Professores empreendedores e os desafios da pandemia

Reportagem revela as experiências de donos de cursos preparatórios em meio ao caos do novo coronavírus

por Lara Tôrres qui, 15/10/2020 - 08:47
Júlio Gomes/LeiaJáImagens/Arquivo Registro do professor Fernando Beltrão em 2019, durante aula no Recife Júlio Gomes/LeiaJáImagens/Arquivo

A pandemia de Covid-19 causou mudanças nos mais diversos setores da sociedade ao trazer a necessidade de distanciamento e isolamento social. Mesmo com o início do retorno às salas de aula em algumas partes do País, a educação segue sendo uma das áreas fortemente atingidas pela necessidade de fechar o espaço físico de escolas, universidades e cursos durante muitos meses, causando claras transformações na rotina de trabalho dos professores e na relação com os alunos. 

Com as provas do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) cada vez mais próximas, as atenções se voltam para estudantes e professores de ensino médio, bem como para cursos preparatórios. Há grande preocupação com as mudanças forçadas pela doença para quem busca uma vaga no nível superior de ensino em 2021. 

Nesta quinta-feira, 15 de outubro de 2020, o Dia do Professor é celebrado diante de uma pandemia. Para exaltar a figura dos educadores, a série “Lições” traz, agora, reportagem sobre o trabalho de professores empreendedores que têm seus próprios cursos preparatórios e como tem sido desempenhar esse papel em um ano tão atípico, assustador e repleto de incertezas, tanto para quem estuda, quanto para quem ensina.

“O novo normal é valorizar o professor mais do que nunca”

Wagner Rocha é professor de geografia com 18 anos de experiência e sócio do curso preparatório para o Enem e vestibulares 'Oficina de Estudos', no Recife, há oito anos. Ele conta que dificuldades enfrentadas na infância o ajudaram a desenvolver uma “veia empreendedora” e a paixão pela educação aliou tal característica com o desejo de ensinar, surgindo assim a vontade de criar um curso diferente do que é tido como convencional nas escolas. 

“Sempre acreditei que o relacionamento professor-aluno poderia ser mais horizontal e não vertical, aquela coisa do professor no céu e o aluno lá embaixo. Olhando esses princípios, comecei a criar dogmas e assim surgiu a oficina. Um curso disruptivo, que nasceu da votação dos alunos para o nome do curso, que eu vejo que tem uma grande batida colaborativa. A gente sempre diz que os alunos não são concorrentes, mas amigos de sala. Eu queria um curso com um DNA mais humano e foi aí que deu esse ‘start’ para ser empreendedor e ter meu próprio negócio”, conta o professor. 

Mais do que um simples desejo ou um sonho pessoal, Wagner explica que ter um curso próprio, para ele, sempre foi um propósito de vida para apoiar e ajudar pessoas a ter uma vida melhor por meio da educação. “Eu sempre pedi a papai do céu que me abençoasse um dia para ter um curso. Não sabia como, mas eu queria ter. Vim de um bairro carente que tinha vários amigos e colegas com muito potencial de vencer na vida, querer estudar. Infelizmente, a educação no Brasil não é democrática e a forma que eu tinha de ajudar era ter meu próprio negócio. Então eu acredito que sempre quando eu quis ter um curso, não foi vaidade ou somente realização pessoal; eu acho que era mais do que um sonho, era um propósito”, afirma. 

O professor Wagner explica que há diferenças importantes na rotina e métodos de trabalho quando comparadas às situações de ser professor contratado ou concursado para ensinar em escolas e ter um curso próprio. “Quando eu era professor de colégio, ensinava em seis escolas. Muitas vezes saía correndo e não tinha tanta disponibilidade para o aluno. Bem que eu queria, mas professor e jovem a gente sabe que trabalha muito, tem que ralar. A gente sabe que o rendimento não é dos melhores. Cursinho, quando você é dono, você mora. A casa é sua, e quando a casa é sua, a gente é família. Vai tendo os erros e acertos, tentando dar soluções. A gente participa mais ativamente da vida do aluno, a gente conhece o que o aluno cresceu, onde pode chegar. Muitas vezes conhece a realidade do aluno. A gente sorri junto, chora junto. Tem uma grande simbiose de histórias, vários exemplos que deram certo e acabam inspirando o aluno”, descreve o educador.

Além da proximidade, maior tempo e intimidade com os estudantes, Wagner aponta para um aumento de responsabilidades e funções a exercer quando um professor também é empreendedor. “Não envolve apenas chegar, dar aula, tirar dúvida e ir embora. Você passa a estar dentro, vivendo, convivendo, escutando mais e tentando, na medida do possível, orientar da melhor forma", comenta.

