De Lacraia a Nilson: os ícones antirracistas em Pernambuco
No Dia da Consciência Negra, o LeiaJá relembra alguns desses ídolos
O início do futebol no Brasil, ainda no final do século XIX, foi marcado pelo racismo. De origem etilista e praticada exclusivamente por brancos, nasceu como uma clara tentativa de segregação racial. Em Pernambuco, alguns nomes chegaram para quebrar paradigmas e ajudar a reescrever as páginas da história do esporte mais popular entre os brasileiros.
No Dia da Consciência Negra, celebrado no dia 20 de novembro em virtude da morte de Zumbi dos Palmares, o LeiaJá relembra alguns baluartes antirracistas em solos e gramados pernambucanos.
Lacraia: o pioneiro
O Santa Cruz tem contribuição essencial na inserção do negro em nosso estado. Quando nasceu, trouxe consigo um manifesto contra o racismo. Fundador do clube em 1914, Teófilo Baptista Bacelar de Carvalho, mais conhecido como "Lacraia", aparece na primeira foto oficial do Santa, destoando da maioria esmagadora de brancos.
A reportagem ouviu Gil Batista Bacelar Neto, bisneto de Lacraia, o primeiro negro a jogar por aqui. Ele nunca viu o bisavô atuar, mas ouvia as histórias do pai, Gil Batista Bacelar Filho, e, além de herdar a paixão pelo Mais Querido, se orgulha de sentir correr nas veias um DNA tão importante para a causa.
“Eu costumo dizer que sou um branco de alma preta. Vários dos meus antepassados são de cor negra, não só Lacraia. Na nossa família nunca houve nenhum tipo de distinção, todo mundo trata todos como iguais. Afinal, a cor não interfere nem no caráter nem no potencial da pessoa”, disse Gil.
Vale lembrar que, inicialmente, o Santa tinha um uniforme preto com listras brancas em homenagem a Lacraia. O clube só passou a ser tricolor após perder um sorteio contra o Flamengo-PE, que também era alvinegro, já que segundo o regulamento da extinta Liga Sportiva Pernambucana, o Estadual não poderia ter dois times com a mesma tonalidade. Depois de jogador, Lacraia ainda comandou o Santa como técnico.
Seu maior arrependimento foi não ter comparecido para assinar a ata de fundação por estar prestando vestibular no dia 3 de fevereiro de 1914. Ali, além de um grito por igualdade racial, nascia a alcunha "Time do Povo". Já como ex-jogador, ele foi gerente por décadas de um dos maiores bancos do país.
"Meu pai foi homenageado com uma placa no ano do Centenário do Santa (2014). Foi um dia que ele ficou bastante orgulhoso. Ele me falava muito de Lacraia, do pouco tempo que conviveu com ele. Já meu avô, Gil Baptista Bacelar, o viu jogando ", disse o bisneto.
Gil Baptista Bacelar Filho recebe homenagem no centenário do Santa (Arquivo Pessoal)
Não existe nenhum registro oficial sobre a data do óbito de Lacraia, assim como nenhum familiar vivo para dizer. No entanto, informações não oficiais dão conta que ele faleceu no início da década de 1960.
Nilson: o quebrador de barreiras
Nilson Corrêa foi um dos poucos goleiros negros a ter destaque no Brasil até os anos 2000. Nascido em Vitória-ES, ele marcou época defendendo a meta do Santa Cruz, clube no qual ficou até 2004. Neste mesmo ano, se mudou do Arruda para os Aflitos, sendo campeão pernambucano pelo Náutico, derrotando a própria Cobra Coral na decisão. Desde 2019, o ex-goleiro virou treinador de futebol - seu último clube foi o Aymorés-MG.
“Existia a máxima de que goleiro negro não ia vingar no futebol, mas eu e o Dida (campeão do Mundo pelo Brasil em 2002, no Penta), mostramos que isso não passa de um preconceito. Teve também o Barbosa, goleiro da Copa de 1950. Mas na minha época, duvido que chegue em 10 ou 15% do número de goleiros que eram de cor negra”, relatou Nilson ao LeiaJá.
Para contarmos bem a história de Nilson é preciso voltar a 2000. Jogando pelo Santa, era vítima constante de injúria racial nos Aflitos, com o torcedor ecoando sons alusivos a um macaco. Em janeiro deste ano, foi publicada a Lei 14.532/2023, que equipara a injúria ao crime de racismo, podendo culminar em reclusão de dois a cinco anos, de cunho imprescritível e inafiançável.
Perguntado pela reportagem sobre o que mudou de lá para cá, Nilson fez um desabafo. “Cara, sinceramente...pouca coisa mudou. A diferença é que já há alguns anos, existe o advento da internet, então as coisas se reverberam. E eu também acredito que muitas pessoas vão pelo 'politicamente correto'. Diz que é antirracista nas redes sociais, mas se ver um negro, atravessa a rua. Se for um negro sendo pego pela polícia, fala 'Olha aí! Só podia ser preto’”, disparou.
Outros nomes
Além de Lacraia e Nilson, outros jogadores marcaram época na luta por equidade racial no futebol pernambucano. Um deles é José Roque Paes, ou simplesmente Traçaia. Mato-grossense de Cuiabá, Traçaia é até o hoje o maior artilheiro da história do Sport, com 202 gols marcados. Dentre esses tentos, foram 10 hatt-tricks e duas partidas em que o craque marcou quatro gols - Sport 10 x 0 Auto Esporte em 1955, e Sport 7 x 1 Íbis em 1959.
O artilheiro defendeu o Rubro-negro entre 1955 e 1963. Logo em seu primeiro ano na Praça da Bandeira, ergueu o título do Cinquentenário, sob o comando do lendário técnico Gentil Cardoso. Neste campeonato, sagrou-se o maior goleador, empilhando 22 bolas nas redes adversárias. Ao todo, Traçaia foi pentacampeão estadual (1955, 1956, 1958, 1961 e 1962).
Traçaia, maior artilheiro da história do Sport (Arquivo)
No Náutico, outro negro que destruiu dogmas foi o jamaicano Alan Cole, amigo íntimo de Robert Nesta Marley, o Bob Marley, um dos maiores nomes da música em todos os tempos. Marley, inclusive, era fanático por futebol e chegou a atuar de forma amadora no país da América Central. Lembrando que o Timbu foi o time mais “resistente” do Trio de Ferro a aceitar negros como atletas.
No Santa Cruz, outros baluartes deixaram suas marcas. Na década de 1970, o pernambucano Ramon, nascido em Tracunhaém, se tornou o artilheiro do Campeonato Brasileiro de 1973, superando Leivinha, do Palmeiras, e Mirandinha, do São Paulo, ambos com 20. Edson Arantes do Nascimento, o Pelé, fez 18.
Ramon no gramado onde iniciou sua carreira, o Arruda (Divulgação/SCFC)
Ramon deu seus primeiros dribles com a bola na Usina Trapiche, enquanto se dividia entre cortar cana de açúcar e alimentar o sonho de um dia se tornar jogador de futebol. Depois de deixar o Mais Querido, passou por clubes como Internacional, Vasco, Goiás e Ceará, até pendurar as chuteiras, em 1985. Alguns tricolores que podem ser lembrados são Zé do Carmo e Luiz Fumanchu, entre tantos outros.