Cancelamentos e esvaziamento: retrato da Cultura do Recife

Com participação cada vez menor no orçamento da Prefeitura do Recife, gestão cultural da cidade acumula problemas e ignora Plano Municipal de Cultura

por Carlos Silvio seg, 17/11/2014 - 10:57
Fernando da hora/LeiaJáImagens/Arquivo Teatro do Parque, fechado desde 2010, é um dos retratos da gestão da Cultura no Recife Fernando da hora/LeiaJáImagens/Arquivo

O cancelamento de dois eventos tradicionais na cidade, o Festival Recife de Teatro Nacional (que passa a ser bienal) em 2014 e o SPA das Artes, acendeu o sinal vermelho para a classe artística recifense, que já tinha ressalvas com a gestão cultural do município nos últimos anos. A Secretaria de Cultura do Recife, atualmente gerida pela atriz Leda Alves, vem tendo um orçamento cada vez menor em relação ao orçamento total da prefeitura ano após ano , chegando a representar apenas 1,71% em 2013.

Nada de Festival Recife do Teatro Nacional em 2014

Problemas no patrimônio histórico e na administração dos equipamentos culturais da cidade são notórios. O exemplo mais forte disto é a situação do Teatro do Parque, fechado desde 2010. O Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães (MAMAM) e o Pátio de São Pedro (que abriga do Centro de Design do Recife e do Memorial Shico Science) também são espaços que sofrem uma espécie de paralisia, perdendo a força nos últimos anos. O Sistema de Incentivo à Cultura Municipal (SIC), também foi cancelado e não está sendo realizado. Outro exemplo crônico é a não implantação da Rádio Frei Caneca, anunciada várias vezes, mas nunca concretizada.

Prefeitura anula edital do SIC 2011

A Rádio Frei Caneca segundo o olhar de Liberato Costa Jr., seu criador

Tanto o Festival Recife do Teatro Nacional (FRTN) quanto o SPA estavam detalhados na Lei Orçamentário Anual (LOA) de 2014, mas não foram realizados. E um documento imprescindível vem sendo ignorado: O Plano Municipal de Cultura. Aprovado pela Câmara dos Vereadores em 2009, o documento tem força de lei e traz diversas diretrizes que devem ser seguidas pela gestão pública no que se refere à cultura, até o ano de 2019. Entre as diretrizes, está investir ao menos 3% do orçamento municipal em cultura.

Carta de protesto

Um grupo de produtores e artistas se articularam para criar uma carta aberta em que levantam problemas como os citados e pedem à gestão municipal mais investimento na produção cultural da cidade. Chamado de Cultura - Carta ao Povo do Recife pela Retomada e Fortalecimento das Políticas Públicas da Cultura na Cidade do Recife, o documento pede, entre outras coisas, audiência pública sobre o orçamento para a pasta de cultura do próximo ano e também a ação do Ministério Público contra a Prefeitura, pelo descumprimento da lei 17.576/09 (Plano Municipal de Cultura) e da Lei 16.215/96 (SIC).

"Nossa intenção é sensibilizar a população e o poder público sobre a diminuição de verba na área. Além disso, mobilizar o setor para brigar pela revalorização do setor cultural. O cenário atual do Recife deixa os produtores culturais sem oferta de mecanismo de fomento. A situação é grave e o orçamento para cultura não pode continuar sofrendo como está”, afirma Jarmerson de Lima, produtor do Festival Coquetel Molotov e um dos criadores da carta.

"O foco desta gestão claramente tem sido em turismo. Cabe à classe artística cobrar uma maior valorização. As pessoas têm que entender que fomentar não é sustentar artista com dinheiro público. O fomento tem um papel, o de fazer com que a cultura se mantenha, isso através de editais, museus recebendo exposições e eventos acontecendo", comenta o produtor Carlota Pereira. "A política que vem sendo praticada no Recife não vê a arte como economia criativa, nem segmento econômico que gere dinheiro e visibilidade. Mesmo o Brasil vendo no Recife a 'capital da cultura', estamos longe disso", completa.

Sem Aplausos

Em outubro de 2014, a prefeitura realizou a 19ª edição do Festival Internacional de Dança (FIDR). Já o Festival Recife de Teatro Nacional (FRTN), que deveria acontecer pela 17ª vez em novembro, não será realizado, uma atitude que indignou a classe artística. Além disso, a Secretaria de Cultura informou que os dois evento serão transformados em bienais. Sendo assim, no próximo ano acontece o FRTN, mas apenas em 2016 o FIDR volta a ser realizado.

