Reforma administrativa preocupa concurseiros

O LeiaJá ouviu professores de direito administrativo e concurseiros para entender como a Proposta de Emenda Constitucional 32/2020 poderá afetar a vida de novos servidores

por Lara Tôrres dom, 13/09/2020 - 09:30
Rafael Bandeira/LeiaJáImagens/Arquivo . Rafael Bandeira/LeiaJáImagens/Arquivo

A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 32/2020, conhecida como reforma administrativa, tem por objetivo alterar disposições sobre servidores, empregados públicos e a organização administrativa do País, extinguindo o regime jurídico ao qual os servidores públicos hoje estão subordinados. Caso seja aprovada, não valeria para quem já tomou posse de seus cargos, apenas para novos servidores, ou seja, quem hoje está estudando e é conhecido como “concurseiro”. 

A medida tem gerado queixas em relação a alguns de seus pontos, considerados problemáticos ou controversos por parte da população envolvida nos concursos e no serviço público de forma geral, sendo a possibilidade de retirada do estado probatório e sua substituição por um período de experiência sem estabilidade para o servidor o mais controverso. Diante desse cenário de incertezas, o LeiaJá procurou concurseiros e professores para entender se em caso de aprovação da PEC, existe possibilidade de queda do interesse por empregos públicos ou prejuízos na prestação de serviços. 

“O nome verdadeiro é demolição do serviço público”

Para o professor Abner Mansur, docente de disciplinas das áreas administrativas e pedagógicas, “da forma que foi protocolado, chega a ser um texto absurdo”, pois “as mudanças não visam apenas a maior produtividade e qualidade do serviço público".

"Se esse fosse o único efeito, raramente alguém se levantaria contra”, diz Mansur. Na visão dele, o serviço público já tem meios de dispositivos corretos para o controle do serviço público que funcionam muito bem, e a nova PEC dá aos chefes dos órgãos de poderes de todos os níveis da República “poderes que vão muito além da normalidade constitucional e geram uma insegurança jurídica absurda”. 

O professor indica alguns pontos positivos na proposta, como a extinção da aposentadoria compulsória como punição, uma vez que, para ele, essa medida não configura uma punição real a desvios de conduta e o antigo funcionário sai do serviço com um salário alto. No entanto, há na visão de Abner muito mais pontos problemáticos no projeto que tornam inadequado, na sua opinião, até mesmo chamar de reforma administrativa. “O nome verdadeiro é demolição do serviço público”, afirma ele. 

O primeiro motivo, segundo o professor, é a extinção do estágio probatório, substituído por um vínculo de experiência. “Hoje um servidor civil quando assume o cargo, passa três anos sendo avaliado em vários critérios. Se alcançar a pontuação correta, entra no quarto ano de serviço com estabilidade e só poderá ser demitido ou exonerado se passar por um processo administrativo ou judicial, quando for transitado em julgado. A mudança prevê um vínculo de experiência de apenas um ano, em que mesmo que você cumpra todos os requisitos e atinja a pontuação, a administração pública vai analisar se pretende lhe contratar ou não. Vamos dizer que 100 pessoas assumem um cargo, todos cumprem os requisitos em um ano no vínculo de experiência, mas a administração só está afim de contratar 10. Noventa são exonerados”, explica Abner. 

Segundo o professor Abner Mansur, além de ser injusto com quem estudou muito por anos para passar no concurso, a prática é perigosa em termos políticos. “Esse novo texto diz que a administração pública não precisa justificar por que está contratando fulano, ciclano, ela simplesmente escolhe, ou pode não escolher ninguém. Veja a brecha" Uma prefeitura, por exemplo, pode fazer concurso, contratar um número de pessoas para um determinado período e depois de um ano, não mantém a pessoa. Fica cômodo para um chefe do executivo aumentar o efetivo de pessoal quando quiser sabendo que daqui a um ano vai mandar embora e está tudo bem”, argumenta. 

Atualmente, como já foi explicado, exonerações e demissões só podem ser concretizadas no setor público depois que um servidor estável passar por um processo judicial ou administrativo transitado em julgado, ou seja, sem mais nenhuma possibilidade de recurso. Na PEC da reforma administrativa, um dos problemas apontados por Abner é a mudança desse fato: uma sentença passaria a ser suficiente para a exoneração. “Sentença unilateral, um juiz achou que está tudo bem, decidiu, o servidor vai embora e acabou. Vai continuar recorrendo, mas fora do serviço, sem salário, sem serviço, sem trabalhar”, alerta o professor.

Servidores públicos atualmente têm direito à licença prêmio, que é uma licença de um mês a cada cinco anos para aperfeiçoamento profissional. Ela e outras licenças que não as obtidas por motivos de saúde serão extintas em caso de aprovação da PEC 32/2020. Outra mudança criticada pelo professor Abner, que ele considera “a mais absurda”, é a possibilidade de chefes de órgãos do poder executivo extinguirem um cargo ainda que ele esteja ocupado.

