Do Recife para o mundo: conheça o Afoxé Omonilê Ogunjá

por Marcus Fernandes seg, 21/04/2014 - 14:45

De sexta (25) a domingo (27) a cultura negra brasileira estará em evidência num dos maiores festivais de jazz do mundo, o New Orleans Jazz e Heritage Festival, marcado para ser realizado de 25 de abril a 4 de maio deste ano, em New Orleans (EUA). É que durante a programação deste festival o Afoxé Omonilê Ogunjá, fundado há dez anos no Ibura, bairro da Zona Sul do Recife, se apresenta no mesmo palco em que artistas como Christina Aguilera e Eric Clapton farão seus shows. O grupo, que tem Ogunjá (qualidade de Ogum com Oxalá) como patrono, desembarca curiosamente em solo americano na próxima quarta-feira (23), Dia de Ogum. “Existem 365 dias do ano e nós vamos chegar lá no dia do nosso patrono. Isso é muito especial”, comemora Dario Júnior, diretor geral do afoxé que conversou com o LeiaJá sobre o nascimento do grupo, a relação com a religiosidade dos povos negros, os trabalhos já lançados pelo Omonilê Ogunjá e a participação num dos maiores festivais de música do mundo. Confira a entrevista:

O que é um afoxé?

Afoxé é uma espécie de associação ou agremiação que tem o intuito de desmistificar a visão negativa, demonizada, que as pessoas têm da religiosidade e da cultura do povo negro. Todo afoxé tem um orixá patrono. Orixá significa guardião da cabeça (ori = cabeça, xá = guardião). No nosso caso é Ogum, Ogunjá. E a gente sai sob essa guarnição de Ogum, desmistificando essa demonização existente, trazendo elementos da cultura negra como a culinária, indumentárias e o culto religioso. O afoxé tem um poder encantador. Tem gente que dança sem querer, tem gente que vem para o ensaio só pra assistir e quando vê está dançando. E tem aquelas pessoas que vem sem nem saber que estão vindo (risos). 

Referências do Candomblé

O Candomblé é uma religião que nasceu aqui no Brasil, não é uma religião africana. Na África existem os cultos separados e cada tribo tem o seu deus. No processo de escravidão pegaram todos esses povos, juntaram e trouxeram ao Brasil. Uma forma de desarticular é manter todo mundo junto, porque eles vão ter dificuldades pelas diferenças. Mas inteligentemente o povo negro preferiu se juntar. A dança no Candomblé é em círculo para contemplar a igualdade contemplando as diferenças. Eu canto pro seu e você canta pro meu. Nessa sociedade capitalista e competitiva que a gente vive, essa noção é uma referência estruturadora. E isso tudo foi criado sob toda tortura e repressão que o povo negro passou ao longo da escravidão.

Surgimento do Afoxé Omonilê Ogunjá

O grupo surgiu no dia 4 de outubro de 2004. A casa do antigo babalorixá desse afoxé é Oxalá. Toda casa tem o seu patrono orixá, assim como toda igreja tem o seu santo. A gente achava que esse afoxé era de Oxalá, mas quando fomos para o jogo de búzios descobrimos que Oxalá não queria o afoxé, e que quem queria era Ogum. Na verdade Ogunjá, que é uma qualidade de Ogum acompanhado de Oxalá. Nossa proposta é contar a história do povo negro a partir de outra ótica, porque essa história é contada na escola formal a partir da escravidão, e a gente sabe que a construção desse país foi feita pela mão de obra do povo negro. A missão desse afoxé, aqui nessa comunidade, é trazer esse novo olhar. Muitas das entidades nascem para o Carnaval e a gente tem o Carnaval como uma de nossas ações.

Relação do grupo com a comunidade

A gente realiza anualmente o Encontro das Forças, que é uma ação do afoxé com a comunidade de forma imediata e imediata. A gente procura trazer parceiros, pensadores, formadores de opinião. A comunidade e o entorno escolhem um tema e a partir desse tema a gente faz uma interação. Por exemplo, no ano passado nós fizemos uma homenagem aos pais de santos. E a discussão se deu naquele momento em que os terreiros estavam sofrendo alguns ataques. Conversamos sobre a liberdade de culto, quais os mecanismos que nos protegiam e que nos davam o direito de cultuar. 

