Sem limites para a eficiência

Pessoas com deficiência provam capacidade para crescer no mercado de trabalho e projetam um futuro promissor. Mas também há aqueles que se acomodam com benefícios assistenciais

por Dulce Mesquita sab, 17/03/2012 - 10:37

Às cinco horas da manhã, a atendente de telemarketing Maria José da Silva sai de casa, em Ouro Preto, com destino a Contax, em Santo Amaro. Depois de quase sete horas, ele segue para o Grupo Ser Educacional, para mais seis horas no Call Center. Quando chega em casa, lá pelas 21h, é hora de dar atenção ao filho de nove anos e cuidar dos serviços domésticos. Perto da meia-noite, depois que o marido chega da faculdade, vem o descanso. No dia, seguinte, começa tudo novamente. O que parece uma rotina cansativa, para Maria é uma conquista. Com deficiência em uma das pernas, ela mostra que a muleta não é obstáculo para a realização pessoal e profissional.



E ela não para por aí. “O meu objetivo é ir para a faculdade cursar gestão de recursos humanos, fazer uma pós e depois fazer comunicação social. Já tenho uma proposta para trabalhar no RH da empresa, mas primeiro preciso ter o curso. Quero ter tempo para me dedicar aos estudos e tenho o apoio da minha família para isso”, conta. De fato, as duas últimas décadas foram marcadas pela maior inserção de pessoas com deficiência no mercado de trabalho. Isso graças a Lei 8.213, de 24 de julho de 1991, que determina que as empresas destinem de 2% a 5% dos postos de trabalho para os portadores de deficiência.



Mas, apesar da ampliação de oportunidades de trabalho, nem sempre a regulamentação é seguida à risca. Em Pernambuco, diversas empresas descumprem a norma e são acionadas pelo Ministério Público do Trabalho. “Abrimos um processo de investigação e intimamos a empresa a comparecer à audiência com a documentação necessária. Geralmente, assinamos um termo de ajustamento de conduta e damos um prazo para a regularização. Se percebemos que não há interesse, entramos com uma ação civil pública”, explica a procuradora Melícia Nesel, responsável pela Coordenadoria de Combate à Desigualdade e Discriminação no Trabalho. Segundo ela, o descumprimento ocorre tanto no comércio e indústria, quanto nas empresas de serviços.



“O maior entrave é a falta de responsabilidade social e o preconceito de que elas são capazes apenas de exercerem cargos de baixo escalão. Nas audiências, percebi que as empresas até chegam a separar as vagas, mas não têm iniciativa de ir em busca desses profissionais”, conta. Ela lembra de um caso de uma rede hoteleira que não sabia o que fazer. “Sugeri um anúncio no jornal. No início, eles desacreditaram que haveria resultado, mas se surpreenderam quando a procura foi maior que a oferta de vagas. O que falta é a iniciativa”, frisa.



Do lado das empresas, a reclamação é sobre a falta de qualificação. “Os deficientes, por muito tempo, forem excluídos de vários processos, mas há sim pessoas capacitadas. Todos os argumentos das empresas transferem a culpa para a pessoa com deficiência, mas o que existe é um preconceito mascarado por ações pontuais”, critica João Maurício Rocha, da Superintendência Estadual de Apoio à Pessoa com Deficiência (Sead/PE). Para ele, o perfil profissional precisa ser avaliado, antes de determinar em que setores das empresas serão abertas as vagas. É o que acontece no Grupo Ser Educacional. “Primeiro identificamos a experiência de trabalho, as habilidades e as aptidões. Em seguida, procuramos identificar o setor mais adequado e se a deficiência não irá prejudicar o desempenho profissional”, explica a analista de RH, Viviane Barros. Segundo ela, também é preciso fazer um acompanhamento dos funcionários para sanar as dificuldades encontradas.



No dia a dia, os empresários também devem oferecer boas condições de trabalho. “Algumas empresas juntam todos os portadores de necessidades especiais e os colocam numa sala só, sem contato com os demais funcionários. Isso não pode existir e configura em assédio moral. Não basta inserir, é preciso incluir”, salienta a procuradora Melícia Nesel. Para isso, é preciso instalar rampas e banheiros adaptados, bem como modificar os móveis quando for necessário, por exemplo. A deficiência, em alguns casos, também precisa ser levada em consideração para evitar o esforço exagerado. “Quando fiz entrevista para o Carrefour, a encarregada só me deixou trabalhar como operadora de caixa quando eu passei a usar uma muleta. Como precisava do trabalho, fiz esforço e me acostumei, mas forcei demais a perna e a coluna. Graças a Deus, hoje as coisas são diferentes”, conta Maria José da Silva.



Benefício Assistencial

Além da chamada Lei das Cotas, a Constituição Federal estabelece que a pessoa portadora de deficiência deve receber um salário mínimo, desde que não possua condições de prover renda pessoal. O benefício é operacionalizado através do Instituto Nacional do Seguro Social, do Ministério da Previdência Social. A fonte de renda, que contribui para o sustento de milhões de brasileiros, também gera o comodismo em alguns beneficiários, que mesmo tendo condições, optam por não trabalhar. “Se eu recebo um salário mínimo sem precisar fazer nada, porque eu vou me esforçar e ir trabalhar para receber a mesma coisa? Prefiro ficar em casa”, considera José Costa*, que é surdo. Ele não é o único a assumir essa postura. “Tem tanta gente por aí vivendo de Bolsa Família e outros benefícios sociais, porque eu não posso? O benefício é um direito que tenho e eu não vou abrir mão dele. Pode ser errado, mas essa não é a única coisa errada no Brasil”, diz Mário Souza*, que também é surdo.



