Pichadores pedem respeito à "voz" da periferia

LeiaJá conversou com inúmeros adeptos da prática no Recife

por Jorge Cosme qua, 01/02/2017 - 09:03

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Eram 3h da madrugada na Bomba do Hemetério, Zona Norte do Recife, quando o telefone tocou. Do outro lado da linha, Anêmico falava:

- Gosma, vamos agora pintar a fachada lá – ele sugeriu, conforme já estavam combinando.

O prédio do INSS era objeto de desejo dos pichadores naquele ano de 2004. Anêmico já havia tentado subi-lo no ano anterior, mas foi detido ainda embaixo após não conseguir abrir a porta.

Chegaram ao local, na Avenida Dantas Barreto, centro do Recife, em torno das 4h. Gosma, Anêmico, Evil e Brayner. Antes de subir, Gosma reforçou que eles não iam apenas pichar, mas fazer uma frase. Subiram, juntaram dois cabos de vassoura e começaram a pintar – menos Brayner, que estava dando apoio. O grupo mal se deu conta e de repente amanheceu. Quando estavam pintando a última letra, garis que passavam embaixo viram o fato e alertaram os vigias. Os pichadores foram levados pela polícia.

A pichação, entretanto, ficou. “O povo que casa” (sic), trecho tirado de um poema do próprio Gosma. O prédio abandonado do INSS, Edifício JK, era um dos mais altos na capital à época. Na viatura, como de costume, o policial começou a fazer terror psicológico. Dizia que os jovens iriam virar “mulherzinha” na cadeia.

Anêmico e Evil choramingavam para não serem levados, Brayner havia conseguido fugir. Gosma, já ligado a grupos de grafitagem e coletivos, conseguia conversar com o policial. Destacava que o que havia feito não era pichação, era um protesto. Desconfiado com a oratória do grafiteiro, o policial passou a perguntar quem havia contratado o rapaz para pintar aquilo.

Reprodução/FacebookUm jornalista apareceu na delegacia logo cedo e apontou que Gosma já era um grafiteiro conhecido, com trabalhos pendurados até no escritório do secretário Raul Henry. No fim, quando foram liberados, o policial que havia amedrontado o grupo pediu que eles fossem lá no muro de sua casa fazer um protesto contra o então governador Jarbas Vasconcelos, que estava atrasando os salários da categoria. Eles deixaram o local como mocinhos. 

Atípico um pichador ser considerado o herói fora do espaço onde vive. Como se tratava de uma mensagem forte em um prédio público abandonado, a repercussão acabou sendo positiva. Incomum para a vida de Gosma, que já apanhara, tivera o rosto, as mãos e o cabelo pintado três vezes e o relógio roubado pela polícia.

No Recife, a pichação existe, pelo menos, desde a década de 80. Apesar das mudanças ao longo do tempo, ela continua presente. Uma fachada pintada no centro do Recife não demorará muito tempo intacta.

Gosma, hoje Galo de Souza, grafiteiro reconhecido internacionalmente, começou a pichar – ou “pixar”, como eles preferem falar, num exemplo de quebra de regras – aos nove anos. Na época, por diversão. Mas a necessidade de continuar fazendo aquilo foi ganhando motivos mais complexos. “Eu pichava porque tinha raiva. Tinha raiva das diferenças sociais e porque eu morava na favela e tinha aquelas casas grandonas, aqueles prédios pra chegar à praia. No caminho entre a minha casa e a praia, eu pichava tudo”, recorda.

Entre o ato de protesto e o crime

Na década de 80, a pichação costuma aparecer na vida da pessoa ainda na infância, na escola. Muros, banheiro e corredor riscados. Atiça a curiosidade de muitas crianças, que começam a treinar sua assinatura nas folhas de seu caderno. Os motivos que levam o indivíduo a continuar em tal prática são diversos, como forma de protesto, querer ser reconhecido e a própria adrenalina do ato. 

Os bailes funks eram os maiores concentradores desses grupos. Lá, pichador conhecia pichador. O novato no “ramo” conversava com quem admirava. Após a festa, eles saíam para colocar nomes nos muros da cidade.

Os pichadores também eram divididos por seus comandos, inicialmente especificados por bairro em que viviam. “Era muito o bairro no começo. Depois as siglas cresceram e ficaram maiores que o bairro. Por exemplo, a sigla que era de um originalmente passa a ter várias pessoas de outros bairros”, lembra Galo. Os bailes funks serviam também para o confronto dos grupos. A proibição desses bailes foi importante para o movimento de pichação perder força. 

Atualmente, a pichação continua presente na cidade. Cada vez mais diversificada, com adolescentes que não são necessariamente das periferias participando da prática. No Brasil, o tema voltou ao centro do debate após o prefeito de São Paulo, João Dória (PSDB), iniciar uma guerra contra os pichadores. Ele fez um acordo com taxistas, para que informem a Guarda Municipal ao registrarem um flagrante do crime e já deteve 12 pessoas em um único dia. “Ninguém gosta de pichação”, disse recentemente o gestor. 

“Pichação já é um protesto do artista que não tem espaço na periferia, então ele sai pra rua pra protestar, para ocupar o espaço que não é dele. Porque o centro não é da periferia, não foi feito para periferia”, diz o pichador Piolho, destacando que para ele aquilo também é arte.

“A pichação é uma forma de eu dar um tapa nesse sistema que sempre queria dar um tapa em mim”, complementa Galo de Souza. Segundo a pichadora Rueira, ela sempre participava de protestos e, em determinado momento, a vontade de riscar os muros brotou. “Eu passava de ônibus, via o nome dos meninos e queria fazer igual, queria ser reconhecida também”, conclui. 

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