Maus-tratos e abusos eram práticas comuns no orfanato

Em Pernambuco, os filhos dos internos eram encaminhados para o Instituto Guararapes, na Várzea. O tratamento causou sequelas e ainda provoca arrepios nos que passaram por lá

por Eduarda Esteves sex, 31/05/2019 - 19:32

Zilda Pereira da Silva, 69, não se lembra do começo de sua vida. A primeira recordação é ao acordar no Instituto Guararapes, que ficava localizado no bairro da Várzea, Zona Oeste do Recife. O preventório é para onde as crianças afastadas dos pais eram encaminhadas pelo Estado. Atualmente a sede do instituto está sob responsabilidade da Igreja Católica e o orfanato não funciona mais.

Ela chegou por lá ainda bebê e diz que no início a rotina era normal. Eles podiam brincar, tinham aulas e conviviam bem. Mas, bastava uma criança fazer algo fora da curva que ela já era espancada e castigada de forma severa. Nas palavras de Zilda é possível perceber que ela ainda não sabe a gravidade do que passou naquele local, quando estava sob responsabilidade do governo. Afirma não ser sido humilhada, mas conta que era torturada pelas mulheres que trabalhavam no local.

“Elas batiam nas nossa cabeça, esmurravam, e nos colocavam no milho para rezar”, detalhou. Um episódio que aconteceu no Instituto Guararapes causa problemas até hoje para Zilda, décadas depois. Ela estava no balanço brincando com os colegas e um garoto atirou em sua direção uma lata de doce, daquelas de ferro. “Ela pegou em cheio no meu dos meus peitos. Sangrou muito e inflamou, eu me lembro. Como ninguém tratou até hoje sou prejudicada, já fiz cirurgia e tomo muitas medicações porque dói muito, minha filha”.

Entrada do antigo Instituto Guarrapes, na Várzea. Foto: Júlio Gomes/LeiaJáImagens

A aposentada nunca conseguiu conhecer a sua mãe. Parece que a história se repete em círculos. Ela também foi uma filha afastada dos braços maternos e imagina até hoje como teria sido uma vida diferente caso tivesse o apoio de uma mãe. Quando ficou mais velha descobriu como a mãe morreu e o trauma só aumentou.

“Foi assim minha filha, ela vivia aqui dentro da Mirueira internada. Aqui eles casavam e tinham filhos porque só podiam conviver entre eles. Ela não sabia que estava grávida e mandaram ela pra uma hospital daqui de Paulista. Ela chegou lá e eles viram que ela ia ter o bebê. Mas olharam o prontuário dela e viram que era hanseniana. Não sei se ficaram com medo, mas não fizeram nada e ela continuou sangrando. Mandaram a minha mãe de volta para a Mirueira e ela, não sei ao certo, não conseguiu parir. O meu irmão nasceu deformado e morreu. Ela também morreu, muito jovem”, chora Zilda ao argumentar que a mãe não teve os cuidados necessários que um ser humanos precisa.

Zilda conseguiu sair do Instituto Guararapes só aos 18 anos e foi morar com uma familiar. Ela entrava escondido no hospital para conversar com o pai e teve tempo de conhecê-lo. Sua vida também girou em torno da região do bairro da Mirueira e é assim até hoje. Casou, teve filhos, uma delas também foi diagnosticada com hanseníase, mas se tratou e vive saudável. Ela nunca conseguiu criar os filhos devido as condições financeiras. “Meu sonho era tê-los criado, mas não deu. Pelo menos estão bem e com saúde”, disse aliviada, enquanto se despede e pergunta se a entrevista pode ajudá-la de alguma forma.

Zilda também participa de reuniões com outros filhos separados com o intuito de lutar por uma indenização pelos danos causados pela seu afastamento dos familiares. Ela exita em culpar o estado, o hospital ou a direção do Instituto Guararapes. Acredita que tudo acontece por um motivo e que deus só dá o fardo para quem pode aguentar. Mas, se questionada sobre as violências sofridas por toda uma vida, as memórias ressurgem e ela fala como se tudo tivesse acontecido ontem.

Casa onde funcionava a antiga maternidade do Hospital da Mirueira. Hoje o local foi reformado e é utilizado para fins administrativos. Foto: Rafael Bandeira/LeiaJáImagens

Ao entramos no hospital, atualmente com cerca de 11 hectares de terra, nos deparamos com um local que parece não ter fim. É imenso. Ladeiras, igrejas, muito mato e funcionários para todos os lados. No fim da rua principal fica o espaço destinado aos últimos moradores que também são pacientes. Ficaram por lá porque já são idosos e não têm mais familiares dispostos a cuidar da enfermidade. Do período da compulsoriedade ainda residem na área asilar 23 pacientes.

Já aposentada, Maria José de Souza, 70, chegou no auge de sua vida ao hospital. Não se lembra com clareza dos números, mas desconfia que tinha vinte anos. Ela estava grávida da terceira filha, as duas primeiras já não tinham convivência com ela e foram morar em São Paulo com a família do pai.

