Tópicos | Educação Antirracista

No início da década de 1840, quando a escravidão estava no auge e D. Pedro II recém-assumira o trono, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) lançou um concurso nacional para que os intelectuais sugerissem a melhor forma de se contar a história do país.

O Brasil tinha se tornado independente só fazia duas décadas, e não havia uma narrativa oficial consolidada. A elite imperial acreditava que uma história heroica e bem contada incutiria nos brasileiros o nacionalismo, um sentimento que ainda não existia e era considerado essencial para a preservação da unidade do novo Estado.

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O vencedor do concurso foi o naturalista alemão Carl von Martius, que conhecia bem o país. Para ele, uma das particularidades da história nacional que deveriam constar dos livros era a mistura racial entre brancos (“o mais poderoso e essencial motor” do Brasil), negros e indígenas (duas “raças inferiores”).

Na dissertação premiada pelo IHGB, escreveu:

“A vontade da Providência predestinou ao Brasil esta mescla. O sangue português, em um poderoso rio, deverá absorver os pequenos confluentes das raças índia e etiópica [negra]”.

Segundo Von Martius, aqui não existia racismo:

“Até me inclino a supor que as relações particulares pelas quais o brasileiro permite ao negro influir no desenvolvimento da nacionalidade brasileira designam por si o destino do país, em preferência de outros Estados do novo mundo [América], onde aquelas duas raças inferiores são excluídas do movimento geral”.

De acordo com historiadores contemporâneos, a fórmula preconizada por Von Martius foi tão convincente que de fato se transformou na história oficial do Brasil.

Quem primeiro contestou publicamente a velha versão foi a militância negra, no fim dos anos 1970, aproveitando que a ditadura militar iniciava a abertura política e afrouxava a perseguição aos movimentos sociais.

Uma mudança significativa, contudo, só viria 160 anos após a dissertação de Von Martius. Em 2003, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, no primeiro mandato, assinou uma lei aprovada pelo Congresso Nacional que previu a inclusão da história e da cultura afro-brasileira nos currículos de todas as escolas públicas e privadas do Brasil (Lei 10.639).

De acordo com o IBGE, pretos e pardos respondem por 56% da população brasileira. O objetivo da lei é valorizar o passado e o presente desse grupo e mostrar que os negros não foram figurantes da história — ao contrário, enfrentando a escravidão e o racismo, tiveram e têm um papel decisivo na construção do Brasil. Em última instância, o que a norma busca é criar uma sociedade sem discriminação racial e mais democrática.

No entanto, a lei, que em janeiro completou 20 anos, ainda não conseguiu cumprir plenamente o seu papel.

De acordo com um levantamento recente dos institutos Geledés (dedicado aos direitos da população negra) e Alana (à proteção da criança), somente 29% das prefeituras (responsáveis pela educação infantil e pelo ensino fundamental) incluem a temática racial de forma satisfatória na grade curricular das escolas municipais.

Das prefeituras, 18% ignoram totalmente a história e a cultura da população negra, enquanto 53% só fazem projetos esporádicos e poucos estruturados.

A coordenadora de educação e pesquisa do Geledés, Suelaine Carneiro, explica que esses 53%, em geral, organizam atividades educativas contra o racismo apenas em novembro, por ocasião do Dia Nacional da Consciência Negra (20 de novembro):

— Ao longo dos dez primeiros meses do ano, as escolas não fazem absolutamente nada. Só para dizer que estão cumprindo a lei, organizam no 11º mês algum evento folclórico, como um desfile de moda afro e um festival de culinária africana. A cultura do evento não resolve. Neste país majoritariamente negro, ainda temos uma educação eurocêntrica, que inferioriza as identidades negras. É preciso acabar com esse tipo de educação e promover uma reflexão nas diversas disciplinas escolares. É só a partir da reflexão contínua e aprofundada que conseguimos mudar concepções e comportamentos.