Em repúdio à decisão da prefeitura, o Sindicato dos Artistas e Técnicos em Espetáculos de Diversões no Estado de Pernambuco (SATED-PE), a Associação de Produtores de Artes Cênicas de Pernambuco (APACEPE), a Associação dos Realizadores de Teatro de Pernambuco (ARTEPE) e a Federação de Teatro de Pernambuco (FETEAPE), divulgaram nota afirmando que a decisão da Prefeitura do Recife é "arbitrária e unilateral”. Afirmando também que não realizar os eventos “fere os princípios de uma gestão democrática e participativa que deveriam nortear a atual administração municipal, merecendo a reprovação de toda a sociedade recifense”.

"Quando a prefeitura mexe em eventos como o Festival Recife de Teatro Nacional, afirma que não tem interesse no que o evento representa e que cultura não é importante. A administração de uma cidade não é feita de pragmatismo, vai além disso", opina Pedro Vilela, do Magiluth, grupo recifense de teatro que já possui uma década e reconhecimento nacional.

Segundo a Prefeitura do Recife, o cancelamento do festival de teatro se deve a 'dificuldades operacionais'. As mudanças foram pensadas com o 'intuito de possibilitar um planejamento adequado a estas iniciativas, uma vez que a gestão reconhece o importante papel que estas ações cumprem na formação dos realizadores das artes cênicas', afirmou o poder municipal em nota enviada à imprensa. A última edição do evento custou cerca de R$ 700 mil e trouxe nomes como o Grupo Galpão (RS).

“Vivemos quase que numa eterna crise. Os grupos daqui trabalham com bases artísticas, não visam o lucro de maneira tão direta. As dificuldades são cotidianas e, quando não encontramos esses instrumentos amparadores, é difícil para todos”, comenta Pedro.

No dia 10 de novembro, a classe teatral chegou a se reunir com a Leda Alves para debater a decisão da prefeitura. No encontro, a secretária pediu desculpas pela não comunicação prévia do cancelamento. Além disso, Leda Alves afirmou que está aberta ao diálogo com a classe, mas que os eventos continuam sendo bienais.

Segundo George Meirelles, ator e produtor cultural, há uma crise nas artes cênicas do Recife e uma necessidade de revitalização dos teatros da cidade. “Não existe uma manutenção eficiente de equipamentos culturais, como teatros ou bibliotecas. O Barreto Júnior por exemplo está sucateado. E ainda por cima há cortes absurdos no orçamento para cultura", desabafa.

E as artes plásticas?

A Semana de Artes Visuais do Recife (Spa das Artes) era o principal evento do calendário de artes visuais da cidade, e ajudou a dar visibilidade a trabalhos de artistas conhecidos, como Derlon e Rodrigo Braga e também já teve a participação de nomes como Moacir dos Anjos (pernambucano que já realizou a curadoria da Bienal de São Paulo, evento de artes visuais mais importante do Brasil). Depois de ser cancelado em 2012, o SPA voltou a acontecer no ano posterior, mas foi oficialmente cancelado em 2014.

A notícia do fim do SPA foi recebida com surpresa por Izidorio Cavalcanti. "Na minha visão, esses cancelamentos e o não cumprimento do Plano Municipal de Cultura (PMC) são uma falta de respeito com quem faz cultura". Artista há mais de duas décadas e tendo participado da criação do PMC, Izidorio se diz confuso com os rumos que a prefeitura escolheu dar à gestão cultural na cidade. "O atual prefeito descumpriu um projeto que a classe artística tinha como um dos melhores da cidade. Além disso, sem o SPA o Recife deixa de ser uma referência", argumenta.

Segundo a prefeitura, o evento agora dará lugar a ampliação do Edital de Artes Visuais da Prefeitura, cujas ações acontecem desde o início do ano. O orçamento do edital irá crescer R$ 310 mil em relação a 2013. "Existia a queixa de que o SPA era um evento temporário e passageiro, não ficando muita coisa para a cidade. Foi lançado no ano passado a proposta para o crescimento do edital. Ao termos um resultado positivo, a coordenação do setor decidiu ampliá-lo”, afirma Bárbara Collier, chefe do setor de Artes Visuais e Design da Prefeitura.

Segundo Bárbara, a classe artística foi ouvida, mesmo que em muitas reuniões não houvesse quórum. O edital deve ser lançado ainda em novembro, com 50 projetos contemplados, alguns começando antes do Carnaval de 2015. Entre as ativididades estão oficinas, residências artísticas, bolsas de incentivo à produção e também exposições coletivas. Um dos destaques é o Projeto Amplificadores, no qual curadores apresentam propostas de exposições já prontas para serem realizadas.

