CPI: Entenda a intermediação suspeita das vacinas

De PM a líder religioso, uma suposta rede de corrupção ligada à compra de vacinas contra a Covid-19 é revelada pela CPI no Senado. Veja até onde as investigações chegaram até agora

por Kauana Portugal ter, 13/07/2021 - 13:02
Pedro França/Agência Senado Senadores durante a CPI da Pandemia Pedro França/Agência Senado

A Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid-19 entrou na 11ª semana de funcionamento revezando o foco entre as investigações dos supostos esquemas de corrupção no Ministério da Saúde e o aval do presidente do Senado Rodrigo Pacheco (DEM-MG), segundo o presidente da comissão Omar Aziz (PSD-AM), da continuidade dos trabalhos.

Com foco nas suspeitas de corrupção nas negociações para a compra de vacinas, a CPI entra agora em uma nova etapa. Segundo os senadores, a comissão já reuniu provas suficientes para incriminar integrantes do governo em diversas outras frentes da condução da crise sanitária.

O LeiaJá explica abaixo quais os principais casos de corrupção investigados pela CPI da Covid-19 no Senado:

O cabo da PM que também “vende” imunizantes

Luiz Paulo Dominguetti é um cabo da ativa da Polícia Militar de Minas Gerais que diz ter começado a “atuar no mercado de insumos” para complementar a própria renda. O ato, em si, já é considerado uma infração, visto que o exercício de função remunerada em firma comercial é vedado aos militares da ativa pelo estatuto da PM-MG. Para a CPI, no entanto, não é essa a infração que chama mais atenção.

Afirmando atuar como intermediário brasileiro da empresa do ramo farmacêutico com sede nos Estados Unidos, Davati Medical Supply, Dominguetti compareceu ao Plenário da comissão no dia 1 de julho. Segundo ele, que atuou na negociação da venda de imunizantes Astrazeneca ao Ministério da Saúde, a Davati ofereceu 400 milhões de doses da vacina por um preço inicial de US$ 3,50. O valor total do negócio poderia chegar a US$ 6 bilhões se a compra tivesse sido concluída.

A atuação do suposto representante comercial e da Davati passou a ser investigada pela CPI da Covid após o cabo afirmar, em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo no dia 29 de junho, que recebeu um pedido de propina durante um jantar em um shopping de Brasília para tratar da aquisição de vacinas, em 25 de fevereiro.

A iniciativa de cunho criminoso, de acordo com Dominguetti, partiu do então diretor de Logística do Ministério da Saúde (à época comandado por Pazuello), Roberto Ferreira Dias, que posteriormente foi convocado pela CPI e confirmou o encontro com Dominguetti, mas negou que tenha pedido propina. Exonerado do cargo, Ferreira saiu da oitiva preso, pagou fiança e foi liberado.

Durante seu depoimento, Luiz Paulo Dominguetti reafirmou a versão contada à Folha, além de trazer também outros questionamentos envolvendo o caso. Um deles diz respeito ao próprio Dominguetti, que sequer tinha vínculo oficial com a Davati durante as tratativas, segundo afirmou a empresa através de nota divulgada no dia 30 de junho. À CPI, ele disse que sua “parceria” com a multinacional só foi “oficializada mesmo” em abril de 2021. Até então, segundo ele, existia “um acordo inicial verbal com o CEO da Davati no Brasil, que era Cristiano [Alberto Carvalho]”.

A empresa então admitiu que Dominguetti intermediou a negociação com o Ministério da Saúde na posição de “autônomo”, mas disse não tinha conhecimento sobre o pedido de propina. O cabo relatou ter ido algumas vezes ao Ministério da Saúde com o intuito de vender vacinas. “Eu tive a oportunidade de estar com três executivos do ministério: o Sr. Elcio Franco, o Sr. Roberto Dias, e o seu Lauricio, da Vigilância Sanitária. Eu estive três vezes no Ministério da Saúde ofertando as vacinas”, disse.