A atitude recebe a reprovação de várias pessoas portadoras de deficiência. “Hoje em dia, as oportunidades são muitas, o que falta é o interesse mesmo”, considera Fábio Patrício dos Santos. “Eu sempre fiz tudo, trabalho e estudo. Nada pode me impedir”, conta Suyen Marques. “Não concordo com o comodismo, porque não tem coisa melhor do que não depender de ninguém. Eu gostaria de trabalhar e não posso, mas também não fico por aí abusando. Tem gente que recebe o benefício, pode trabalhar, mas prefere pedir esmolas nos sinais. Não dá”, salienta Saulo Dias de França.







Há oito anos, ele sofreu um acidente de moto e sofreu uma lesão medular T4, que hoje o impede de trabalhar. “Não sinto nada do tórax para baixo. Não tenho controle da urina e das fezes. Não quero passar por constrangimentos. Só um cadeirante sabe o que passa. Sinto falta do trabalho”, conta. O objetivo de vida é conseguir ficar independente da cadeira de rodas e das muletas e trabalhar com informática. “Enquanto não tiver controle do meu corpo, não dá para trabalhar. Mesmo que seja para sair de cadeira de rodas, se for para receber o mesmo que recebo de aposentadoria por invalidez, prefiro ficar em casa. O trabalho que dá sair de casa e pegar um transporte, não vale à pena”, considera ele, que atualmente faz uma campanha nas redes sociais para arrecadar fundos para comprar uma cadeira de rodas adequada. Quem quiser ajudá-lo pode entrar em contato pelo e-mail saulodiasfranca@hotmail.com ou pelo telefone 3273-6555.



Para João Maurício Rocha, do Sead/PE, antes de qualquer julgamento, é preciso observar o contexto social. “Às vezes, um conjunto de fatores impede a inserção no mercado de trabalho, como moradia e transporte inacessíveis. Também, as condições de emprego nem sempre estimulam. O que se espera é uma maior promoção da acessibilidade”, destaca.



Sobre o benefício assistencial, o chefe do Serviço de Administração de Informações de Segurados do INSS em Pernambuco, Olacir Luchetta, explica a concessão depende da avaliação da assistência social e da perícia médica. “Primeiro, os assistentes sociais fazem a análise das condições, como renda per capita familiar, chegando a fazer visitas residenciais. Em seguida, a pessoa passa por uma perícia e só então se torna um beneficiário”, explica. Segundo ele, muitas pessoas com deficiência temiam entrar no mercado de trabalho e perder o benefício. “Agora, a pessoa não perde mais. Se ela começa a trabalhar, o benefício é suspenso. Se um dia ela ficar desempregada, pode voltar a receber o benefício. Mas isso não é automático. É preciso retornar ao INSS e dar entrada no pedido”, esclarece.



Competência e superação

Para quem está no mercado de trabalho, a deficiência não é pretexto para fazer “corpo mole”. Há 22 anos trabalhando no Bompreço, Elaine Costa que começou como operadora de caixa, hoje é encarregada de gestão de abastecimento da loja localizada no Parque Amorim, no Recife. Ela conta com orgulho que sempre cumpriu com o dever e quer ir além na vida profissional. “Se me derem oportunidade, quero chegar à gerência do supermercado. Eu sei que tenho potencial”, evidencia.



No ambiente de trabalho, ela conta sempre com o apoio dos colegas, mas diz que isso depende da postura profissional. “Não dou brecha para a exclusão. Não deixo que me menosprezem ou me vejam como uma coitada. Coitada, por quê? Eu sou uma pessoa normal, exerço cargo de liderança e gosto de trabalhar acima de tudo”, diz.



Transmitir segurança ao funcionário é um dos papéis das empresas, que precisam colocar em prática uma política de inclusão. “Capacitamos os funcionários que não são portadores de deficiência para que eles possam se comunicar e se relacionar da melhor forma possível com os portadores de deficiência. Possuímos, também, espaços adaptados”, explica a diretora de Capital Humano do Walmart Brasil, Fernanda Caracciolo. Sobre as oportunidades de promoção, ela conta que as chances são as mesmas para qualquer funcionário. A dedicação, o empenho, os resultados e a excelência no trabalho é que contribui para o crescimento. “O varejo é uma das áreas de trabalho onde a ascensão profissional acontece de forma mais rápida. Nossos líderes, hoje, são em sua maioria pessoas que iniciaram em funções em lojas. Isso independe de ser portador ou não de deficiência”, salienta.



É com essa perspectiva que Elaine segue em frente. “Sou uma profissional competente. Não vou me conformar com o come e dorme, com o salário mínimo. Eu quero mais. Sei o meu valor. Adoro trabalhar e não me canso”, finaliza.



* Os entrevistados preferiram não teremos nomes divulgados.

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