A transfobia na política nacional e suas consequências

Quais os efeitos que falas transfóbicas feitas por políticos têm na realidade das pessoas?

por Rachel Andrade qua, 22/03/2023 - 16:34
João Velozo/LeiaJá Imagens Cami Wanderley é estudante de educação física e ex-atleta de basquete João Velozo/LeiaJá Imagens

Cami Wanderley, 26 anos, é estudante de educação física na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Desde os 8 anos de idade praticava diversos esportes, entre eles o basquete, que virou sua paixão, e grande incentivo para seguir como atleta em sua vida, inclusive no ensino superior. Quando entrou na graduação, licenciatura em educação física, acreditava que seria capaz de mudar a realidade de milhares de crianças e adolescentes, além da busca pela plenitude e satisfação em relação à sua própria existência.

Foto: João Velozo/LeiaJá Imagens

Antes de se entender enquanto pessoa não-binária, Cami sempre praticou basquete nos times femininos por onde passou, tendo até feito parte da equipe pernambucana. No entanto, desde 2020, quando começou a refletir mais a respeito de como se sente, passou a questionar até onde se via representando a equipe, sendo formada apenas por mulheres. “Eu me sentia desconfortável ao usar o vestiário, por exemplo, ou até como as pessoas nas arquibancadas me enxergavam”, conta.

As pessoas não-binárias se enquadram como pessoas trans, por não se identificarem com as definições de homem e mulher cisgêneros, termo utilizado para quando a pessoa se sente representada pelo gênero que lhe foi atribuído no nascimento. Essas pessoas acabam sofrendo todo o tipo de discriminação, como foi o caso de Cami, em alguns momentos de sua vida. Sua integridade física e emocional se fragilizam por ter de lidar com situações que deveriam ser simples, mas se tornam um problema, como ir ao banheiro em local público, por exemplo. “Já aconteceu de eu ter de mostrar meus documentos, com meu nome cívico feminino, para não ser expulso do banheiro”, ele relata.

Situações como essas, além de sua vivência nos esportes, se tornam mais difíceis de serem superadas quando os preconceitos enfrentados são corroborados por autoridades que deveriam combater tais discriminações. É como o caso do deputado Nikolas Ferreira (PL-MG) que, no último 8 de março, data que marca o Dia Internacional da Mulher, se pronunciou no plenário do Congresso Nacional sendo contrário a políticas de inclusão das pessoas trans, defendendo a ideia de que mulheres cis estariam perdendo espaços, como no mundo esportivo. 

Reflexo no dia-a-dia

Suas falas foram consideradas transfóbicas, como explica Agnes Lemos, cientista social e antropólogo, vinculado à Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). “As falas dos políticos fazem a política acontecer. São produtoras de políticas. Não são isoladas da sociedade. As falas transfóbicas vêm de uma sociedade historicamente violenta contra pessoas trans. A diferença de ouvir falas como essas dentro de um espaço institucional, um lugar onde se produzem leis, é a naturalização da violação de direitos de pessoas trans, sendo caracterizada como ‘transfobia institucional’. Mas isso não pode continuar. Pois é neste mesmo lugar que as políticas públicas e as leis são produzidas para promover direitos e não exclusão. É dever dos deputados pensar na população e fazer leis que melhorem suas condições de vida. E não o contrário.”.

Agnes realizou uma pesquisa durante sua graduação sobre os efeitos que falas e atitudes transfóbicas vindas de políticos e autoridades públicas têm na inclusão de atletas trans nos esportes. “Foi na Assembleia Legislativa de São Paulo (ALESP), durante o debate sobre atletas trans, que o deputado estadual Douglas García (PSL-SP) afirmou que se encontrasse uma trans no banheiro, a tiraria a tapas e chamaria a polícia. Se um político se sente confortável o suficiente para fazer uma afirmação como essa dentro da maior casa legislativa da América Latina, é sinal de que as leis não são pensadas para defender pessoas trans. São afirmações como a de Douglas que naturalizam violências diárias contra pessoas trans. Em 2022 e neste ano, tivemos diversas notícias de mulheres trans sendo violentadas e tiradas à força de banheiros femininos.”, explicou Lemos.