Lauricio seria Lauricio Cruz, atuante do Departamento de Imunização e Doenças Transmissíveis. Já Élcio Franco era secretário executivo da pasta, e foi exonerado em março de 2021. Na sequência, em abril, foi nomeado assessor na Casa Civil. Os senadores questionaram sobre o amplo acesso ao Ministério que Dominguetti afirmou ter, e citaram que outras empresas, inclusive mais reconhecidas, a exemplo da Pfizer, tentaram negociar as vacinas e não obtiveram respostas. Com relação a isso, o representante da Davati ressaltou que o contato com o governo foi facilitado por intermédio de outros agentes.

A ligação com nomes importantes da pasta, como Elcio Franco e Lauricio Cruz, segundo o representante, foi feita pela Senah (Secretaria Nacional de Assuntos Humanitários). Dominguetti citou também contato com Amilton Gomes de Paula, reverendo fundador da entidade, que deve ser convocado pela CPI para prestar depoimento nesta semana.

Astrazeneca nega ligação com a Davati

A investigação envolvendo a Davati torna-se ainda mais suspeita a partir de uma nota enviada pela Astrazeneca ao portal G1 logo após o caso vir à tona, em 29 de junho. O laboratório assegurou que “não houve representante da Astrazeneca e as vacinas são disponibilizadas por meio de acordos com o Ministério da Saúde e com a Fiocruz”.

No dia 2 de julho, também por meio de nota, A Davati veio a público para dizer que “não é representante do laboratório Astrazeneca e jamais se apresentou como tal.” A empresa afirmou atuar apenas como “facilitadora”.

“A Davati Medical Supply não detinha a posse das vacinas, atuando na aproximação entre o Governo Federal e um allocation holder, empresa que possuía créditos de vacinas junto ao laboratório AstraZeneca”, disse a empresa.

O reverendo que abriu as portas da Saúde

De acordo com citações do cabo da PM Dominguetti durante a oitiva à CPI, a Senah (Secretaria Nacional de Assuntos Humanitários) intermediou o contato com pessoas importantes do Ministério da Saúde. Segundo ele, o reverendo da entidade Amilton Gomes de Paula atuou nas tratativas.

A Secretaria Nacional de Assuntos Religiosos, fundada em 1999 com o nome de Senar, passou a se chamar Senah em 2020, conforme seu próprio site. Na primeira semana de julho a entidade passou a figurar nos noticiários nacionais após emails das tratativas com o Ministério da Saúde serem revelados no Jornal Nacional. Em um deles, de 9 de março, Laurício Cruz, diretor de imunização do Ministério, se dirige a Herman Cardenas, presidente da Davati nos Estados Unidos.

No e-mail, Laurício Cruz escreveu que “o Instituto Nacional de Assuntos Humanitários, representados pelo seu presidente Amilton Gomes”, teve agenda oficial no Ministério sobre tratativas da vacina AstraZeneca. Ele completou: "esperamos que os avanços de forma humanitária entre o ministério e 'Astrazenica' [sic] pelo Instituto Nacional de Assuntos Humanitários". É uma referência à Senah. O reverendo Amilton Gomes aparece ainda em uma série de outros emails das negociações.

Além disso, a Senah disponibilizou para a Davati os nomes de duas empresas nos Estados Unidos para receberem o pagamento de comissão, caso a negociação obtivesse êxito. O nome de Amilton Gomes de Paula aparece associado às duas empresas com os respectivos dados bancários.

De acordo com documentos revelados pela CNN Brasil, a Davati chegou a nomear oficialmente o reverendo como seu interlocutor com o Ministério.  “Devido às dificuldades de atender às necessidades deste Ministério quanto a vacina Sars-CoV2, a Davati Medical Suply, está nomeando o SENAH - Secretaria Nacional de Assuntos Humanitários, Sediado em Brasília DF para que seja nosso interlocutor de forma humanitária junto a este órgão”, confirmou o ofício de 8 de março obtido pela emissora e assinado por Cristiano Carvalho, CEO da Davati no Brasil.

Amilton de Paula, contudo, disse em entrevista ao jornal O Globo que Dominguetti ofereceu apenas uma doação à Senah pelo apoio à negociação, mas que o policial não chegou a especificar valores. Convocado para depor, o reverendo encaminhou nesta segunda-feira (12), um atestado médico à CPI da Covid-19, apontando “impossibilidade momentânea de comparecer ao depoimento” que estava marcado para a próxima quarta-feira (14).

