'Fui estuprada, durante vinte dias, dentro de uma cela'

Travesti presa injustamente cedeu seu corpo para ganhar a vida na prisão e foi infectada com o HIV após inúmeros estupros

por Eduarda Esteves sab, 01/12/2018 - 10:00

— Eles me bateram bastante e me levaram para o Cotel. E lá, quando eu entrei, nem os agentes penitenciários tiveram a sensibilidade de me informar porque eu estava encarcerada. Eu só descobri que era traficante quando procurei um canto para dormir na cela e os outros presos pediram a minha “nota de culpa” e eu entreguei o papel. Nele dizia que eu tinha sido presa em flagrante em posse de R$ 32 e 18 pedras de crack.

Há oito anos, Cleide Gomes*, que nesta reportagem ganhou nome fictício, hoje com 26 anos, era presa e nem imaginava que passaria pelo pior pesadelo da sua vida. Ela trabalhava como profissional do sexo nos principais pontos de prostituição do Recife, sempre migrando. Em uma dessas temporadas, optou por trabalhar no centro da capital pernambucana e o local ficava próximo a pontos chave do tráfico de drogas, além de ser violento. Para que as profissionais se sentissem mais seguras, elas se organizavam e pagavam R$ 50 cada para policiais que faziam a ronda na área ficarem de olho.

Mas, Cleide relembra que o clima nunca foi tão amistoso com os agentes públicos, eles a revistavam, escolhiam algumas para bater, levavam na cadeia e depois soltavam. Em uma dessas abordagens, uma policial mulher começou a revistar o corpo de Cleide. Ela a apalpava em todos os locais do corpo e quando chegou na região da genitália, descobriu que a profissional do sexo era uma mulher travesti e ficou indignada. “Eles não perguntavam nada, só vinham, começavam a tocar os nossos corpos e a gente era obrigada a aceitar tudo. A policial ficou muito irritada por ter tocado no meu pinto sem saber e começou a me bater, me bateram muito e cortaram o meu cabelo”, relembra Cleide.

Cleide entrou para o mundo da prostituição ainda jovem, não sabia que travesti podia fazer outra coisa". Foto: Chico Peixoto/LeiaJáImagens

Pouco tempo depois do ocorrido, ela tentou firmar um acordo com as outras travestis que trabalhavam na região, de que não iriam mais pagar nenhum centavo aos policiais, já que eles estavam batendo nelas e atrapalhando o desenrolar do local de trabalho das mulheres. “Eu lembro que nem todo mundo concordou, algumas meninas continuaram a pagar aos guardas e a gente dava nelas. Eu ficava revoltada e isso começou a ser percebido por eles, que eu batia de frente e colocava a minha voz sem medo nenhum”, destaca Cleide, admitindo que ir de encontro a voz da polícia para quem é marginalizado é muito perigoso.

Em uma dessas noites, de acordo com Cleide, como ela já estava “marcada” pelos agentes, foi algemada e apanhou muito. Depois, foi levada a central de plantões e logo em seguida presa. Cleide sempre alegou inocência e afirmava rotineiramente que nunca tinha traficado e seu trabalho era outro.

Encarcerada, para ela injustamente, sem direito a nenhuma voz, começou a perder as esperanças no Estado e na Justiça. Passou a encarar a nova realidade como parte de sua rotina e aceitou por algum tempo que seu futuro seria na prisão.

Cleide entrou para o mundo da prostituição ainda jovem, não sabia que travesti podia fazer outra coisa. Ao contar a família que queria viver como travesti foi expulsa de casa e passou a morar na rua com outras colegas. Aos 15 anos, encontrou uma transgênero e se identificou. “Ela me disse que se eu quisesse ser mesmo, meu único trabalho era programa. Eu me vi nela, percebi que isso era eu. Também queria aquela aparência de mulher. Foi aí que comecei a modificar o meu corpo. Tinha acabado o ensino médio e na época fui aprovada no vestibular para cursar enfermagem”, cita.

