Inclusão de pessoas com deficiência marca Lei de Cotas

Quase 15 mil pessoas estão matriculadas em cursos superiores de instituições públicas, no entanto, ainda há sérios percentuais desse público que atestam problemas educacionais

por Marcele Lima sab, 06/07/2019 - 20:21

Richard Rafael Cruz é estudante beneficiado pelo sistema de cotas para deficientes. Foto: Marcele Lima/LeiaJáImagens

Um dos últimos grupos a serem inseridos na Lei de Cotas, de agosto de 2012, foi o dos deficientes. A alteração na legislação vigente foi proposta pelo senador Cássio Cunha Lima (PSDB/PB); o ex-presidente Michel Temer sancionou no final de 2016. A Lei Nº 13.409/2016 passou a incluir esses estudantes na reserva de vagas nas instituições de ensino federais. O número de oportunidades que devem ser reservadas é decidido de acordo com a proporção dessa população na unidade da Federação onde a instituição está localizada, conforme dados divulgados no Censo Demográfico, de 2010.

De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), no último Censo, existiam no Brasil 45,6 milhões de pessoas com algum tipo de deficiência, correspondendo a 23,9% da população. Essas pessoas, no entanto, têm pouco acesso à educação inclusiva e de qualidade desde a base. Os números apontam que 61,1% das pessoas com 15 anos ou mais com alguma deficiência não possuem nenhum grau de instrução, ou têm apenas o nível fundamental incompleto. Outras 14,15% concluíram o fundamental ou possuem o médio incompleto. Já 17,67% têm ensino médio completo e apenas 6,6% concluíram algum curso superior.

Para a diretora geral do Centro de Excelência e Inovação em Políticas Educacionais da Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro e professora visitante na Faculdade de Educação de Harvard, nos Estados Unidos, Cláudia Costin, é necessário que haja uma melhoria na educação básica, independente de qualquer estratégia para tornar as universidades mais plurais. De acordo com a docente, é preciso combinar excelência com equidade e as cotas cumprem um papel temporário de garantir o acesso à graduação, enquanto não há de fato uma política voltada para inclusão. “Junto com isso precisamos garantir que a universidade represente a partir de um determinado patamar de desempenho, a diversidade presente na nossa sociedade e que ao mesmo tempo se dê para construção de uma sociedade mais justa, durante um certo período, uma chance adicional para aqueles que tiveram todas as suas chances removidas”, analisa Cláudia.

O último Censo da Educação Superior, divulgado no final de 2018 pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), aponta que 14.293 pessoas com deficiência estão matriculadas em cursos de graduação nas universidades públicas brasileiras, em cursos presenciais ou a distância. Dessas, 10.667 são de UFs ou IFs. A maior parte tem deficiência física, baixa visão, cegueira ou deficiência auditiva. Richard Rafael Cruz é um desses alunos. Ele possui uma deficiência nas mãos, com ausência de alguns dedos, o que não o impossibilitou de querer ser médico. Sua condição traz desafios para ele, mas também para os professores, que precisam encontrar métodos que o auxilie na aprendizagem, já que na medicina a utilização das mãos é essencial.

Para Rafael, como gosta de ser chamado, as cotas implantadas pelo Sistema de Seleção Unificada (Sisu) ajudam na quebra de estereótipos relacionados a determinados cursos, sobretudo os de saúde, e ampliam as chances de estudantes que já vieram das escolas públicas, com realidades de inclusão limitadas.

“O curso de medicina segue um padrão e eu acho que as cotas vêm para quebrar esse padrão e mostrar que o curso e a universidade são para todos. E desde a instalação do Sisu, o curso vem sofrendo várias mudanças e a gente percebe isso. A gente sabe que o Brasil tem todo um contexto histórico, no que tange às minorias, então é a questão de você provar, não só para você, mas para as pessoas que você é capaz de chegar aonde quiser, independente de qualquer barreira ou desafio”, diz o estudante.

