O frevo e a liberdade da passista Zenaide Bezerra

Homenageada do Carnaval do Recife deste ano, a passista de 73 anos transmite os ensinamentos do pai, o lendário Egídio Bezerra, para familiares e jovens da Zona Norte do Recife

por Marília Parente sex, 17/02/2023 - 18:15
João Velozo/LeiaJáImagens Zenaide Bezerra dança em sua casa, no bairro da Madalena, Zona Norte do Recife João Velozo/LeiaJáImagens

Uma gargalhada solta no ar se faz orquestra quando a passista Zenaide Bezerra empunha sua sobrinha e mostra um novo passo de frevo que acabou de criar. Sem qualquer outra música, além da cadência de seu próprio corpo, Zenaide vai entrecruzando os pés em passinhos acelerados para a frente, enquanto deixa que seu corpo se arrisque contra a gravidade, pendendo para um lado e para o outro. Não é à toa, aliás, que o movimento tenha surgido da composição de Edson Cunha intitulada “Besouro Mangangá”, como era conhecido o lendário capoeirista baiano Manoel Henrique Pereira (1895-1924). Da capoeira, o frevo herdou o desejo pela liberdade. E de Egídio Bezerra, seu pai, Zenaide carrega o hábito e a autoridade de criar os próprios passos. Por sua contribuição para a dança, aos 73 anos de idade, ela se tornou Patrimônio Vivo do Recife e homenageada do carnaval de 2023, ao lado do compositor Geraldo Azevedo e de Dona Marivalda, presidente do maracatu Estrela Brilhante.

Nascida na capital pernambucana no dia 22 de março de 1949, Zenaide é recifense e começou a dançar samba de gafieira ainda na infância, em cima dos pés de seu pai. “Eu era magrinha e deixava o corpo leve. Num instante aprendi”, lembra. A prática garantiu que Zenaide carregasse em seu próprio corpo o registro vivo dos movimentos do “Rei do Passo”, alcunha que Egídio ganhou da imprensa após vencer o concurso de passistas de 1952 do programa “Ao Compasso do Frevo”, promovido pela Rádio Tamandaré. “O sucesso dele veio depois desse concurso”, atesta Zenaide.

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Realizado em um auditório na rua Barão de São Borja, no bairro da Boa Vista, a competição era empenhadamente divulgada pelo Diario de Pernambuco, que narrava suas etapas e descrevia a performance de seus participantes. “Egídio Bezerra venceu espetacularmente criando passos próprios, evoluções de sua autoria, uma coreografia nova e surpreendente que a todos empolgou", descreve a edição do jornal de 23 de novembro de 1952. A vitória no concurso deu a Egídio status de celebridade e levou os Diários Associados, à época liderados por Assis Chateaubriand, a patrocinar sua viagem para a França, com a finalidade de divulgar o frevo pernambucano. O passista se apresentou, por exemplo, com o famoso ator francês Jean Louis Barrault.

A coroa de rei da cultura popular, contudo, não era o suficiente para garantir o sustento da esposa e de seus 14 filhos. Egídio conciliava as apresentações artísticas com o trabalho de motorista particular e com outras atividades como o conserto de lanchas no Iate Clube do Recife, em que costumava se apresentar de noite. “Meu pai sabia fazer de tudo, até injeção ele aplicava. Como era pescador, criou um passo de frevo chamado ‘escama de peixe’. Os nomes dos passos que ele criava tinham a ver com o dia a dia da gente, como “cortando jaca” e “chão quente”, que, como diz o nome, pra fazer não pode deixar o pé todo no chão”, explica Zenaide.

Egídio Bezerra, “Rei do Passo”, dançando xaxado com suas filhas no Iate Clube. (Katarina Real/Acervo Fundaj)

Em seu ambiente doméstico, Zenaide recebia as influências das danças populares praticadas por Egídio nas ruas do Recife, como o coco e o xaxado. “Meu pai nunca levou a gente para carnaval, não deixava a gente sair com ninguém fora ele. Quando a gente ia se apresentar era em clubes, ele saía num carro, com dez passistas, levava todo mundo pra lanchar e depois deixava todas em casa. Acho que ele estava certíssimo”, lembra Zenaide.

O professor do curso de Dança da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Arnaldo Siqueira chama atenção para a tensão entre classes que marcou a prática do frevo no século passado, quando uma série de modernizações transformou a cultura e a organização urbana do Recife. “Em seu livro ‘Festas: Máscaras do Tempo’, Rita de Cássia debate a dinâmica social do frevo a partir das representações das instituições de trabalho. Os blocos de rua, como Vassourinhas e Lenhadores, são organizados pela classe trabalhadora. São as pessoas comuns, negras e periféricas que vão gerar o frevo. Por outro lado, o carnaval nos clubes, como Português, Internacional e Náutico, era promovido pela elite canavieira rural que havia migrado para a capital e tinha inspiração europeia”, comenta.

