A fotografia afetiva de Michell, deficiente visual

Estudante de publicidade diagnosticado com glaucoma ainda na infância prova que também é possível enxergar com o coração

por Marília Parente dom, 06/10/2019 - 08:30

 Através do tato, Michel desvenda os botões e funções de sua câmera. (Rafael Bandeira/LeiaJáImagens)  

O que você enxerga quando vê? Em meio às pernadas apressadas dos corredores da pista do Campo do Quinze, localizado em Torrões, na Zona Oeste do Recife, o estudante Michell Platini parece ter todo o tempo do mundo. Pacientemente, ele tateia o relevo com sua bengala, informa-se sobre o espaço e saca sua câmera fotográfica. Vítima de glaucoma congênito, Michell convive desde cedo com a baixa visão no olho esquerdo e a cegueira completa no direito. Assim, ele aprendeu a sentir e imaginar o mundo de forma única, a qual pretende compartilhar através de seu inusitado trabalho de conclusão do curso de publicidade e propaganda, na área de fotografia. Michell fará uma campanha para a Casa do Frevo, registrando passistas que executarão os rápidos movimentos do ritmo pernambucano.

De acordo com o censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2010, existem 45.606.048 pessoas com deficiência no Brasil - o equivalente a 23,9% da população brasileira-, no entanto, apenas 6,66% delas possuem ensino superior completo. A grande maioria desta população (61,13%) não é dotada de instrução ou ensino fundamental completo. “Eu tenho o carma de ser meio desbravador: fui o primeiro aluno com deficiência da escola e depois o primeiro aluno de espanhol da rede pública. Desde cedo batalhei com minha mãe para garantir direitos como o Benefício de Prestação Continuada (BPC). Escolhi o curso de Publicidade pensando no desafio de encarar uma área muito visual”, conta Michell.

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As dificuldades de viver em uma sociedade pouco pensada para suas demandas, aproximaram o estudante da militância organizada. No movimento juvenil desde a adolescência, Michell já foi delegado do Orçamento Participativo da Juventude, membro do Conselho da Juventude e assessor da Associação Pernambucana de Cegos (APC). “Tento ser essa pessoa que aponta onde estão os erros, mas também apresenta uma solução. O sistema educacional ainda tem uma dívida com as pessoas com deficiência, por isso quero fazer um bom trabalho de conclusão de curso e mostrar que podemos absorver e produzir conhecimento”, coloca. Foi com esse espírito que Michell decidiu escolher a fotografia como área de conhecimento de seu projeto de conclusão de curso. “Sou meio teimosinho, gosto de causar esse estranhamento, porque só há evolução quando vemos algo que mexe com a gente. Então é provocar esses sentimentos nas pessoas e a academia sobre a importância de pensar uma fotografia para todos”, defende Michell.

Para realizar a façanha, o estudante aposta em uma metodologia pouco convencional. “Certa vez, um fotógrafo europeu fotografou uma bailarina colocando guizos nos calcanhares dela. Dessa forma, sem precisar vê-la, ele conseguiu acompanhar sua movimentação através do som. Eu pretendo aplicar a mesma ideia, só que com o frevo. No meu caso, os passistas vão utilizar também fones para ouvir a música, sem que o som me atrapalhe ou se confunda com a sinalização de onde eles estão”, explica.

De acordo com Valéria Gomes, orientadora do projeto e professora dos cursos de Comunicação Social da UNINASSAU - Centro Universitário Maurício de Nassau, Michell será o primeiro aluno com deficiência da instituição de ensino a se formar em publicidade com projeto na área de fotografia. “Propus que ele busque uma distância focal, através de marcações no chão para que os bailarinos tivessem uma determinada faixa de comprimento e Michell pudesse captar aquele pedaço. É uma metodologia nova que estamos tentando implementar”, comenta. A professora lembra ainda que o trabalho precisa ter um visual atraente, para servir de material publicitário para a Casa do Frevo. “Para isso, Michell vai aproveitar todo um arcabouço teórico que conseguiu apreender nos quatro anos de curso, aplicando isso às técnicas fotográficas”, completa.

Registro feito por Michell com auxílio da amiga Jenifer, que descreveu o cenário antes do clique. (Michell Platini/cortesia)

“A fotografia já está na nossa cabeça”

Incansavelmente, Michel se posiciona em diversos ângulos com o objetivo de fotografar os garotos que treinam no Campo do Quinze, onde ele próprio já jogou futebol antes de adquirir outras patologias além do glaucoma, a exemplo da catarata e de um edema na córnea. Após alguns registros, o estudante praticamente encosta o olho esquerdo no visor da câmera e observa se o enquadramento está satisfatório. Caso haja excesso de chão ou céu na imagem, ela precisará ser refeita. Ele confessa ter mais facilidade de produzir os registros em lugares conhecidos, com os quais já possui lembranças e até certa relação afetiva. “Se você pensar bem, a fotografia já está na nossa cabeça, antes de ser clicada. Um diretor fotográfico pensa aspectos como a luz antes da foto, a lente apenas vai captar”, defende.

Como primeiro contato profissional com a oitava arte, Michell toma por referência um curso de fotografia voltado para pessoas cegas. “Gosto de tirar foto, sempre me interessei em pensar o enquadramento, esperar o melhor momento...Recentemente comprei uma Cannon SL2”, comemora. Com a premissa de conhecer bem o equipamento de trabalho, Michell desbrava a nova e complexa câmera com perseverança, a partir do toque atencioso em cada botão, do som e da tecnologia. “Por enquanto, estou fotografando no modo automático, mas depois pretendo trabalhar no manual. Depois utilizo um programa chamado Leitor de Tela, que me ajuda a ler, escrever e editar as fotos no computador”, acrescenta.

Fotografias produzidas por Michell no bairro de Torrões, onde mora, durante reportagem com o LeiaJá. (Michell Platini/cortesia)

Existe ainda outra ferramenta essencial para que o estudante desenvolva seu talento: os amigos. A fotógrafa Jenifer Miranda conta que costuma sair aos passeios fotográficos ao lado do estudante, a quem dá breves informações sobre o cenário que os envolve. “No último ‘rolê’ fotográfico que fizemos, na praia, ele tirou uma foto bem bonita do nascer do sol. Depois que você diz onde está o sol, o mar e explica as direções, ele fica livre. Não precisa guiar, ele faz tudo sozinho e tem suas próprias estratégias. Ouve o som do mar e sente o sol na pele”, garante Jenifer. A fotógrafa diz que não se chocou quando o amigo decidiu fazer os próprios registros. “Me surpreendi apenas com o fato de que as fotos são belíssimas, porque ele faz coisas que outras pessoas levam anos para conseguir e estuda para isso. Aprendo todo dia com Michell, porque é uma realidade que não vivo”, conclui Jenifer.

Fotografia acessível

Ao apoio dado por Jenifer durante as produções recentes, Michell refere-se como audiodescrição, isto é, um recurso que traduz imagens em palavras, fundamental para que pessoas cegas ou com baixa visão possam compreender conteúdo audiovisuais. Com formação na área, o estudante planeja o recurso em seu trabalho de conclusão. “Agora, eu estou querendo produzir fotografia, mas depois posso querer consumir. Meu trabalho vai ser acessível para pessoas cegas”, adianta.

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