“Hoje, um chefe pode extinguir o cargo se houver vacância. Agora o cara está concursado, trabalhando, o presidente, governador ou prefeito percebeu que não quer mais aquele cargo, ele extingue e a pessoa não vai para outro cargo, ela simplesmente vai para a rua sem nenhum direito, indenização, sem nada”, explica o professor. 

Na visão de Abner, os atingidos pela possível aprovação do texto são os usuários dos serviços públicos (que em sua visão funcionam bem e vão muito além de atendimento ao público) e os futuros servidores, que hoje são concurseiros e serão diretamente implicados pelo texto da PEC, caso não existam alterações em sua redação durante a tramitação. 

“Os que são contra a reforma como eu, são contra porque são décadas de luta dos movimentos de trabalhadores para que se consiga não privilégios, mas qualidade de vida no trabalho. É indiscutível que nós vamos ter bem menos interessados. A pessoa corre para o serviço público justamente porque não quer passar pela humilhação do serviço privado, de viver ameaçado de ser demitido, ter que depender de alguém, de chefe que assedia. Você vai para o serviço público para trabalhar e produzir em paz. Na medida em que você tem uma total insegurança durante esse primeiro período que chamam de experiência e após também, quando estiver pseudo efetivo, porque a estabilidade sumiu, muita gente vai desistir. A procura vai ser de políticos, filiados a partidos. Toda a cadeia produtiva em volta de concursos públicos, a preparação técnica que move a economia do País, vai simplesmente encerrar”, afirma o professor.

"Não vai ter uma efetividade tão grande"

A professora de direito administrativo Isabela Galvão explica que há ainda outros pontos controversos no texto da PEC 32/2020, como a redução de salários iniciais das carreiras dos novos servidores e inserção de mais faixas de progressão, fazendo com que demore mais para que os profissionais cheguem ao topo da remuneração de seus cargos. Além disso, ela apontou a simplificação da possibilidade de acumulação de cargos públicos e um aumento do poder do chefe do executivo para extinguir não apenas cargos, mas também órgãos públicos e autarquias por meio de decreto (hoje, é preciso uma lei). 

Questionada sobre a possibilidade de o projeto surtir algum efeito na redução do custo de gastos com pessoal em órgãos públicos e prefeituras, por exemplo, a professora Isabela fez ressalvas a respeito da abrangência da PEC. “O argumento pela aprovação é trazer eficiência no serviço público, porque retirando a estabilidade não há segurança e desta forma se supõe que vai prestar serviço com mais eficiência e economia dos cofres. Na minha opinião pessoal, não haveria grandes evoluções no tocante aos gastos com pessoal na máquina pública, porque os servidores que têm os salários mais robustos ficaram de fora. Juízes, militares, promotores, parlamentares, eles recebem salários e subsídios maiores e não serão atingidos. Não vai ter uma efetividade tão grande dada essa ideia”, diz a docente.

No que diz respeito a riscos que o serviço e os futuros servidores públicos poderiam correr em caso de aprovação do texto, Isabela citou o princípio da impessoalidade diante da instituição de um vínculo de experiência como sua maior preocupação. “Na minha visão, acho que o principal risco caso a reforma seja aprovada é a violação ao princípio da impessoalidade, dada essa existência do vínculo de experiência como etapa do concurso público e caso não atue bem não será efetivado, é chamado o próximo da fila”, argumenta.

Como efeito negativo imediato da proposta antes mesmo de sua tramitação avançar, a professora afirma que já conseguiu perceber a desmotivação de parte dos concurseiros, amedrontados com a possibilidade de aprovação da PEC. “Vários alunos que eu tenho e estudam para concursos estão super preocupados com essa reforma e disseram que ficaram desmotivados para seguir uma carreira pública. Por quê? Um dos principais fatores para que as pessoas escolham uma carreira pública é a estabilidade e a reforma propõe tirar a estabilidade para a maior parte das carreiras”, conta Isabela.

Mudança de direção

Ádamo Yésus Brito é estudante de mestrado, tem 30 anos e há 2 anos e meio faz concursos para o cargo de analista clínico. Entre outros pontos, o que ele considera que mais irá impactar a vida dos concurseiros é a mudança na estabilidade dos novos servidores. 

“Quando nós nos candidatamos a uma empresa no mercado de trabalho, ficamos a mercê da vontade dos superiores por melhor que seja o nosso desempenho e podemos ser desligados a qualquer momento. Isso não ocorre quando se é estável no serviço público. Eu conheço pessoas que são servidores públicos e que só tiveram coragem de denunciar irregularidades dos superiores depois que atingiram a estabilidade, pois sabiam que se tivessem feito antes perderiam o emprego”, revela.