Esse espaço serve pra essas coisas. É um espaço de formação, de cineclube, de debate. A gente procura estar engajado. Se existe algo que a comunidade esteja precisando, disponibilizamos o espaço pra ela. A gente acredita que a arte, a cultura e a educação política estão agrupadas. No afoxé, não temos essa limitação.

Trabalhos lançados

Vamos fazer dez anos em outubro e já temos dois CDs e dois documentários, Ikomòjadé e Sou Eu. O primeiro álbum, lançado em 2008, foi Berço dos Ancestrais, gravado ao vivo e de uma forma mais imediata. Já o segundo, o Odara, foi um trabalho mais amadurecido. Ele quem deu uma alavancada pra gente ir a New Orleans. Estávamos nos apresentando em Arcoverde no Festival Lula Calixto, e o produtor do New Orleans Jazz e Heritage Festival nos assistiu. A partir daí começou a fazer referência do povo negro brasileiro com a negritude do povo de lá de News Orleans, através de elementos como o a dança, a vestimenta e a forma de interação.

Ikomòjadé, que significa O Batismo, é uma interação nossa com os Filhos de Gandhi, que veio nos batizar em novembro de 2010. Na tradição, um Afoxé mais antigo batiza um mais novo. Nós já temos um tempo de caminhada e não tínhamos o padrinho. Eles lá são de Oxalá com Ogum, da nação Ketu, que está na Bahia. A gente é de Ogum com Oxalá, nação Ketu, no Recife. Criamos um evento, patrocinado pelo Governo Federal, que associasse essas duas entidades. Isso trouxe pra gente um ganho sem palavras. E fizemos um cortejo em Olinda e no Recife. Em Olinda fizemos ainda um seminário e convidamos todos os afoxés da cidade para discutir qual era a nossa função. Fizemos também uma oficina com os Gandhi. E o grande dia foi na Terça Negra, quando o Gandhi nos coroou cantando pra Oxalá, e que a partir daquele momento nós tínhamos a benção e o aval do afoxé baiano. O documentário está disponível na nossa conta no Youtube e algumas músicas podem ser encontradas na nossa conta no Myspace.

Participação no New Orleans Jazz e Heritage Festival

A gente está ensaiando há trinta dias porque queremos fazer um repertório que fale um pouco da nossa história, fale um pouco de África e da relação brasileira com o continente. No repertório tem desde música autoral ao hino da África, e músicas como o Canto das Três Raças, por exemplo. A gente sabe que tem brasileiro lá que conhece isso, e é uma forma de identificar o nosso povo. A ideia é fazer um show com interação e temos construído tudo em cima disso. A religiosidade é uma coisa que liga isso. Lá em News Orleans eles têm o Voodo, que é uma das religiões mais discriminadas e associadas àquela história do boneco com alfinetes. E a gente sente essa realidade. 

Esse festival vai dar uma visibilidade muito grande pro Omonilê Ogunjá. Quando as pessoas descobrem que estamos indo pros EUA representando a cultura afrobrasileira, num dos maiores festivais de Jazz do mundo, o reconhecimento é outro. Vamos nos apresentar no mesmo palco que artistas como Santana, Cristina Aguilera e Eric Clapton. A gente vem batalhando, mas a mídia não fala sobre o assunto. E ai você vê como o racismo se instala nas instituições ao ponto da gente perder a visibilidade. No Carnaval existimos, mas durante o ano a gente não escuta afoxé na rádio e vê pouquíssimas vezes na televisão, numa representação folclórica.

Só que estamos no palco principal do festival e eu não paro de repetir isso porque é algo importante, mas apesar da responsabilidade não estamos preocupados. Em 2012 a gente abriu o Carnaval do Recife, que é um dos melhores do mundo, e já temos experiência. Nós vamos chegar lá no dia de Ogum, dia 23 de abril. Existem 365 dias do ano e nós vamos chegar lá no dia de Ogum. Isso é muito especial.