Apesar de a pesquisa ter verificado apenas as redes municipais de ensino, Carneiro acredita que a negligência com o ensino da história e da cultura afro-brasileira se repete nas redes estaduais (em geral, responsáveis pelo ensino médio) e é ainda pior nos colégios particulares:

— Não é porque as escolas particulares têm menos alunos negros que elas não precisam implementar a lei. Pelo contrário. É justamente por muitas delas serem um ambiente de segregação racial que os seus alunos, na maioria brancos, precisam ter uma visão mais ampla da sociedade e compreender que este é um país heterogêneo. O ensino da história e da cultura afro-brasileira não é só para os negros. É também para os brancos, de modo que entendam que são favorecidos pelo processo do racismo, mas não precisam ser coniventes com ele, pois marginaliza uma grande parte da população brasileira.

A mesma pesquisa dos institutos Geledés e Alana indica que, entre os fatores que prejudicam o cumprimento da lei, está a resistência dos professores, dos diretores e das famílias, que entendem a educação antirracista como desnecessária ou até prejudicial aos estudantes. De acordo com estudiosos da questão, o racismo estrutural brasileiro se alimenta da crença disseminada de que ele simplesmente não existe.

As estatísticas oficiais comprovam que ele, sim, existe. Em qualquer aspecto da vida que se considere, os negros estão sempre em desvantagem na comparação com os brancos.

Ser negro no Brasil significa, por exemplo, ser mais pobre, ter menos escolaridade, receber salário menor, ser mais rejeitado pelo mercado de trabalho, ter menos oportunidades de ascensão social, dificilmente chegar aos postos de comando do poder público e da iniciativa privada, ter menos acesso aos serviços de saúde, ser vítima preferencial da violência, ter mais chances de ir para a prisão, morrer mais cedo.

Essas situações são naturalizadas quando se aprende na escola que os africanos e seus descendentes só participaram da história do Brasil como escravizados e todo o resto é silenciado.

Ao contrário do que diz essa narrativa, personagens negros tiveram papel de relevo na história, como o soldado Henrique Dias, a ex-escravizada Luísa Mahin, o advogado Luís Gama, a sambista e mãe de santo Tia Ciata, o marinheiro João Cândido, a deputada estadual Antonieta de Barros, a senadora Laélia de Alcântara e o deputado federal e senador Abdias Nascimento, entre muitos outros.

Em 1983, como deputado, Abdias apresentou um projeto de lei prevendo a obrigatoriedade do ensino da história e da cultura afro-brasileira, mas a ideia nem sequer chegou a ser votada.

Os negros foram protagonistas da própria abolição da escravidão. Segundo historiadores, a Lei Áurea não surgiu da benevolência da princesa Isabel, mas sim da reação dos escravizados, que pressionaram o Império promovendo fugas em massa e até matando os seus senhores, o que deixou o país à beira de uma guerra civil e tornou a lei de 1888 inadiável.

De acordo com Anderson Passos, que é presidente da seccional Bahia da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime-BA) e secretário municipal de Educação de Aratuípe (BA), um dos grupos que hoje resistem à inclusão do ensino da cultura afro-brasileira são os religiosos de determinadas vertentes cristãs:

— Acreditam que levar o conhecimento sobre as religiões de matriz africana aos estudantes é o mesmo que tentar convertê-los. Quando incluímos o tema nas escolas da minha cidade, alguns pais me chamaram de “secretário de Educação do Candomblé”. Isso é uma bobagem. Levar o conhecimento não significa doutrinar. Nas aulas, os professores falam de todas as religiões, desde a egípcia e a grega até o catolicismo e o protestantismo, mas só as de matriz africana despertam reação. Muita gente acredita que essas práticas são ligadas ao demônio, o que gera racismo religioso, perseguição e violência. A ignorância deve ser combatida com educação e informação.

Passos avalia que, além das resistências individuais, contribuem com a pouca presença da educação antirracista nas escolas a falta de financiamento específico e fiscalização.

— O dinheiro é necessário para a capacitação dos professores, a aquisição de material didático, a organização de atividades específicas e a realização de pesquisas e estudos — ele diz.