Para a curadora Cristiana Tejo, que também participou da criação do Plano Municipal de Cultura e foi diretora do MAMAM, a ampliação do edital é um alívio, mas o SPA fará falta. "Eu não fiquei surpresa com o fim do SPA. No final do governo João da Costa, já estava muito claro o descredenciamento e o não-investimento que a Prefeitura do Recife fazia nas artes plásticas", afirma. Segundo Cristiana, artistas e nomes ligados às artes visuais criaram em dezembro de 2012 um documento para negociar investimentos mais inteligentes no setor do Recife com a prefeitura, porém, nunca chegaram a ser recebidos na atual gestão para discutir o tema.

“Não houve uma sensibilização por parte do prefeito e da secretária. É lamentável que Recife, cidade tão importante no cenário nacional e com artistas de qualidade, não tenha uma política cultural consciente”, lamenta Cristiana. "Minha crítica é com relação ao desbaratamento. Há o edital, mas não há um olhar sobre instituições culturais. O MAMAM, museu que foi importante e presente por gerações, se encontra em um estado lamentável. Não há um projeto consistente para área de uma maneira geral", afirma a curadora.

Cristiana também lança luz sobre outros pontos que julga importantes na cadeia de artes visuais do Estado, como o colecionismo. "Artistas pernambucanos de expressão internacional já estão sendo colecionados no exterior. Com o enfrequecimento de museus, pode-se chegar ao ponto de termos que visitar um museu no exterior para ter acesso a algum artista pernambucano', continua. 

Patrimônio

A capital pernambucana é cheia de história e espaços culturais são partes importantes dela. Uma exposição que chamou atenção no MAMAM, a peça que emocionou no Teatro do Parque ou uma apresentação musical que se tornou inesquecível em pleno Carnaval, no Pátio de São Pedro. Equipamentos que guardam memórias afetivas e, ajudam a contar e promover a história do Estado. 

O Teatro do Parque, jóia quase centenária no Centro do Recife, está fechado desde 2010 e passará seu centenário (em 2015), na mesma situação, como publicado em primeira mão pelo LeiaJá. A Prefeitura afirma que a reforma está prevista para começar em novembro deste ano e deve durar 24 meses. A Concrepoxi Engenharia LTDA venceu o edital, com proposta no valor de cerca de R$ 8,2 milhões que envolve a realização de obras e aquisição de novos equipamentos.

Na festa de 99 anos, Teatro do Parque segue fechado

Entre os itens da licitação estão a recuperação e restauro do edifício, a implantação de novo projeto paisagístico, a substituição de coberta, restauração de adornos, bens móveis e pinturas decorativas, novo tratamento acústico, novo sistema de áudio e vídeo para o cinema, aquisição de vestimenta cênica e recuperação do sistema de climatização. Há ainda dois processos licitatórios que serão abertos para a aquisição dos equipamentos de iluminação ambiente e cênica, e outro para a instalação de um circuito interno de TV, reforçando a segurança do equipamento.

"No Recife não pode haver apenas turismo de praia e de shopping. Precisamos diversificar e deixar os espaços culturais funcionando em pleno vapor. Não apenas no que diz respeito à arte contemporânea, mas como um todo", opina Cristiana Tejo. George Meirelles também evoca um passado em que a cidade era referência no que diz respeito à cultura. "No ano de 2012 fomos a segunda cidade que mais investiu em cultura no Brasil, percentualmente falando. Nosso Plano Municipal de Cultura serviu de exemplo para a criação do plano nacional. Nós, artistas, não vamos tolerar esse descaso”, finaliza.

Sem resposta

Até o momento da publicação desta reportagem, a Prefeitura do Recife não havia respondido a nenhum dos questionamentos enviados na última quarta-feira (12). Questões como 'Qual foi a razão do cancelamento do Festival de Teatro Nacional e do Spa das Artes este ano, visto que os mesmos estavam presentes na Lei Orçamentária Anual de 2014?'; 'Há alguma previsão para a prefeitura voltar a cumprir o SIC (Sistema de Incentivo à Cultura)?'; os motivos do não cumprimento do Plano Municipal de Cultura; a data de lançamento do edital de artes visuais; e a previsão orçamentária para a pasta de Cultura para 2015; seguem sem posicionamento do poder municipal.

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