Diagnosticada com hanseníase, ela sabia que ao ter o neném não poderia ficar com a filha para criar, um sonho antigo. Mas também não imaginava que ela lhe fosse tirada exatamente no mesmo dia em que nasceu. Ela conta que pariu na maternidade da Mirueira e só conheceu a criança um mês depois, após conseguir uma licença e ir visitá-la na Várzea. E foi assim por anos. Visitas esporádicas e uma relação abalada.

Maria José recebe ligações às vezes das filhas, mas é nas novelas que se apega. Foto: Rafael Bandeira/LeiaJáImagens

Ela mora sozinha uma casa simples dentro do condomínio ‘Gil de Campos’, onde pacientes mais antigos residem. Recentemente pintou a casa toda de cor de rosa para ficar charmoso. Por muito tempo fez questão de cozinhar sua própria comida, mas pelas limitações físicas Maria José aguarda rotineiramente pela alimentação que já vem preparada da enfermaria. Recebe ligações às vezes das filhas, mas é nas novelas que se apega. “Gosto de assistir porque é a única coisa que me restou para fazer”, disse.

Durante a tarde, conversa com o vizinho na calçada e observa a antiga praça onde viveu momentos marcantes ao lado dos amigos também internos. Ela se locomove com uma cadeira de rodas improvisada feita de madeira e com rodinhas de poltronas de escritório. É da cama para a porta de casa e vice versa todos os dias. O tom de saudosismo e os olhos marejados aparecem quando ela relembra as décadas passadas.

“Aqui tinha festa para toda época do ano. A gente vivia isolado, mas tinha muitas pessoas, mais de 400. Era uma cidade, tinha festa de são joão, nessa época mesmo as bandeirinhas já estavam penduradas por aí. Tinha quadrilha, comida e muita música. A gente era feliz, apesar de tudo. Hoje em dia é assim. Um silêncio absoluto”, destacou Maria.

Única fotografia mais jovem que guardou. Nessa época ela já estava internada na Mirueira. Foto: Rafael Bandeira/LeiaJáImagens

Um pouco mais a frente da casa de Maria José, na praça que hoje se encontra mal cuidada, uma senhora tira um pano do bolso e enxuga a testa de tanto suor. Ela está vestida com uma roupa azul e chapéu para se proteger do sol forte, quando o relógio se aproxima das 15h. Caminha de um lado para o outro limpando o mato com uma vassoura de jardim metálica e ao ser chamado diversas vezes por uma das colegas, prefere não olhar e continua o serviço.

Após a insistência, Carmem Lúcia Cavalcanti, 54, decide parar por alguns segundos e topa conversar um pouco desde que não a atrase nos afazeres. Ela trabalha como ajudante de serviços gerais no Hospital da Mirueira há mais de trinta anos. Coleciona histórias do que já fez pelo local e diz que é feliz trabalhando na colônia, apesar do salário ser pouco e atrasar muito.

Prefere ser chamada de ‘Cainha’ porque não gosta do seu nome. Ela nasceu na Paraíba e ainda muito garota sua família descobriu que ela tinha hanseníase. Foi morar na ala dos doentes no Instituto Guararapes porque não podia ficar mais em casa para não passar a doença aos irmãos.

Cainha trabalha no hospital há mais de trinta anos. Foto: Rafael Bandeira/LeiaJáImagens

O pai descobriu a doença quando retornou no quartel e foi transferido para a Mirueira. “Ele não podia ficar com a gente porque o tratamento só era feito se ele estivesse internado. A mãe de Cainha tinha cinco filhos, dois deles também fizeram o procedimento médico e o resultado deu positivo para hanseníase. Clóvis e Cainha foram ainda jovens morar no preventório, na Várzea.

“Se eu tivesse um filho hoje com esse mesmo problema eu nunca internaria eles lá. Foi a pior fase da minha vida”, relembrou. Ela chegou com oito anos e saiu aos 19. O discurso é o mesmo de quase todos que passaram por ali. Sofrimento, tortura e muitos castigos.

Antigo pavilhão onde ficavam os dormitórios no Instituto Guararapes. Foto: Júlio Gomes/LeiaJáImagens

Os quartos das crianças com hanseníase era isolado dos outros para não correr o risco da disseminação da doença. Cainha também sempre sofreu de esquizofrenia e precisava tomar remédios controlados. Quase sempre fazia xixi na cama e como castigo, dormia no chão porque a cama estava molhada.

Quando recebia visitas da mãe, sempre chorava e pedia para voltar para casa. Anos afastada da família, Cainha garante que não houve um dia sequer que não sonhou com a volta para a casa. No ano em que o pai já estava melhor de saúde, comprou uma casa no bairro da Mirueira e trouxe a esposa e parte da família. “Foi quando a minha mãe veio buscar a gente, eu e meu irmão”.

Ao reencontrar a família dos vinte anos em diante, sentiu o que era um vínculo familiar pela primeira vez. Conseguiu ainda jovem um emprego no Hospital da Mirueira, onde ela e seu pai se tratavam.

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