O presidente da Undime-BA sugere que a obediência à lei sobre a história e a cultura afro-brasileira se transforme num novo componente de cálculo do chamado valor aluno ano resultado (VAAR), verba destinada pelo Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb) a cada rede estadual e municipal de ensino.

— Quando a gestão democrática das escolas se transformou numa condicionalidade do VAAR, inúmeras escolas correram para se adaptar e receber mais recursos — lembra.

Quanto à fiscalização por parte do poder público, Passos afirma:

— O que acontece hoje com a rede de educação que não implementa a lei sobre o ensino da história e da cultura afro-brasileira? Absolutamente nada.

Em 2008, uma lei foi aprovada pelo Congresso e sancionada pelo presidente Lula incluindo nos currículos a obrigatoriedade do ensino da história e da cultura indígena (Lei 11.645). Como a de 2003 vinha sendo ignorada, a nova repetiu a determinação sobre os temas afro-brasileiros.

A partir do ano que vem, os Tribunais de Contas dos estados e dos municípios, que têm o papel de fiscalizar a execução das políticas públicas, serão incentivados a passar a lupa sobre os currículos das escolas e procurar a educação antirracista.

A novidade decorre de uma medida da Associação dos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil (Atricon), que avalia periodicamente todos os 33 tribunais e decidiu que aqueles que fiscalizarem a presença da história e das culturas afro-brasileira e indígena nas escolas públicas serão mais bem pontuados.

A auditora Fernanda Nunes, da Atricon e do Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul (TCE-RS), afirma que os poucos Tribunais de Contas que fazem hoje esse tipo de fiscalização costumam encontrar uma situação negativa:

— Muitas vezes, o conteúdo está presente nos planos municipais ou estaduais de educação, mas não há a capacitação de professores ou a previsão orçamentária correspondente. Outras vezes, até há a previsão orçamentária, mas ela no fim das contas não é executada. O que se vê hoje é que a educação antirracista é, no geral, apenas uma ficção jurídica.

Nunes lembra que os pareceres dos Tribunais de Contas são enviados para as Assembleias Legislativas e para as Câmaras Municipais, que também podem tomar as medidas necessárias. Ela acrescenta:

— O objetivo principal das fiscalizações dos Tribunais de Contas não será punir as secretarias de Educação, mas, sim, induzi-las a seguir a lei. Esperamos que isso represente um divisor de águas na educação antirracista no Brasil.

O professor Luciano Braga, que dá aula de artes na rede municipal de São Paulo e é coautor do livro História da África e Afro-Brasileira: em busca de nossas origens (Selo Negro Edições), também sugere uma via alternativa à punição:

— Os vestibulares e o Enem [Exame Nacional do Ensino Médio] têm um poder imenso de indução. Eles precisam cobrar conteúdos antirracistas nas questões e nas redações, pois assim as escolas públicas e particulares correrão para se adaptar e passarão a oferecer esses temas aos estudantes.

Nas aulas das crianças pequenas, Braga diz que aborda a questão racial da forma lúdica, pintando em papel as diversas tonalidades de pele, falando sobre os diferentes tipos de cabelo e contando histórias com protagonistas negros:

— A reação das crianças negras é imediata. Elas abrem o sorriso e se sentem orgulhosas de serem quem são. Pequenas ações fazem uma diferença imensa na autoestima delas. E as crianças brancas, por sua vez, passam a entender, respeitar e valorizar a diversidade.

Ele continua:

— Ignorar a história e a cultura do negro é ignorar a história e a cultura de mais da metade da população brasileira e mantê-la numa posição subalterna. O trabalho contra o racismo precisa ser forte especialmente na escola porque é lá que os indivíduos se formam.

Fonte: Agência Senado

Na última quinta-feira (24), grupos de movimentos negros se encontraram em diversas cidades do Brasil para dar início à Jornada dos Movimentos Negros contra a Violência Policial. No Recife, coletivos, frentes e articulações pelos direitos das pessoas negras se reuniram no bairro do Ibura, na zona Sul da cidade.  