Egídio Bezerra dançando no Iate Clube. (Katarina Real/Acervo Fundaj)

Se as ruas eram espaço de brincadeira, os clubes funcionavam como espaço de trabalho para os passistas. “Os clubes eram financiadores dos carnaval e, na promoção dessas festas, tinham toda uma dinâmica de pagamento e sustentabilidade. Assim, os artistas tinham remuneração garantida pelas apresentações, como hoje também acontece em alguns blocos de rua, que contratam grupos de passistas”, ressalta o professor.

Pedagogia do afeto

Com o objetivo de difundir os ensinamentos do pai, Zenaide criou o Grupo Folclórico Egídio Bezerra, com aulas de dança aos sábados, das 9h às 11h. O espaço de estudos é a sala de estar da casa da passista, que afastou alguns móveis para improvisar um salão de dança, aberto aos jovens da comunidade e a seus filhos e netos. “Não cobro nada, só peço para que eles não se esqueçam que aprenderam a dançar comigo, assim como eu digo a todo mundo que aprendi o que sei com meu pai. Quando vem o carnaval, a prefeitura contrata o grupo e chamo os que já aprenderam, eles ganham um dinheirinho”, comemora.

Zenaide Bezerra e suas alunas de frevo, que integram o Grupo Folclórico Egídio Bezerra. (João Velozo/LeiaJá Imagens)

Aluna de Zenaide desde os 16 anos de idade, a passista Emanoelle Santos da Silva, de 22 anos, soube das aulas de frevo através de seu padrinho. “Os dois são parentes. Depois que comecei, mudou muita coisa na minha vida, principalmente a maturidade que ganhei. Ela pega muito no pé, mas é uma ótima professora”, coloca. Mãe de dois filhos, um deles com apenas dois anos de idade, a passista precisou interromper os estudos e se afastar da frevo temporariamente. “Estou voltando a dançar, mas ainda ando muito travada. Também fiz um curso de socorrista e quero procurar um emprego. Até lá, o frevo é quem vai aliviando meu estresse”, acrescenta.

Boa costureira, Zenaide faz questão de elaborar os figurinos do grupo, tudo a seu gosto. Coreógrafa, ela é rígida em relação ao comportamento dos passistas e preza que as apresentações corram estritamente de acordo com suas determinações. “Para mim, o passista tem que ser comportado, me atender. Eu quero, vai ter que ser assim. Se eu deixar ele fazer o que quer, não vai dar certo”, comenta. Apesar disso, ela defende que o passista deve escolher qual frevo quer dançar. “Eu escuto o frevo e vou desenhando ele dentro de mim. Tem que escolher a parte da música que você gostaria de dançar, que batesse dentro do seu coração. O bom é isso. Para eu dançar um frevo que não gosto, canso muito, porque tô fazendo uma coisa que não é minha, sem empolgação. Marido chato, a gente bota pra correr”, brinca.

Divorciada, ela vive da própria aposentadoria, conquistada após anos de trabalho como professora de dança do Estado. “Gosto de morar sozinha porque saio de casa, volto e está tudo do jeito que eu quero”, dispara. Apesar do gosto pela convivência consigo mesma, sua rotina sempre acaba atravessada por algum filho, neto, bisneto ou aluno que a visita. Entre diálogos e interações, surge algum passo de frevo e, em seguida, uma recomendação. “Quando meu pai morreu, mandei chamar todo mundo e levantei o grupo. Botei minhas irmãs e filhos, até o que chorava pedindo pra não dançar. E hoje ele é meu melhor passista”, comemora.

Para o professor Arnaldo Siqueira, o esforço de Zenaide em repassar os ensinamentos de seu pai exemplifica a forma como se dá a transmissão de conhecimento na cultura popular. “É um processo que ocorre através da prática, do contato. No campo da ancestralidade, mestres como Egídio ou Salustiano sabem que é importante a relação geracional na prática dessas tradições. Zenaide fez a mesma coisa com os próprios filhos”, elucida. Siqueira também reforça importância da escolha da passista como uma das homenageadas do carnaval. “É um ato que reconhece a expressão do frevo através da pedagogia. Durante sua vida, Zenaide dedicou-se não apenas ao ensino do frevo, como das danças populares em geral. É uma mulher negra fomentadora do frevo a partir da pedagogia”, comemora.

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