A Covid-19 trouxe mudanças radicais e que precisavam ser feitas rapidamente. Nesse contexto, a adaptação ao ensino 100% remoto, segundo o professor Wagner Rocha, não foi uma tarefa fácil. “A gente teve que arrumar estratégias, aprender a mexer com apps ou sites que a gente nunca tinha visto. A gente encarou porque nosso desafio era encurtar a distância, a questão que antes era presencial e agora é remota, mas sem nunca perder o afeto, sem nunca deixar de ter o entusiasmo. E o principal, nunca deixar de estender a mão. O lema da gente era ‘precisamos acolher, precisamos abraçar os alunos’. Passei a chamar, inclusive, a casa de cada um de ‘casulos’. Cada um ficou enclausurado e eu sempre falava que o casulo também é uma escola. Foi desafiador, mas ao mesmo tempo, quando recebe feedback, percebe o quanto é gratificante ouvir alunos dizendo o quanto suas palavras abençoaram, ou que mesmo distante se sente acolhido, abraçado. Isso para o professor não tem preço”, explica ele. 

Ao ser questionado sobre o futuro da educação depois da crise global causada pelo novo coronavírus (SARS-CoV-2), o professor afirma que enxerga um cenário de fortalecimento do ensino com maior valorização da figura do professor. “Parabéns aos professores que foram desafiados e conseguiram vencer o desafio muitas vezes da maneira mais ‘raiz’ possível, muitas vezes dando aula em casa com ‘menino’ pequeno, vizinho gritando, gente escutando brega, confusão em casa, muitas vezes pai gritando com aluno em casa e a gente no ao vivo escutando tudo. Preparando aula, teve muita gente que nunca gravou nada e teve que editar pela primeira vez. É muita gente boa que a gente tem no nosso país, muitos professores que a gente tem que tirar o chapéu, então eu acredito que no pós-pandemia, o novo normal é valorizar o professor mais do que nunca e colocar o professor no lugar que ele merece, de valorização”, argumenta Wagner.

“Sempre ganho ‘filho’ do coração”

Nilson Lourenço tem 58 anos de idade, dos quais 38 são dedicados ao ensino da física. A carreira começou com aulas para alunos de ensino médio em colégios, mas seguiu para o empreendedorismo com a abertura, 24 anos atrás, de um curso próprio que hoje leva o nome e sobrenome do professor. Atualmente, mais de mil alunos estudam no preparatório, situado no Recife. 

A vontade de ter um curso para chamar de seu, segundo Nilson, foi motivada pelo desejo de conduzir as aulas e outras dinâmicas do curso à sua maneira. “Na escola e em outro curso, você tem que seguir aquela diretriz. No seu curso você faz da sua maneira, do seu jeito, da maneira do seu sonho. No meu curso, toda aula tem chocolate para quebrar o clima”, conta o professor, que cita uma “total transformação” em seu dia a dia de trabalho a partir da abertura do curso. 

“Na escola, você entra e dá aula. No curso, não. Eu chego duas horas antes e saio três horas depois das aulas justamente para fazer diferente. Nas escolas, praticamente nenhum professor faz isso, chegar antes para tirar dúvidas e sair depois. Por isso, as matérias isoladas fazem tanto sucesso. Dá prazer em você ver o aluno aprender. Hoje eu tenho, só na área de medicina, mais de 6.400 alunos que são médicos ou estão na universidade. E isso não tem preço”, afirma Nilson. 

A adaptação ao cenário de pandemia, segundo o professor, foi menos difícil diante do fato de que seu curso já tinha algumas atividades remotas, como plantões para tirar dúvidas on-line. No entanto, a necessidade de passar a funcionar exclusivamente a distância trouxe outras questões, como a saudade dos alunos e a preocupação ainda maior com o elo entre estudante e professor. 

“A pior parte é a falta o olho no olho, do abraço. Entrar no curso e não encontrar os alunos é muito triste, não tem vida. Eu fiz entrega de apostilas em drive thru, alguns alunos choraram. Às vezes, a gente trabalha não só a parte pedagógica, de conhecimento. Você trabalha também a parte emocional. Minha relação com meus alunos sempre foi muito próxima, todos os anos sempre ganho ‘filho’ do coração. Me comunico com eles nos grupos de WhatsApp, no privado, falo com os pais, faço reunião de pais on-line e mantenho toda semana em todas as turmas um horário específico para aulas ao vivo. Somente a aula gravada não gera vínculo, é monótono e desmotivador tanto da parte do professor como do aluno”, conta o educador. 

Dificuldades à parte, a digitalização forçada pela pandemia também acabou funcionando como um acelerador para o processo de dar aulas virtualmente, o que ocasionou uma expansão no alcance do curso para outras regiões além do Recife. O crescimento foi significativo, de modo que Nilson já afirma que os conhecimentos sobre tecnologias aplicadas à educação e o ensino on-line permanecerão mesmo após a retomada presencial. “A partir de agora, o curso terá que ser sempre no formato híbrido: on-line e presencial. Essa mudança será nossa nova realidade”, diz o professor. 