Um dos grupos representados no ato foi o Sindicato dos Professores da Rede Municipal do Recife (SIMPERE), com a presença de Carmen Dolores, que faz parte do Coletivo Antirracista, formado por professores e professoras da categoria. Ao LeiaJá, Dolores compartilhou a importância de incluir pautas antirracistas no currículo escolar, e como falta de presença das autoridades é latente. 

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“A gente acha que as ações da prefeitura com relação à questão da violência e do enfrentamento ao racismo ainda têm sido muito tímidas. Na prefeitura, por exemplo, a gente tem um grupo que é responsável de fazer o trabalho do antirracismo nas escolas, e esse grupo praticamente se resume hoje a duas pessoas na Prefeitura do Recife”, declarou Carmen. 

Carmen Dolores, integrante do Simpere. Foto: Júlio Gomes/LeiaJá 

“Não existe uma política pública de fato. Não é política de governo, a gente quer uma política de Estado, uma política que se alongue independente dos governos, na perspectiva do enfrentamento da violência e do racismo. Então essas ações estruturantes [devem ser colocadas em prática] a médio e longo prazo”, continuou a docente. 

Soluções concretas e possíveis 

As críticas, no entanto, não vêm sozinhas. A categoria já encontra e insiste em propor soluções concretas e possíveis. A necessidade de formação para os professores é fundamental, para a implementação de uma educação antirracista, segundo apontam os docentes. 

“O principal apontamento para resolver o problema da violência nas comunidades, é a escola ser pertencente da comunidade. É a comunidade se sentir parte da escola, ‘derrubar os muros’. Quando a comunidade sente que a escola é pertencente à própria comunidade, a escola não é atacada, não existe violência. É um processo em que a escola precisa se aproximar cada vez mais das comunidades”, enfatizou Carmen Dolores. 

Ato lembra Mãe Bernadete 

Além de abordar a violência policial, que causou a morte de 45 pessoas na Bahia, Rio de Janeiro e São Paulo, entre julho e agosto deste ano, o ato foi organizado para se manifestar contra a morte da Yalorixá Mãe Bernadete, assassinada no último dia 17. 

Piedade Marques, da Rede de Mulheres Negras de Pernambuco, lista as principais problemáticas que incentivaram a mobilização nacional. 

Piedade Marques, participante da Rede de Mulheres Negras de Pernambuco. Foto: Júlio Gomes/LeiaJá 

“É aquela história, no frigir dos ovos, é sobre as nossas vidas. É sobre as violências, é sobre o racismo estrutural, sobre o perfilamento que define quem são as pessoas, os corpos sujeitos da ação policial. Fala sobre o encarceramento em massa, fala sobre a guerra às drogas aonde nós, negros e negras é que somos vítimas, colocadas inclusive como algozes porque somos nós que estamos ocupando os presídios”, relata Marques. 

 

Kemla Baptista é idealizadora da iniciativa 'Caçando Estórias'. Foto: Raphael de Faria

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Ao longo da história, os saberes ancestrais da população negra, que tradicionalmente são passados de forma oral, vem ganhando novas formas de registros por meio da literatura e também nas plataformas de interações sociais na internet. Educadoras e escritoras negras de Pernambuco movimentam esses acessos, promovendo educação antirracista no cotidiano da sociedade, em especial no das crianças, adolescentes e adultos afro-brasileiros. Neste sábado (25), Dia Internacional da Mulher Negra Latino Americana e Caribenha, o LeiaJá compartilha ações de educadoras que fazem a diferença entre alunos e famílias.

A caçadora de estórias 

“Eu não construí um modelo pedagógico! Eu me valho de referências pedagógicas relevantes. Com isso, a gente pensa o construtivismo, na pedagogia de Freinet; a gente pensa em educação popular, considerando aquela referência de movimento de Paulo Freire; pensamos em tantas outras referências importantes, mas nós temos que considerar que todas elas foram criadas, pensadas e experimentadas por pessoas brancas”. É a partir da fala concedida pela educadora e contadora de estórias Kemla Baptista que exploramos outras possibilidades de entender a educação e seus processos diversos que, além de ensinar o básico, tem a pretensão de conduzir “crianças ao patamar de desbravadora do universo das tradições afro-brasileiras e agente criadora de arte”.

