O Recife e suas profissões que resistem ao tempo

Engraxate e alfaiataria são algumas funções que lutam para sobreviver às mudanças econômicas

por Geraldo de Fraga qui, 23/02/2017 - 15:30

Não são apenas os prédios antigos que proporcionam uma volta ao passado a quem percorre os bairros do Centro do Recife. O cenário não estaria completo sem alguns profissionais tradicionais que resistem ao tempo, seja nas calçadas, nas ruelas ou em pequenos estabelecimentos. Ofícios de décadas, muitas vezes passados de pai para filho, que se mantêm fiéis às raízes, se reinventando pouco ou quase nada. E, sobretudo, contrariando um plausível processo de extinção.

Vinil de volta à moda

Desde 1986, um ponto embaixo da marquise do edifício Pernambuco, na Avenida Dantas Barreto, é o local de trabalho de José Freitas Pereira, de 73 anos. “Comecei a vender discos de vinil depois que me aposentei, porque não conseguia mais emprego”, conta. Para encontrá-lo é só passar lá durante o dia, de segunda à sexta-feira. Aos domingos, ele leva seus produtos para a feirinha do Recife Antigo.

Na contramão de serviços como Spotify, músicas em MP3 ou do quase já obsoleto CD, Freitas encontrou um novo filão para que seus discos continuem sendo procurados. “A moda está voltando. Vem colecionador comprar aqui e também gente que quer passar o som para o computador”, explica. De acordo com ele, a época de ouro foi nos anos 80 e 90.

A paixão de Freitas pelo comércio de vinil vai além de faturar uns trocados (entre R$ 70 e R$ 80 reais por semana). Ele é quase um arqueólogo de discos. “Eu coleciono também, tenho muitos em casa. Saio por aí comprando de quem guarda ou vai jogar fora. Hoje o que mais se procura é MPB e rock”, revela.

Nem tudo são flores

Cícera Maria, 56 anos, divide a calçada da Avenida Guararapes com mais duas bancas de flores. O ponto é bom, mas já viveu dias mais floridos. “Antigamente tinha muita vantagem, mas hoje em dia só dá pra se arrastar. Caiu muito por causa da Ceasa. Eles tiram cliente da gente porque vendem pelo mesmo preço. Não vivo mais disso aqui e sim da minha pensão”, revela.

Se hoje é ruim, o comércio de flores já rendeu muito. “Criei três filhos com o que consegui aqui. Uma é psicóloga e os outros dois são administradores”, se orgulha. Dona Cícera está na Guararapes há dez anos, mas seu ofício já vem de três décadas. “Comecei a trabalhar para os outros e resolvi abrir meu negócio. Gostei do ramo”, conta. Sobre a época mais lucrativa, ela não pensa duas vezes para responder: “Dia dos Namorados”.

Engraxate e sapateiro

A mesma calçada das bancas de flores pode ser considerado uma “engraxatódromo” do Recife. São 11 profissionais trabalhando diariamente, na Avenida Guararapes. Um deles é Cícero Santana, 54 anos, morador do Ibura. “Engraxo, boto solado, colo, remendo. Aqui eu só não fabrico o sapato”, brinca. São duas décadas no mesmo lugar.

Ele jura que aprendeu sozinho, tanto a função de engraxate como a de sapateiro. Tentou ensinar aos filhos, mas nenhum quis. “Isso é um dom, não é todo mundo que tem paciência para esse trabalho”, explica, enquanto mostra como se costura um sapato de couro. “Mas conserto tênis e chuteira também”, complementa.

Sobre a pouca clientela de hoje, Cícero não culpa o desgaste do seu ofício e sim o momento econômico do País. “Você não está vendo essa crise não? Eu compro uma lata de graxa e ela dura oito dias”, reclama. Durante a entrevista algumas pessoas apareceram para consertar cintos e bolsas. Nenhuma para engraxar sapatos.

"Alfaiate acabou. Não tem mais"

Talvez umas das profissões mais ameaçadas de extinção seja a alfaiataria. Foi-se o tempo da roupa por encomenda, cortada sob medida. Ela foi trocada pela praticidade das lojas de departamento. Saturnino Xavier concorda. No alto dos seus 88 anos, ele fala com autoridade. “Alfaiate acabou. Não tem mais”, declara, porém, com serenidade, sem pessimismo algum.

Mesmo assim, uma carreira que perdura desde a infância é quase impossível de se abandonar. O ponto onde Saturnino trabalha (Rua Matias de Albuquerque, Santo Antônio) está fechando, por causa dos problemas de saúde do seu chefe e proprietário do lugar. Mas engana-se quem acha que ele vai parar. “Não vou deixar de trabalhar nunca, não consigo ficar em casa. Vou procurar um lugar pra mim”, garante.

Saturnino aprendeu seu ofício ainda criança, quando morou na cidade de Barreiros, na Mata Sul de Pernambuco. Seguiu a carreira para a vida toda, chegando a se aposentar como alfaiate da loja Arapuã, que qualquer recifense com mais de 30 anos deve se lembrar. Para ele, a maior satisfação é ver alguém bem vestido. “Somos nós que fazemos a elegância da cidade”, orgulha-se.

Puxando da memória, ele cita alguns profissionais com quem trabalhou: “Maurício, Eulino, Valentin”. Saturnino recorda dos antigos colegas como se falasse de verdadeiras celebridades do Recife, seus ídolos. Fechando a loja para voltar para sua casa em Água Fria, ele repete que vai mesmo procurar um ponto só seu. “Ainda não falei com ninguém, mas vou providenciar”, promete.