A família dela nunca a aceitou bem e apesar de seu companheiro na época não ter gostado da sua escolha, teve de conviver com ela. “Ele foi o meu primeiro e único amor. Mas mesmo com o olhar estigmatizado da travesti, eu quis ser”. Trabalhou em Pernambuco, em outros estados e também na Europa. Em uma semana boa e movimentada, Cleide conta que chegava a apurar R$ 15 mil. “Eu confesso que sempre quis sair da vida de fazer programa, mas eu não via outras alternativas. Travesti não podia ter emprego formal. As pessoas eram e ainda são preconceituosas. É só olhar ao redor e contar quantas estão atuando profissionalmente em áreas distintas”. lamenta.

Em 2010, assim que foi presa, ela relata que para sobreviver na prisão, precisava realizar trabalhos tipicamente femininos, na lavagem de roupas, na massagem de outros presos e também se prostituindo para ter onde dormir. Mas, por ela ter o curso técnico de enfermagem, conseguiu certo “privilégio” trabalhando nas enfermarias dos presídios. Foi transferida muitas vezes, sempre que acontecia uma rebelião, a levavam para outro presídio e a colocavam na enfermaria.

Após dois anos presa, Cleide foi transferida para o antigo presídio Aníbal Bruno, hoje transformado no Complexo Prisional do Curado, na Zona Oeste do Recife. Ela e mais duas travestis foram colocadas dentro de uma cela com mais de cem homens. Eram 103 pessoas dividindo um espaço minúsculo, em que não mal cabiam vinte presos. “Quando eu cheguei, o preso mais velho da cela, geralmente é o mais respeitado, me deu a mão, me ofereceu um canto para dormir e consegui até comer. Durante o dia ele foi gentil comigo e me preservou”. Ela detalha ainda que não imaginava que seria estuprada.

“De início, eu não fiquei preocupada quando fui colocada com mais duas travestis para uma cela com cem homens. Eu tinha certa ascensão lá dentro, trabalhava e era de certa forma respeitada, eles me conheciam e não imaginei que fossem me fazer mal. Mas, mesmo assim, pedi aos agentes que não deixassem nós três lá. Não adiantou”, conta. Cleide relembra que a noite se aproximou muito rápido e detento mais velho da cela a segurou pela mão e disse que queria ter relações sexuais.

“Eu não queria. Entrei em uma briga corporal e ele me furou com um pedaço de madeira. Fiquei toda machucada e cedi. Ele me estuprou a noite toda, por vários dias. Ele gostava da minha aparência feminina, era um objeto sexual. Ele me preservava porque me queria só para ele, apesar de outros homens também me estuprarem. As outras meninas também estavam sendo abusadas. Foi um pesadelo e não tinha o que ser feito. Tive que aceitar”.

Cleide relembra que quando retornou à cela após a triagem, apontou o homem que a estuprava todas as noites e foi informada pela enfermeira: “ele é soropositivo”. Foto: Chico Peixoto/LeiaJáImagens

Após vários dias de estupro, uma das travestis apresentou uma fissura anal de tanto ter relações com os outros presos e o sangramento de uma levou as três mulheres à sala da enfermaria para realizar uma triagem. Elas denunciaram a situação que acontecia nas noites, dentro da cela. “Estavam trancafiadas por vinte dias sendo molestadas. Eu contei a enfermeira e pedi para que saíssemos daquele local. A gente podia ser transferida. Mas nada foi feito. Mais uma vez. Naquela época não tinha pavilhão específico para LGBTs”.

Cleide relembra que quando retornou à cela após a triagem, apontou o homem que a estuprava todas as noites e foi informada pela enfermeira: “ele é soropositivo”. A gestão do presídio nada fez, no entanto. Sem muita informação dos processos que poderiam ser adotados após se expor à prática sexual sem preservativos, o corpo de Cleide começou a enfraquecer alguns meses depois. “Eu não sabia dos métodos que poderiam ser aplicados a mim, como hoje conheço a PEP*. Mas eles existiam. E era obrigação do Estado me proteger. Eles falharam comigo. Os presos continuaram me estuprando e eu não podia me prevenir, achava que era o meu fim”, lamenta.

*PEP – Profilaxia Pós-Exposição – é o uso de medicamentos antirretrovirais por pessoas após terem tido um possível contato com o vírus HIV em situações como: violência sexual; relação sexual desprotegida (sem o uso de camisinha ou com rompimento da camisinha), acidente ocupacional (com instrumentos perfurocortantes ou em contato direto com material biológico). A PEP deve ser iniciada logo após a exposição de risco, em até 72 horas; e deve ser tomada por 28 dias.