Kemla é a idealizadora e realizadora da proposta de educação social 'Caçando Estórias', que há 12 anos compartilha saberes ancestrais por meio de ações multidisciplinares que envolvem contação de estórias, literatura, audiovisual, criação de conteúdo para a internet, teatro de objetos, música e dança sempre atravessada pelas africanidades. Para ela, “ouvir estórias é alimento para a alma e faz bem à pessoa de qualquer idade”.

Em entrevista ao LeiaJá, a psicoterapeuta com abordagem psicanalítica, Maria de Jesus Moura, analisa que é necessário que as crianças possam se ver representadas em diversos espaços e, através desse reconhecimento, fortalecer a autoestima não só de crianças negras, como também de adolescentes e adultos. “Uma atividade de contação de estórias pode ser extremamente importante, pois dá acesso às crianças a determinadas realidades positivas, saudáveis, de força, de elevação de autoestima”, enfatiza a psicoterapeuta, que também é mestra em psicologia social com estudos no campo racial e de gêneros.

Seguindo essa lógica, o Caçando Estórias, que iniciou sua trajetória nas periferias do Rio de Janeiro, dissemina em Recife a mesma dinâmica educacional. Assim como no Rio, Kemla dá seguimento às atividades - antes presenciais e agora virtual - como um processo que interrompe uma movimentação de pessoas não negras fazendo apropriação de símbolos pertencentes à diáspora negra para repassar os conhecimentos, sem a devida propriedade desses saberes.

I Caçando Estórias, que tem a oralidade como principal ferramenta de comunicação, teve início dentro dos terreiros de candomblé. Kemla afirma que há necessidade de ampliar a popularização do conhecimento ancestral, em outros espaços, sendo eles formais ou não. Nesse sentido, ela enfatiza que “prefere usar como referências quem vive e quem pertence” aos lugares de axé - nomenclatura dada às pessoas que fazem parte do candomblé - para traduzir as histórias contadas por ela. Essa atividade está ligada à educação antirracista, que vem criando espaços para promover debates e demandas de ensino acerca das filosofias e artistas que fazem parte da negritude.

Devido à necessidade de transmitir os valores e ensinamentos assimilados no terreiro, somada a algumas técnicas adquirida na academia, Kemla tornou-se voz para mediar rodas de diálogo e de contos tradicionais africanos em uma versão lúdica, pensados para facilitar a compreensão. Em 2017, motivada principalmente pela chegada da sua filha, Kemla passa a promover o seu trabalho no ambiente virtual, além das ações presenciais. Dessa forma, a iniciativa ficou mais próxima de crianças e adultos, negros e não negros, por meio de uma forma de educar que não está ligada ao capitalismo e nem ao neoliberalismo, segundo Kemla.

Foto: Raphael Faria

“São outras possibilidades de pensar um mundo de outra forma. E vai para a internet com essa bagagem de axé, para dar esse nova perspectiva de educação que quebra com a lógica dos pensamentos e ensinamentos eurocêntricos”, destaca Kemla.

Antes da pandemia, esse trabalho era feito em comunidades periféricas da capital de Pernambuco, como no Alto do Páscoal, localizado na Zona Norte de Recife. Além do Caçando Estórias, Kemla coordena outras três ações afirmativas, intituladas 'Nos Terreiros do Brasil' - contação de histórias, espetáculos e oficinas com base em técnicas de arteterapia para crianças -; 'Balaio de Leituras' - ação de mediação de leitura nas escolas públicas, particulares, bibliotecas e museus que trazem personagens negros em papéis socialmente valorizados -; e o 'Aguerézinho - evento anual que festeja os contos, tradições e vivências afro-brasileiras -.