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“As mudanças já aconteceram, vão apenas perpetuar-se”

Fernando Beltrão, mais conhecido como Fernandinho, tem 57 anos de idade e 30 de sala de aula, ensinando biologia para os níveis fundamental e médio em seu curso “Academia de Estudos”. Ele ainda é docente de anatomia no curso de medicina da Universidade de Pernambuco (UPE).

O professor conta que sua formação em medicina e a necessidade de trabalhar durante o período de graduação o fizeram começar a ensinar na década de 1980, quando os cursos pré-vestibulares no Recife estavam em grande expansão. “Dividi-me entre professor e médico nos primeiros três ou quatro anos de formado, mas o sucesso como professor veio até rapidamente com a chegada do vestibular da Universidade Federal de Pernambuco em duas etapas. Em 1987, criou uma prova de biologia muito pesada e o fato de ser médico me ajudava a ter uma visão consistente e eu criei um curso de segunda fase. Me tornei um professor conhecido, não melhor que os outros, mas conhecido. Esse curso ganhou força, em pouco tempo eu tinha mil alunos”, conta Fernandinho. 

A adaptação dos professores do curso foi facilitada pelo hábito de fazer aulas transmitidas ao vivo ainda antes da chegada da Covid-19. No entanto, o processo de tornar um curso completamente digitalizado para atender à necessidade imposta pelo momento trouxe outras questões que vão além de estar acostumado a ensinar em lives. 

“Tenho professora, por exemplo, que está em casa com o filho pequeno, pode fazer aula virtual em todo horário? Não. Mas tem que fazer ao vivo. Não pode fazer sem ser ao vivo, tudo da gente é ao vivo. É um problema, faz parte. A família em casa que não dá apoio ao menino, acha que a aula ele pode pausar quando quiser é outro evento. (...) Tem um monte de dificuldades naturais. A dificuldade de alguns professores de lidar com a tecnologia, dificuldade de algumas pessoas de lidar com a solidão”, revela.

A própria Covid-19 e o medo que ela causa também são fatores de dificuldade no momento de pandemia, assim como a letalidade da doença e sua capacidade de transmissão, que afetam professores e suas famílias. O professor Fernandinho citou, durante entrevista ao LeiaJá, adversidades que a doença impôs tanto em termos de saúde física como emocional a professores de seu curso. 

Além das dificuldades humanas, houve a necessidade de lidar com questões técnicas, como a escolha de uma plataforma de ensino que atendesse a todas as necessidades dos alunos e professores da forma mais ampla possível. A interatividade, por exemplo, era um ponto importante para manter a proximidade com os estudantes durante todo este período de pandemia. 

“Encontrar uma plataforma deu trabalho. Que pudesse permitir muita proximidade. O estudante que quiser pode botar a carinha dele, o professor falando, debate real. Que o professor possa ter um convidado, dois, três, quatro, sejam alunos ou outros professores. Aulas compartilhadas com outros professores. Era uma dificuldade conseguir uma plataforma que fizesse isso, permitir um chat, mas ao mesmo tempo silenciar quem quiser falar isoladamente, banir quem quiser falar isoladamente, atrapalhar. Ou permitir que o aluno simplesmente assista, que o pai fiscalize. Tudo isso era plataforma, essa parte a gente não tinha, teve que pesquisar”, diz o professor. 

A preocupação com a saúde emocional dos estudantes se reflete em ferramentas que foram incluídas na plataforma on-line com o objetivo de permitir um contato mais próximo com os estudantes, apesar da distância física. “Desde março, a gente criou um tira dúvidas on-line para o aluno perguntar e o professor responder 24 horas depois. Percebemos que, no meio das dúvidas, na entrelinha, havia algumas inseguranças. Uma semana depois a gente criou outro botão chamado chegue mais perto, onde o aluno escolhia para qual professor ia mandar, e já não era mais uma dúvida, era um sentimento, uma questão, uma conversa. Passaram a acionar professores diretamente para conversas pessoais”, relata Fernandinho. 

No que diz respeito ao curso no futuro, pós-pandemia, o professor aposta no modelo híbrido e avalia que as mudanças nos cursos e escolas já estão em curso e serão consolidadas. “Eu acho que as mudanças já aconteceram, vão apenas perpetuar-se. Eu acho que a tendência é a escola híbrida, porque uma parcela bem grande de pessoas conseguiu se adaptar muito bem e vai se sentir órfãs disso se tivermos de dizer ‘agora tudo é presencial’. Acho que as aulas encurtam, as aulas perdem a importância, a internet ganha muito, YouTube ganha muito, Google ganha muito, a interatividade eletrônica ganha muito, os grupos de estudos ganham muito e a sala de aula em si vai diminuir um pouquinho a ação dela”, opina Fernando Beltrão.

Reportagem integra o especial "Lições", produzido pelo LeiaJá. O trabalho traz histórias sobre os aprendizados dos professores em meio aos desafios impostos pela pandemia de Covid-19. Veja, a seguir, as demais reportagens:

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