Concorrência chinesa

O pai de Josimar Gomes, mais conhecido como Doda (42 anos), era relojoeiro e percorria o bairro de São José atendendo os clientes em uma kombi. Nos anos 90, conseguiu um box na Rua da Flores e, finalmente, arrumou um ponto fixo. Há dez anos, se aposentou e Doda, que já seguia seus passos, assumiu o local. Ele troca pilha, pulseira, vidro, mexe milimetricamente em todas as peças.

Na mesma rua, há outros profissionais do ramo, além de amoladores de alicates e chaveiros. Para o filho que herdou o ofício do pai, a era de ouro do ramo passou. “Não está como antes, não é? Hoje o povo só compra esses Xing Ling. O preço do relógio chinês é o mesmo de uma pilha que eu vendo. Aí fica difícil”, relata.

Sua freguesia é formada basicamente por conhecidos de longas datas. “Tenho clientes antigos e fiéis, que têm relógios bons e querem mantê-los funcionando. Mas não vem gente nova. Esses preferem levar em uma autorizada. Sem contar que alguns têm medo de vir aqui no Centro”, lamenta.



Museu da barbearia

O número 95 da Domingos José Martins, Bairro do Recife, sedia a barbearia Bom Jesus. Cláudio Dias, proprietário do espaço, comenta que o negócio, herdado do pai da sua esposa, já tem mais de um século de existência. O sogro foi barbeiro, mas ele nunca exerceu a profissão, apenas administra o local. Nisso lá se vão 30 anos de gerência.

Atualmente Rinaldo de Lima é o único profissional trabalhando lá. Começou em 2013, é recente na profissão. “Já fui adestrador de cães, segurança, um monte de coisa até me interessar por cortar cabelo. Aprendi com um barbeiro de Olinda e depois fiz dois cursos”, conta. Rinaldo diz que prefere a barbearia antiga e que não se sente ameaçado pelas recentes Barber Shops. “Não vejo concorrência, barbeiro é barbeiro em qualquer lugar”, releva.

Mais do que um simples empreendimento, a barbearia Bom Jesus é conhecida no bairro por proporcionar uma volta no tempo aos fregueses. “Eu me sinto muito à vontade aqui. Venho desde que descobri. É como um museu”, conta o Amaro Feitosa, funcionário da Receita Federal, e frequentador desde em 1980.

Os instrumentos e móveis antigos ficam expostos como relíquias. Segundo Cláudio Dias, o assédio dos compradores é grande. “Muita pessoas vêm aqui querendo comprar as cadeiras. Já me ofereceram R$ 5 mil, disseram para eu procurar a melhor cadeira do Recife para fazer uma troca, mas eu não vendo porque é da família da minha mulher”, explica.

O negócio ainda rende, mas já foi mais lucrativo. “A clientela maior era o pessoal do porto, mas depois de Suape diminuiu demais. Hoje é só o povo que trabalha aqui nas redondezas”, conta Cláudio. Além dos interessados no corte, que custa R$ 20 (R$ 15 a barba), quem também sempre aparece são os turistas. “Todo dia tem gente pedindo para tirar foto sentado nessas cadeiras”, brinca.

Império da pipoca

Segundo dona Ana Lúcia (53 anos), seu pai foi o “fundador da pipoca de carrinho no Recife”. Ela conta que o patriarca Elisário dos Santos (conhecido como Sula), hoje com 74 anos e aposentado, comprou dez carroças e iniciou uma franquia colocando os nove filhos juntos com ele para comercializar o produto nas ruas do centro da cidade. Isso, por volta da primeira metade da década de 70.

O ineditismo de Seu Sula com os carrinhos de pipoca é bem impreciso, mas o fato é que ele montou uma verdadeira cadeia produtiva. Segundo Dona Lúcia, todos os seus irmãos ainda seguem na profissão e os próprios filhos delas também. Todos sempre trabalham nas ruas do centro, onde, de acordo com ela, é “melhor para vender”.

A tradição segue firme, sem se preocupar com os vendedores de pipocas industrializadas que tomaram conta das ruas e avenidas do Recife. “Não atrapalha. Todos precisam ganhar seu dinheiro. Eles vendem as deles e nós a nossa. Acho que a minha é melhor porque é feita na hora”, garante.

Doce japonês, herança portuguesa

Aos 22 anos de idade, Luís João de Lima chegou a São Paulo para trabalhar como arrumador, mesma profissão que também exerceu no Porto do Recife e pela qual se aposentou. Mas lá em terras paulistas ele fez muito mais do que carregar e descarregar caminhões, ele aprendeu a fazer doce japonês com um cozinheiro português.

Hoje, com 76 anos, Seu Luís usa a iguaria como renda complementar e se orgulha do seu produto feito em casa. Os sabores são os clássicos banana, batata, coco e amendoim. “Queria fazer de castanha, mas está muito cara”, lamenta. Com seu tabuleiro, ele percorre as ruas do centro há três décadas. Muito tradicional no Recife até os anos 80, vendedores de japonês hoje são raros.

Ele culpa os cuidados excessivos com a saúde pela falta de uma clientela maior e defende que sua guloseima não faz mal, mesmo contendo uma quantidade relevante de açúcar. “Quando eu era pequeno minha mãe me mandava comprar doce porque estava amamentando e queria ter leite. Hoje, dizem que faz mal, inventam doença, diz que dá diabetes”, reclama. “O doce é vida e a vida é doce”, filosofa.

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