Agora, durante o isolamento social em razão da pandemia do novo coronavírus, as atividades presenciais promovidas pela Kemla foram adaptadas para a produção de novos conteúdos nas redes sociais, com agenda de lives, por exemplo. Nos encontros virtuais, são realizadas contações de estórias e outras ações adaptadas para a plataforma, incluindo o incentivo para que as crianças e seus responsáveis pratiquem as recomendações de prevenção ao contágio do coronavírus, como lavar as mãos e usar máscara.

Com as novas rotinas na web, também surgiram novas reflexões quanto ao papel social que o Caçando Estórias tem desempenhado para com a população mais vulnerável. Diante desse dilema, outras ações foram realizadas por Kemla, como a arrecadação e entrega de cestas básicas e a produção de livro 'O Vovô Treloso Mais Treloso do Mundo', de forma gratuita e on-line para crianças periféricas. O conto infantil fala das vivências de seu avô Gentil.

Feito de forma autônoma, o projeto do livro foi abraçado pela marca de biscoito 'Treloso', da empresa Vitarella, que financia a confecção de mil exemplares. O lançamento será neste domingo (26), pelo perfil Caçando Estórias no Instagram.

Todas as produções de viés educativo e cultural de autoria da pernambucana deixam marcas positivas por onde passa, chegando a impactar mais de 25 mil pessoas, seja no recebimento dos saberes traduzidos em palavras ou pela entrega de cestas básicas, que servem de alento às famílias em situação de vulnerabilidade social.

Cores - Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), os negros (pretos e pardos) representam 56% da população brasileira. Em Pernambuco, estima-se uma população de 9.557.071 pessoas, em que dessas, 60,4% são autodeclaradas pardas e 7,2% se dizem pretas. Os dados são de 2019. 

Das escrevivências 

Por meio das poesias, escritoras negras possibilitam que vivências e conhecimentos em comum na população possam ser documentados em linhas que aqui chamarei de ‘escrevivências’. Vinda de uma família humilde, a educadora e escritora Odailta Alves, que nasceu e foi criada na favela de Santo Amaro, no Recife, foi a primeira - entre os nove irmãos - a aprender a ler. Hoje, em razão da projeção a nível nacional do seu trabalho literário, Odailta lança virtualmente um novo livro chamado 'Pretos Prazeres'.

Odailta Alves é autora de cinco livros. Foto: Mayara Barbosa

A publicação conta com 75% das vendas totais pela internet. “Os livros ganharam voo e isso é também um processo de reconhecimento de trabalho que a gente vem fazendo há um tempo. Meu eu lírico é o lírico homem preto e mulher preta, principalmente mulher preta. Então, eu acho que as pessoas negras se veem representadas nessa literatura, porque a literatura sempre foi um espaço muito brancocentrado, um espaço de idealização da mulher branca e hipersexualização da mulher preta ou em lugar de serviços braçais”, enfatiza Odailta Alves, em entrevista ao LeiaJá.

A escritora também atua na Unidade de Educação para as Relações Étnicos-Raciais (Unera), que é gerenciada pela Gerência de Políticas Educacionais, Educação Inclusiva, Direitos Humanos e Cidadania (GEIDH), da Secretaria de Educação e Esportes do Estado de Pernambuco (SEE-PE). Em suas atribuições, estão as elaborações de estratégias que efetivam a aplicabilidade da Lei 10.639/2003, que trata inclusão no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade do ensino da história, da cultura, da luta afro-brasileira, além da contribuição do negro na formação da sociedade nacional; bem como da Lei 11.645/2008, que inclui no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e cultura afro-brasileira e indígena”.