As suspeitas se acentuaram na manhã desta terça (13), quando mensagens do celular de Dominguetti, que está em posse da CPI, reveladas pela revista Veja, comprovaram que Amilton Gomes teve encontros não oficiais com o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) no intuito de finalizar as negociações.

Empresa de histórico questionável

As irregularidades apontadas nas negociações com a Davati se somam a indícios de outras interferências envolvendo a atuação de intermediários suspeitos nas negociações de imunizantes. É o caso da Precisa Medicamentos, farmacêutica brasileira com contratos anteriormente investigados na área da Saúde. Apesar disso, a empresa mediou a contratação da vacina Covaxin, produzida pelo laboratório indiano Bharat Biotech.

Suspenso em 29 de junho, depois que suspeitas de favorecimento que vieram à tona, o contrato de compra da Covaxin acumula inúmeros questionamentos. Entre eles, o preço da dose do imunizante, a mais cara até então, e o prazo no qual a negociação ocorreu - muito mais rápido que o das outras vacinas, a exemplo da Pfizer. Além disso, existe ainda relato de pressão para agilizar a importação do imunizante.

Em depoimento à CPI da Covid, Luis Cláudio Miranda, deputado federal pelo DEM do Distrito Federal, e Luis Ricardo Miranda, servidor público e chefe do departamento de importação do Ministério da Saúde, alegaram ter relatado pessoalmente ao presidente Jair Bolsonaro as suspeitas envolvendo a aquisição da Covaxin. Segundo o depoimento dos “irmãos Miranda”, o presidente disse na ocasião que esse seria mais um “rolo” de Ricardo Barros, atual líder do governo na Câmara e ex-ministro da Saúde.

Na semana passada, ao ser questionado sobre a data em que Barros seria ouvido, o vice-presidente da CPI, senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) declarou que o deputado seria ouvido "no momento oportuno" e comentou que era para ele ter paciência que sua hora chegaria. Nesta segunda-feira (12), o líder do governo disse em seu Twitter que pediu ao STF (Supremo Tribunal Federal) para que o agendamento de seu depoimento fosse feito ainda nesta semana. Ele negou ter qualquer ligação com as negociações irregulares da Covaxin.

“Prevaricação se aplica a servidor público, não a mim”

Após o deputado federal Luis Miranda (DEM-DF) ter afirmado à CPI que avisou o presidente sobre irregularidades nas tratativas e pressões que seu irmão, servidor público, teria sofrido para acelerar o processo de compra da Covaxin, a Polícia Federal instaurou um inquérito para investigar a suspeita de prevaricação que recai sobre Jair Bolsonaro (sem partido). Nesta segunda-feira (12), contudo, o presidente afirmou que o crime “não se aplicaria a ele”.

“O que eu entendo que é prevaricação se aplica a servidor público e não se aplicaria a mim. Mas qualquer denúncia de corrupção, eu tomo providência. Até o do Luis Lima, mesmo conhecendo toda a vida pregressa dele, a vida atual dele, eu conversei com Pazuello: 'Pazuello, tem uma denúncia aqui do deputado Luis Lima que estaria algo errado acontecendo. Dá pra dar uma olhada?” disse o presidente em entrevista, trocando o sobrenome “Miranda” por “Lima”.

Bolsonaro continuou: “Ele [Pazuello] viu e não tem nada de errado: 'Já estamos tomando a providência. Vamos corrigir o que está sendo feito'. Agora, você pode ver. Foi corrigido. Ele falou comigo na véspera do meu aniversário, 20 de março, se não me engano, foi lá. Deixou alguns papéis lá. Não entrei com profundidade se era invoice, se não era".

A abertura do inquérito pela PF tem a autorização do Supremo Tribunal Federal (STF) e ocorreu após um pedido da Procuradoria-Geral da República. Segundo o Código Penal, o crime de prevaricação acontece quando um funcionário público "retarda ou deixa de praticar, indevidamente, ato de ofício", ou se o pratica "contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal". Ao contrário do que disse Bolsonaro, o presidente é um servidor público ligado ao Poder Executivo.

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