Tribunal da internet provoca graves danos psicossociais

Cultura do cancelamento deixa marcas. Depressão, transtorno de ansiedade e até surtos suicidas podem ser desencadeados nas pessoas que são alvos de comentários negativos na web.

qua, 10/03/2021 - 10:06

Alguém percebe que uma pessoa ou empresa teve uma atitude considerada errada. Registra o ato e divulga nas redes sociais. O registro é compartilhado e visto por milhares de pessoas, que iniciam uma série de críticas e cobranças de punição para quem cometeu o erro.

É assim que, resumidamente, ocorre o cancelamento de pessoas e/ou marcas na internet. Esse comportamento conhecido na internet, cujos casos mais notórios são de famosos, como a escritora J.K Rowling, a blogueira Gabriela Pugliesi e a rapper Karol Conká, também pode ocorrer com pessoas anônimas e gerar efeitos psicológicos em quem é cancelado.

Para o psicólogo Reno Mendes, as pessoas encontraram no cancelamento pelas redes sociais uma maneira de protestar contra posturas que consideram inadequadas. “Porém, acabam não refletindo que é um comportamento punitivo. Quase como uma exclusão ou até mesmo uma morte da imagem de uma pessoa”, adverte Reno.

O psicólogo explica que o cancelamento sempre deixa uma marca na vida de quem o sofre. "Dependendo do histórico pessoal, pode desencadear até mesmo um suicídio ou uma tentativa”, afirmou. Reno Mendes pontua que o cancelamento também pode provocar transtornos de ansiedade ou depressão na pessoa cancelada.

Mas o cancelamento não afeta psicologicamente apenas quem o sofre, segundo Reno. “Um efeito em quem pratica o cancelamento é o fortalecimento de pensamentos rígidos e o crescimento da intransigência. Uma possível cobrança excessiva de si e do outro. Além de uma tensão por não conseguir sair daquela forma rígida de pensar”, explicou.

Para o profissional, é importante que a pessoa reflita sobre as atitudes que levaram ao cancelamento. “A partir disso, separar quais atitudes são de responsabilidade e administração dela e quais não são. Fazer um filtro”, declarou. O psicólogo também cita a necessidade de buscar ajuda para lidar com a situação e estar próximo de pessoas que não tenham o mesmo comportamento condenatório do cancelamento.

Como um profissional da psicologia, Reno Mendes enxerga a cultura do cancelamento nas redes sociais, da forma que ocorre, como algo nocivo e desumanizador. “Não vou promover reflexão em alguém punindo, ou até mesmo destruindo a imagem de alguém. Punição pode gerar autodestruição. E autodestruição é a perda processual ou iminente da vida”, finalizou.

Experiência traumática

No mês de maio de 2020, A., que não quis ser identificada, foi cancelada nas redes sócias após postar uma foto fora de casa durante o lockdown em Belém. Ela conta que a princípio imaginava ser apenas uma simples intriga. Porém, somente quando os amigos próximos avisaram é que pode entender as reais proporções.

“Eu tenho um histórico de problemas pessoais e nesse dia eu me senti muito mal. Chorei muito, lembro de acordar de madrugada gritando e o meu namorado ter que me acalmar porque eu gritava. Eu fiquei completamente traumatizada mesmo”, afirmou.

Ela diz ter chegado a tomar metade de uma cartela de remédios para dormir, porque não conseguia descansar e teve distúrbio alimentar. “Foi quando um dia eu me tranquei no banheiro e decidi que ia tirar a minha vida. Porque eu vi tantas pessoas duvidando de quem eu era. Falando que eu era mentirosa, que eu simplesmente desisti, eu falei que não ia mais aguentar viver aquilo”, relatou.

Hoje em dia, A. revela que faz tratamento para ansiedade por ter sido diagnosticada com estresse pós-traumático. Além disso, ela contou que faz terapia e que ainda tenta "sarar" as cicatrizes do passado.

“Quando eu vejo acontecendo um cancelamento com outra pessoa me dói como se fosse comigo, porque eu me lembro do quanto doeu e do quanto eu me senti sozinha e desamparada”, afirmou.

Consequências judiciais

O ato de desmoralizar alguém, ou promover o cancelamento, é visto no ordenamento jurídico como uma forma de censura. Apesar de não ser crime, a conduta é considerada ilegal por ferir a autonomia do indivíduo de expor a própria opinião, garantida na Constituição de 1988.

Engana-se quem pensa que as consequências são destinadas apenas ao público que promove o linchamento virtual diretamente. Ao compartilhar ou curtir publicações com teor negativo, o internauta pode ser enquadrado em crime ilícito cível, abrindo espaço para processos morais, calúnia, difamação ou danos patrimoniais, segundo o presidente da comissão de Direito Digital da OAB\PA e especialista em Ciências Criminais e Direito Digital, Lucas Kizan.

Uma das maneiras de provar o crime virtual, de acordo com o advogado, é registrar o ocorrido em cartório civil, por meio de uma ata notarial, que nada mais é do que o escrivão descrever digitalmente os xingamentos, os nomes dos usuários que praticaram as ofensas e em qual rede social ocorreram os ataques.

“A [segunda] alternativa é ir na Divisão de Prevenção e Repressão a Crimes Tecnológicos do Pará e fazer o registro de ocorrência policial e solicitar que sejam também registradas as imagens, os links. O escrivão irá relatar tudo, mas só é feito isso quando há crime de injúria racial, calúnia e difamação”, afirma Lucas.

Outra forma segura é a vítima gravar a tela do dispositivo do celular mostrando o link completo da página em que aparecem as publicações do cancelamento’ os perfis dos usuários e o horário que iniciaram os ataques virtuais, afirmou o advogado.

Por Amanda Martins e Felipe Pinheiro.

 

 

COMENTÁRIOS dos leitores