Transfobia

De acordo com o dossiê “Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2022”, coordenado por Bruna Benevides, secretária de articulação política da Associação Nacional de Travestis e Transexuais do Brasil (ANTRA), pelo menos 151 pessoas trans morreram no Brasil no ano passado. Desse total, 130 foram mortes por assassinato.

Desde 2019 a transfobia é considerada crime no Brasil. A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) considera que o ato se enquadra na lei 7.716/1989, a Lei do Racismo. Ferreira ainda se protege debaixo do artigo da Constituição que versa sobre a imunidade parlamentar. De acordo com o artigo 53, deputados não podem ser presos, sendo invioláveis, civil e penalmente. No entanto, o parágrafo 2° do mesmo artigo faz a ressalva que a prisão pode acontecer em caso de “flagrante de crime inafiançável”, como o racismo.

Reprodução/TVCâmara/Youtube

Segundo o cientista político Victor Barbosa, é preciso rever e compreender o que se entende por imunidade parlamentar, pois algumas atitudes são consideradas passíveis de recriminação. “Permitir que pessoas sejam irrestritamente livres para expressar o que bem entenderem, sob a proteção da liberdade de expressão ou imunidade parlamentar, abre a possibilidade de se institucionalizar o discurso de ódio. No nosso cenário político, onde o conservadorismo se encontra fortalecido, a perpetuação de falas desse tipo corrobora para o aumento dos índices de violência e discriminação de populações marginalizadas.”, explicou Barbosa ao LeiaJá.

Pedido de cassação

Após o acontecido no dia 8 de março, diversos partidos políticos enviaram pedidos de cassação do mandato de Nikolas Ferreira, alegando que ele foi “flagrantemente discriminatório e transfóbico”. O cientista político Victor Barbosa explica, de forma resumida, como acontece o processo de cassação de um mandato parlamentar:

1. Recebimento da denúncia: para que um parlamentar seja cassado, é necessário que alguém apresente uma denúncia formal contra ele, contendo indícios de infração ao decoro parlamentar. A denúncia pode ser apresentada por qualquer cidadão, partido político, colega de partido ou parlamentar, e é recebida pela Mesa Diretora da Casa Legislativa correspondente;

2. Constituição de uma comissão processante: após o recebimento da denúncia, a Mesa Diretora da Casa Legislativa em questão deve nomear uma comissão processante, formada por três membros, para analisar o caso. Essa comissão deve ser composta por um presidente, um relator e um membro;

3. Investigação e defesa: a comissão processante deve investigar as acusações contra o parlamentar denunciado, ouvindo testemunhas e recolhendo provas. Em simultâneo, o acusado tem o direito de apresentar sua defesa por escrito e de indicar testemunhas de defesa;

4. Parecer da comissão processante: após a investigação e a defesa, a comissão processante deve elaborar um parecer, opinando pela cassação do mandato parlamentar ou pelo arquivamento da denúncia. Esse parecer é submetido à votação no plenário da Casa Legislativa; e

5. Votação no plenário: o parecer da comissão processante é submetido à votação no plenário da Casa Legislativa correspondente. Para que o mandato parlamentar seja cassado, é necessário que a cassação seja aprovada por dois terços dos parlamentares presentes na sessão.

Mudanças na sociedade

Mesmo diante das diversidades que vive, Cami sabe que muito já foi conquistado, mas vê que ainda há um longo caminho a ser trilhado. Assim como a pesquisa de Agnes aponta, Wanderley observa que “as pessoas que estão tomando as decisões importantes na sociedade não olham para toda a sociedade, e acabam excluindo diversos grupos”, e isso se aplica nos esportes também.

Foto: João Velozo/LeiaJá Imagens

“Quando articulações políticas e coletivas passarem a efetuar políticas públicas conjuntas, respeitando a máxima de "nada por nós, sem nós", a partir desse momento as mudanças que esperamos podem vir a acontecer”, finaliza Agnes Lemos.

COMENTÁRIOS dos leitores