Rafael está indo para o terceiro período de medicina na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), que possui 386 estudantes com deficiência, sendo a física a mais prevalecente. Ele é favorável ao sistema que lhe colocou no curso, porque acredita que o Sisu possibilita o acesso de pessoas que antes viam o sonho de entrar na universidade distante. Contudo, o universitário deseja que haja muito mais que a inserção na faculdade e sim uma inclusão concreta. “Comigo entraram outras pessoas com deficiência e algumas delas reprovaram. Eu acho que a universidade ainda não está tão preparada para receber os alunos, de certa forma. Existem certas particularidades que a universidade não dá atenção. Quando você entra, ela trata você de forma igual aos outros alunos e eu acho que no contexto da inclusão, isso não é completo”, opina o jovem.

Quando pensa no futuro, o estudante vê na graduação a possibilidade de superar as dificuldades. “Eu espero realmente dar uma vida melhor para minha família, e caso tenha um filho, dar uma vida melhor que a que eu tive. Eu acho que vou conseguir, tenho meus planos e meus interesses e o sistema de cotas permitiu que isso se tornasse realidade a partir de um sonho que vai ser efetivado quando eu acabar o curso”, externa Rafael.

Para as pessoas com deficiência faltam mudanças que vão além da inserção na graduação. “Cota é necessária para que a balança da justiça social mensure com equidade a distribuição de oportunidades entre os cidadãos, com e sem deficiência, pois, quando equiparados, seja por tecnologias assistivas, prioridade no atendimento ou por cotas, podemos disputar em pé de igualdade, para que não haja evasão escolar por motivo de preconceito, falta de acessibilidade ou de profissionais capacitados para absorver a demanda de pessoas com deficiência nas unidades de ensino. Há de se entender que existem diversas especificidades dentro do multiverso das pessoas com deficiência”, destaca o presidente da Organização Não Governamental ‘Deficiente Eficiente’, Felipe Gervásio.

Deficientes precisam se adaptar às dificuldades estruturais dos espaços acadêmicos. Foto: Pixabay

Ingressos no grupo das ações afirmativas do Sisu por último, os deficientes precisam se adaptar às dificuldades da vida acadêmica, incluindo as estruturais. Os prédios, antigos, padecem de estruturas acessíveis para cadeirantes, cegos, bem como ainda faltam profissionais capacitados para atender as necessidades individuais de surdos, autistas e pessoas com múltiplas deficiências. Um estudante da UFPE, por exemplo, precisou recorrer à Justiça depois que sofreu uma queda da escada por conta da falta de elevadores no Centro de Ciências da Saúde, Campus Recife, onde cursa biomedicina.

O estudante, que preferiu não se identificar, entrou com um processo na Justiça contra a Universidade, que foi condenada pelo Ministério Público a fazer as alterações, como instalações de elevadores no prédio do CCS, para garantir o direito dele de estudar com dignidade. O aluno tem paralisia cerebral, que compromete as habilidades de coordenação e mobilidade de membros superiores e inferiores. Precisou adquirir com recursos próprios uma mesa para conseguir fazer as provas. “Eu gostaria que tudo fosse adaptado, sem precisar que os alunos tivessem que correr atrás por esse direito. Às vezes parece que a gente está é pedindo um favor”, critica o estudante.

Por outro lado, o futuro biomédico acredita que as ações afirmativas abrem as portas para quem já entra nos processos seletivos, segundo ele, em desvantagem. Para o jovem, os deficientes ainda precisam de mais incentivos para continuarem seus estudos. “As cotas são muito importantes porque nos dão mais oportunidades. Eu só conseguir entrar na universidade por causa das cotas. Mas é preciso também incentivo dos pais, das escolas. Muitas pessoas preferem ir para uma faculdade particular ou simplesmente preferem ir para o mercado de trabalho do que estudar”, diz.