Ainda no ano de 2012, Cleide descobriu que estava infectada pelo HIV e caiu em depressão. Continuou na cela com os mesmos homens até o fim do ano. “Não tive o acompanhamento básico, não conseguia me prevenir, não tive tratamento humanizado e só comecei a tomar a medicação alguns meses depois do diagnóstico sair”, relata. Seu corpo era usado todos os dias. Ela só conseguiu observar um futuro diferente quando conheceu Maria Clara, agente de direitos humanos do Projeto Mercadores de Ilusão, que promove a prevenção, a cidadania, o protagonismo e autonomia dos profissionais do sexo, bem como tem representações em instâncias e espaços de controle social, atuando na promoção dos direitos humanos.

No cárcere, Cleide conheceu Clara e pela primeira vez descobriu que uma travesti também podia trabalhar muito além da prostituição. “O projeto me ajudou muito a conseguir realizar exames e ganhar os medicamentos de forma correta, além de explicar o que eu tinha, como deveria me tratar e trabalhar para eu me aceitar e seguir em frente”, analisa.

Três anos se passaram e quando Cleide já estava desacreditada na inocência, em 2013, conseguiu ser absolvida da pena e foi liberado. Após uma investigação, descobriram a filmagem de uma câmera de segurança de um hotel na rua onde a travesti foi presa em flagrante. As imagens mostravam que os policiais roubaram a bolsa dela e colocaram o dinheiro e a droga para forjar o crime de tráfico. “Assim que fui inocentada, eu comecei a processar o Estado. Fui presa injustamente, fui estuprada e infectada com HIV. Sofri muito”.

Decidida a ganhar a causa, Cleide precisou deixar de lado o processo porque recebeu visitas intimidadoras dos policiais que participaram da sua prisão, já que eles conseguiam o endereço que ela residia com facilidade. Fora da prisão, voltou a morar com seu companheiro de vida e conseguiu um trabalho fixo com carteira assinada, que preferiu não detalhar para não se expor.

No segundo semestre de 2018, ela estava indo visitar o marido no cárcere e enquanto aguardava a liberação do lado de fora do presídio, foi atingida por um tiro no centro do peito. Foto: Chico Peixoto/LeiaJáImagens

Oito anos depois, ela conta que parou de trabalhar como profissional do sexo para se preservar porque as pessoas soropositivas precisam de uma vida mais regrada e com mais cuidados. Ainda sente muita dor ao olhar para o passado e converte a revolta de seu corpo em militância na causa LGBT e no movimento Aids, a quem ela considera como único acolhedor nesse processo de descoberta e tratamento. “Eu tive a sorte de conhecer o GTP+, tiveram sensibilidade comigo e com meu corpo, era vista como ser humano”.

Tudo que aconteceu na vida de Cleide gerou muita revolta não só nela, mas também no seu marido, que hoje se encontra preso por cometer assaltos. “O sistema não é justo. Nossas ações muitas vezes liberam o nosso sentimento de raiva, por tudo que passamos”, comenta. No segundo semestre de 2018, ela estava indo visitá-lo no cárcere e enquanto aguardava a liberação do lado de fora do presídio, foi atingida por um tiro no centro do peito. “Eu estava sentada na kombi, esperando dar a hora de ir embora, quando começou um tiroteio. A bala entrou e não saiu”, conta. Ela foi socorrida, internada e conseguiram salvá-la. Ganhou uma cicatriz para se lembrar por toda a vida da posição que ocupa, à margem.

Mas isso não a fez uma pessoa fraca, pelo contrário, foram muitas situações difíceis que teve de enfrentar para estar viva e pronta para ajudar outras pessoas. “Eu aprendi muito sobre tudo, principalmente sobre a importância de se prevenir, de lutar pelos seus direitos e de entender que a vida pode ser tranquilamente vivida por uma pessoa soropositiva, mas o alerta tem que estar ligado a tudo. Porque a gente pode também decair muito rápido, se o tratamento não for seguido à risca”, finaliza.

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