É por meio da literatura que Odailta traz a idealização da mulher negra em espaço de afetividade, retratando-a como uma mulher de força, poder e de luta, mas não a imposta pela sociedade e sim uma força que emana das raízes fincadas de um povo que historicamente é colocado à margem. Mesmo com grande público negro, a escritora explica que há pessoas brancas que consomem as suas produções. “[Pessoas não negras] que tentem ler essa pessoa negra pelo seu lugar de fala e não pela voz do colonizador como tem sido historicamente e, nesse sentido, acaba sendo sim uma literatura que ajuda a promover uma educação antirracista. Porque vai quebrar com o imaginário racista, vai denunciar um processo histórico de escravidão que não encerrou em 1988, e vai denunciar as nuances do racismo que vai se reinventando; precisamos criar estratégias com relação a esse racismo”, enfatiza.

Odailta comemora os livros lançados. Foto: Priscilla Buhr

Até então, a escritora conta com cinco livros publicados, sendo o primeiro de nome 'Clamor Negro', em 2016, seguidos de Escrevivências' e 'Cativeiro de Versos', em 2018; 'Letras Pretas, em 2019; e 'Pretos Prazeres', lançado em 2020. O 'Escrevivências' está na segunda edição pela editora independente chamada Castanha Mecânica. 

“É muito bom ver esse quantitativo de livros saindo, sabe? Sem vínculos à editora nenhuma”, comemora. Enquanto produtora de arte, a escritora pernambucana diz que recebe feedbacks positivos sobre suas produções. Indo de uma geração à outra, Odailta inspira outras mulheres pretos por todo país, sendo escritoras ou não.

Educadoras explicam que, quando há espelhos, é possível construir novas narrativas para educar. Mesmo com esse fato apontado, a psicoterapeuta Maria Jesus Moura fala que em diversos setores ainda é possível identificar o racismo como estruturador de abordagens. Ela avalia que todo esse contexto de escravização e invisibilização histórica, “incidem naturalmente na saúde mental da população negra, mais ou menos, com ou sem resposta patológica, algumas ansiedades e depressões são bem frequentes”.

Na percepção da psicoterapeuta, em primeiro momento, é necessária uma admissão do racismo na esfera educacional. “A instituição educacional é atravessada por um conjunto de invisibilidades das populações negra e indígenas. Isso acontece fortemente quando não se vê representações delas em outros lugares, a não ser em outras crianças que pertencem ao ambiente escolar”, aponta. Contudo, diante de todas as dificuldades, como a falta ou pouca internet, poucos recursos financeiros, e mesmo com os novos obstáculos impostos pela pandemia da Covid-19, educadoras negras buscam caminhos para oferecer educação.

Por fim, basta olhar ao redor, que percebemos que as palavras verbalizadas ou redigidas por mulheres negras, como Kemla Baptista e Odailta Alves, servem de referências para diversos poetas e produtores de arte, dentro e fora do Estado. É importante ressaltar que os esforços para manter a educação antirracista fluida, estendem-se aos espaços educacionais formais, por meio de atividades similares aos trazidos nesta reportagem do LeiaJá. Essas atividades alcançam os pequenos e suas famílias.

LeiaJá também

--> Do próprio bolso, professora produz conteúdo afrocentrado

O Laboratório de Educação das Relações Étnico-Raciais (Laberer), que faz parte do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGEdu) da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), fará um evento on-line para debater as manifestações que protestam contra o racismo. A live intitulada como “Re(ação) ao racismo no Brasil e nos EUA”, será realizada neste sábado (6), às 16h, no Instagram da Laberer(https://www.instagram.com/Labererufpe/).

As manifestações antirracistas, que acontecem no Brasil e nos Estados Unidos, ganharam força e destaque após as mortes de João Pedro, baleado em ação policial no Rio de Janeiro, e George Floyd, por asfixia em Minneapolis. Nesse contexto, o Laberer promove a live que pretende explicar as motivações que cada ‘re(ação)’ no contexto atual, de forma gratuita.

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A conversa será entre os professores Maria Conceição Reis, líder do Laberer, e Luciano Cruz, brasileiro com cidadania americana e professor da Universidade Estadual de San Diego, Califórnia, nos Estados Unidos, que irão debater sobre as semelhanças e as diferenças das reações da população negra brasileira e estadunidenses diante de casos.

 

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