Núcleos de Acessibilidade

Grande parte das instituições de ensino superior que aderiram ao Sisu possui Núcleos de Acessibilidade. Os profissionais que trabalham nesses espaços buscam soluções para evitar que mais estudantes com deficiência passem por situações como a do aluno de biomedicina. Cabe aos núcleos criar métodos para garantir que um estudante cego, por exemplo, consiga material em braile ou que um surdo tenha um intérprete ao seu lado.  

Na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), 264 alunos são deficientes. A instituição é uma das que mais matriculou esses estudantes desde a inclusão do grupo na Lei. “A UFMG criou em 2015 o Núcleo de Acessibilidade e Inclusão (NAI) para atendimento dos alunos com deficiência, e oferece acompanhamento acadêmico, material adaptado, dispositivos de auxílio, transporte dentro do campus para alunos com mobilidade reduzida, dentre outras ações”, explica a docente do NAI, Maria Lourdes Vieira. De acordo com ela, é preciso que todos tenham conhecimento sobre as possibilidades de acesso, para que haja igualdade de oportunidades para todos. No entanto, além da reserva das vagas, algumas iniciativas precisam ser feitas. “É preciso desenvolver um processo contínuo de mudança de todas as dimensões de acessibilidade (atitudinal, metodológica, física e instrumental), a fim de que as IES sejam de fato instituições inclusivas”, conclui.

Na UFPE, pouco mais de 100 alunos conquistaram a vaga através do Sisu. Antes disso, os alunos entravam pelo processo como todos os demais. A reserva ampliou o acesso e fez com que o trabalho do Núcleo de Acessibilidade (NACE), que começou em 2014, precisasse oferecer muito mais serviços voltados para a inclusão e necessidades individuais. Para acompanhamento, os alunos precisam entrar em contato com os profissionais do núcleo para sejam identificadas suas necessidades. Frequentemente, os professores passam por cursos de capacitação, que incluem módulos que discutem a acessibilidade, buscando minimizar os problemas que os alunos possam encontrar.

O NACE funciona em Recife, no Prédio da Biblioteca Central da UFPE, no segundo andar, Campus Recife. Já em Caruaru, o espaço fica no bloco da Casa do Estudante, no Centro Acadêmico do Agreste e em Vitória de Santo Antão, na Biblioteca Setorial do CAV.

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Para os estudantes com algum tipo de deficiência conseguirem ingressar em um curso superior pelo Sisu, eles precisam obedecer alguns critérios. O primeiro é ter estudado em escolas públicas e ter feito o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Depois da aprovação, os alunos precisam comprovar a condição através de laudo médico que ateste a espécie e o grau ou nível da deficiência, fazendo referência à Classificação Internacional de Doença (CID-10). Também é preciso dizer a provável causa da deficiência. O documento deve ter sido emitido no máximo em 12 meses, antes da matrícula e constar o nome completo e número de registro médico do profissional que o emitiu.

“Eu sonho com um mundo em que não sejam mais necessárias as cotas, porque nós já garantimos igualdade de acesso para todos. Enquanto isso temos que fazer as duas estratégias como complemento, avançar muito mais em qualificação da educação básica para todos e estabelecer cotas temporárias até que a gente possa avançar na primeira tarefa”, finaliza Cláudia Costin, que também é membro do comitê técnico do “Todos pela Educação”.

Reportagem faz parte do especial "Para que servem as cotas?", produzido pelo LeiaJá. O trabalho jornalístico explica a importância das cotas para a equidade e democratização dos espaços de educação brasileiros. Confira as demais reportagens:

1 - Cotas: sanção da lei marca o ensino superior

2 - A perspectiva social que explica a criação das cotas

3 - Cotas raciais valorizam diversidade no ensino superior

4 - Saiba como funciona as Comissões de Verificação de Cotas

6 - Cotas rurais garantem ensino ao povo do campo

7 - A aldeia no campus: cotas e reparação histórica aos índios

8 - Cotas para trans esbarram em preconceito no ensino básico

9 - ProUni: inclusão social no ensino superior particular

10 - O que é mito e o que é verdade sobre a Lei de Cotas?

11 - Como seria um mundo sem cotas? 

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