Lançamento do segundo CD

Lançamos nosso segundo disco, o Odara, no dia 2 de fevereiro, Dia de Iemanjá, aqui na comunidade. No dia 9 no mesmo mês a gente fez um lançamento no Xinxim da Baiana, e depois no dia 11 na Terça-Negra, no Pátio de São Pedro. O disco foi gravado no mês de novembro passado, com recursos próprios. A gente tem a alegria de ter compositor próprio e referência na comunidade. I Festival de Música para Afoxé do Recife quem ganhou fomos nós, com a música Nativos Rebeldes. E a gente tem também Nalva Silva, que é a cantora e tem uma voz que é tida como uma das melhores de afoxé daqui de Pernambuco. Isso facilita essa qualidade. Andrea (cantora) é uma pessoa de Candomblé, que tem uma capacidade poética de chamar a atenção. E a gente viu que essas coisas precisavam de um suporte profissional. Então fomos para o Estúdio Carranca, referência aqui na região, e tivemos a felicidade de trabalhar com o Junior Evangelista, que é um dos sócios do estúdio, fazendo a mixagem. Levamos mais de um mês fazendo a mixagem e masterização. 

Manutenção do afoxé

Nós não temos uma visão sob esse trabalho. O que a gente produz, produzimos pra gente. A entidade, claro, tem que sobreviver. A nossa sede, por exemplo, é alugada e custa caro. E é com o dinheiro do Carnaval e de nossas apresentações que criamos nossas camisas, adereços, e a partir disso nós fazemos a nossa economia criativa. Com nossos produtos a gente se autossustenta. Como associação, ainda não chegamos àquele patamar de estar cobrando mensalidade pra manutenção, mas no futuro talvez a gente precise disso.

Religiosidade do afoxé

Levamos para a rua nosso babalotim (baba = pai, lotim = bebida), que significa numa tradução mais livre Pai da Festividade, ou patrono. E ele é feito através de um ritual religioso, o qual trazemos para dentro da festividade. Ele passa por vários procedimentos de culto que não posso revelar, mas a função maior dele é simbolizar a presença desse universo religioso. 

Nossa viagem aos EUA só vai acontecer porque pedimos autorização a Ogum. Não vou sair daqui pra New Orleans como se não tivesse nada por trás. A cabeça pode estar na lua, mas os pés têm que estar no chão, firmado na terra, que é a base, que tem a ver com origem, com princípio, com essência. Nesse âmbito não dá pra ser só artista, e eu digo isso direto dentro do afoxé. A musicalidade negra ela tem que ser guia e a gente tem que ter cuidado com essa referência.

Integrantes do grupo

Temos algumas pessoas daqui do Ibura, de bairros do entorno, mas tem muita gente de fora também. Uma dificuldade nossa é fazer essa conquista desse povo que mora no Ibura. O que a gente faz hoje é dar início a esses movimentos de luta. O Movimento Negro Unificado, por exemplo, tem 25 anos. Têm pessoas que se identificam com essa ideia, vem de fora e a gente aceita. Mas o trabalho direto da gente é com a comunidade. O Ibura tem em torno de 200 mil habitantes. Tem cidade por ai que não tem isso. É uma comunidade muito grande que aparece só como um espaço violento. Algumas pessoas não vêm aqui não. Mas a gente tem dentro dessa estrutura um compromisso territorial. A realidade da gente é essa.

Diretamente trabalhando no grupo, temos em torno de 30 pessoas, entre dançarinos, percussionistas, cantores e o pessoal do apoio. No Carnaval desse ano a gente desfilou com cem pessoas. Infelizmente, para o festival, nós temos uma cota, até por uma questão de infraestrutura. A gente conseguiu convencer a organização a levarmos 17 integrantes, mas estamos tendo problemas em relação ao visto com dois deles. Mesmo com uma petição por parte dos organizadores do festival entregue ao Governo Americano, eles negaram o visto de duas pessoas. 

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