês", como o Energy Fantasy que produz algumas festas como a Lip Sync Battle e a BBD. "Já ouvi que as mulheres estavam se montando pra tomar espaço, isso é muito grave. Eu vejo que há uma resistência, sempre vai existir resistência quando a mulher quer fazer coisas que ela 'não deveria' fazer. Mas a gente tem que se impôr. Hoje em dia essa resistência é menor porque a gente se impõe, a gente está falando. Parte de nós ter essa coragem e parte dos outros respeitar", diz Karma. Energy complementa: "A gente existe e resiste".
Energy Fantasy: "Engraçado que a gente faz uma coisa pra se libertar e as pessoas pegam e prendem a arte dentro de uma caixinha e dizem: 'não liberta, não pode'".
Drag e feminista
As dificuldades parecem ser rotina na vida dessas mulheres. No entanto, nada muito distante de sua realidade enquanto pessoas do gênero feminino, como comenta Donna: "O espaço da mulher na arte drag é meio que um reflexo do espaço da mulher na sociedade. Uma sociedade machista e patriarcal que quer sempre colocar padrões de comportamento, de existência, de se vestir, em todo lugar a gente passa por isso, estamos limitadas e temos sempre que ter um comportamento socialmente aceito. Quando a gente está montada e somos drags, a gente tá quebrando isso".
O poder que a 'montação' lhes confere também serve como ferramenta para lutar contra o preconceito e as limitações impostas pela sociedade. E munidas de perucas coloridas e batons gritantes, além, é claro, da classe de quem sabe onde está pisando do alto do seu salto 15 cm, elas acabam educando aqueles que insistem em tolher sua arte. Afinal, ser drag queen, como essas quatro artistas bem esclareceram durante esta entrevista, é fundamentalmente vestir um personagem que expressa o gênero feminino, algo possível de ser feito por qualquer ser humano. Karma sintetiza: "A gente se monta pra conquistar nosso espaço, nossa liberdade, a nossa identidade. A luta feminista ter crescido tanto e com a mudança dos tempos, as pessoas sabem que a mulher hoje em dia tem voz e ela não vai se calar. Não é só pelo close, mas é por toda uma história".
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Fotos: Divulgação/Karma
Rafael Bandeira/LeiaJáImagens