No que diz respeito ao serviço público de forma geral, Ádamo acredita que a eventual aprovação da reforma administrativa pode reduzir a qualidade de sua prestação ao causar uma baixa na qualidade dos servidores que entram nos órgãos. “Hoje, com a regra e concorrência atual, os certames têm tido um nível bem alto nos selecionados, inclusive é comum ver pessoas com formação acima da exigida nos editais. Acredito que se as novas regras entrarem em vigor não compensaria se dedicar tanto para se submeter a condições iguais ou por vezes até inferiores às do mercado de trabalho”, opina.

Questionado se a aprovação da reforma pode causar uma queda no interesse das pessoas por empregos públicos, Ádamo afirmou que sim. “Existem cargos na área técnica do governo que os salários estão muito abaixo dos setores privados e que só compensam pelas vantagens oferecidas, tais como a estabilidade, sem essas compensações, não valeria mais a pena se dedicar tanto. Caso a lei passe do jeito que está, muito provavelmente isso vai afetar os cargos mais baixos e que precisam de um contingente de pessoal maior”, fala o concurseiro.

No que diz respeito à sua própria motivação de continuar ou não estudando, ele afirma que “caso continue do jeito que está, muito provavelmente iria redirecionar para os cargos em que essa possibilidade de estabilidade seja mantida”.

 “E se todo mundo for bom no desempenho, como fica?”

A fisioterapeuta Catarina Lima tem 35 anos e desde 2018 presta concursos para carreiras policiais. Ela conta que a princípio achou que a reforma administrativa pudesse ser uma boa medida, mas mudou de ideia após se aprofundar no tema. “As pessoas que procuram um concurso é por causa de uma estabilidade financeira. Por mais que depois por trás seja um sonho que queira, primeiro é a estabilidade. Em relação à estabilidade, tenho até um receio se for aprovado que fique parecido com o serviço privado”, afirma ela.

O vínculo de experiência, período no qual o servidor não fica estável e passa por avaliação para que se defina ao final do processo quem são os melhores servidores que permanecerão no emprego com base na avaliação feita pelo chefe, também preocupa Catarina. “É feita uma seleção dos melhores, mas não diz a porcentagem desses melhores. Fiquei me perguntando, e se todo mundo for bom no desempenho, como fica? Essa estabilidade que é o que todo mundo procura em primeiro lugar, deixou todo mundo bem inseguro. Antes eu poderia me recusar a alguns serviços de chefia que não era para o meu cargo, que a gente sabe que no serviço privado às vezes a gente passa dos limites por querer aquele emprego. Realmente não vi vantagem, para ser bem sincera”, diz ela.

Catarina não acredita que a medida, ainda que seja aprovada, poderá causar um desestímulo aos concurseiros ou queda na procura por concursos públicos, embora admita que os estudantes tomaram um “banho d’água” com a notícia da reforma. “A gente ainda não sabe como vai ser na prática tudo isso, mas ainda acho válido você ir atrás de um salário, de um cargo que você quer. (...) Para quem ainda não é concursado, a gente cria a expectativa de uma coisa e levou um banho d’água, mas ainda vejo todo mundo com a força de vontade de passar", comenta.

“Garantia de que a impessoalidade vai seguir ilesa”

Desde 2017, a advogada Laíse Galdino, de 26 anos, faz concursos para o Ministério Público e tribunais, além de algumas provas de prefeituras. Ao analisar a PEC da reforma administrativa, ela conta que se sentiu “super preocupada, angustiada, sem saber o que realmente querem fazer” diante de vários pontos da proposta, especialmente no que se refere à estabilidade no vínculo de experiência. 

“Foi dito que a estabilidade é uma regalia mas não é, ela é uma garantia. Quando a gente se torna servidor, existe um tempo para iniciar a estabilidade, e isso diminui práticas patrimonialistas envolvendo corrupção. Eu sou servidora, meu chefe me manda fazer um ato ilegal. Sendo servidora estável, não serei obrigada a fazer, diferente de empregos privados, que tem medo de ser demitido. Se você for servidor estável, você não vai ser demitido dessa forma, não é regalia, é garantia de que a impessoalidade vai seguir ilesa”, afirma a advogada. 

Em sua análise, Laíse também acredita que a possível aprovação da PEC 32/2020 iria desestimular os concurseiros a seguir estudando para conquistar uma vaga no serviço público, uma vez que sem estabilidade, seria o mesmo que ter um emprego na iniciativa privada. Ela justifica a afirmação com base em suas próprias vivências profissionais.

“Você fica assegurado a vida toda, a energia de trabalho é diferente do setor privado, onde também já trabalhei com CLT. Imagina se não tivesse a estabilidade. Muito concurseiro vai parar de estudar, se desmotivar. A gente não vai estudar para nada, vai estudar para ter uma coisa estável no futuro, se for assim não vai ter diferença. Eu espero que essa PEC não passe, porque vai ter um efeito dominó. Se isso for aprovado, vão cair os estudos, vão cair os professores, cursinhos vão ter diminuição, porque vai ser a mesma coisa entre ser CLT e concursado se houver a mudança da estabilidade”, argumenta Laíse.

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