'Nunca mais quero dar aula. O amor deu lugar ao medo'

O número de afastamentos de profissionais da educação por transtornos psicológicos liga o alerta vermelho para as condições de trabalho da categoria

por Juan Gouveia sab, 02/06/2018 - 15:00
Rafael Bandeira/LeiaJáImagens Violência e desvalorização levam muitos professores a ter problemas psicológicos Rafael Bandeira/LeiaJáImagens

Quando o ambiente de trabalho se torna um problema, a atenção deve ser redobrada. As variáveis em torno das condições que levam profissionais a desenvolver transtornos psicológicos são diversas. De acordo com a Organização Internacional do Trabalho (OIT), profissões como médico e professor estão entre as mais desgastantes, gerando uma alta incidência de licenças por problemas como depressão e estresse.

Ana* é professora há 18 anos. A profissão, herdada da mãe, sempre foi motivo de orgulho para a família. Acreditando na educação como base de formação para qualquer indivíduo, a paixão deu lugar à frustração, quando os problemas desenvolvidos em sala de aula começaram a influenciar na rotina em casa.

“Ser professor, além de tudo, é uma loucura. Você tem que trabalhar por amor à profissão. O dia a dia no trabalho me deixava doente e isso começou a afetar meus filhos”, explica, em entrevista ao LeiaJá. Lecionando em uma escola de bairro periférico, Ana* desenvolveu síndrome do pânico e nervosismo, de acordo com laudo médico. Segundo ela, as causas são relacionadas diretamente a um episódio traumático vivenciado em sala de aula, do qual prefere não recordar.

“Depois do que aconteceu, a nossa vida nunca mais foi a mesma”, conta o marido de Ana*. A morte de um aluno em sala de aula foi o que agravou a situação, já complicada, de sua esposa. “A área de trabalho não contribuía, mas a função do educador é estar onde precisam dele. Ana* não tinha a noção que aconteceria situações como essa. Foi o ápice para os problemas dela”, explica. Após o ocorrido, a professora ficou afastada e não conseguiu mais voltar às salas de aula. “Nunca mais quero dar aula. O amor deu lugar ao medo, me senti desamparada”, pontua a docente.

A história da professora do ensino fundamental reflete os dados da pesquisa realizada pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que mostra o Brasil como o país com o maior índice de violência contra professores. O estudo foi realizado em 2013 com mais de 100 mil professores e diretores de escolas do segundo ciclo do ensino fundamental e do ensino médio (alunos de 11 a 16 anos). Os números preocupantes se materializam no dia a dia dos profissionais da educação.

A professora Maria* trabalha há 14 anos na área. “É uma triste realidade, mas é muito comum alunos levantarem o tom da voz e agirem de forma agressiva quando há algum problema, principalmente relacionado ao desempenho e a atividades relacionadas à avaliação”, lamenta. Ainda de acordo com a mesma pesquisa, 12,5% dos professores ouvidos no Brasil disseram ser vítimas de agressões verbais ou de intimidação de alunos pelo menos uma vez por semana.

Os problemas desenvolvidos em sala de aula podem trazer consequências adversas à saúde do profissional. “Não consigo mais dar aulas, esse espaço se tornou algo muito estressante para mim. De pouco em pouco as coisas se agravaram em sala, me colocando em um quadro de esgotamento mental absurdo”, explica Maria*. Um dos efeitos é o afastamento das atividades, solicitando licenças e benefícios ligados ao Instituto Nacional do Seguro Social (INSS).

Os dados divulgados pela Secretaria de Planejamento e Gestão de São Paulo apontam o crescimento no número de professores de escolas estaduais afastados por desenvolver transtornos mentais ou comportamentais no Estado. Em 2015, o número foi de 25.849 afastamentos. No ano seguinte, quase dobrou, totalizando 50.046 afastamentos. Já em 2017, até setembro, houve 27.082 afastamentos.

A realidade por trás desses números revela uma situação preocupante, como avalia o Presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores da Educação, Heleno Araújo: "Os professores muitas vezes atuam em condições péssimas de trabalho, principalmente em escolas públicas, e falta segurança". Além dos baixos salários, que provocam desmotivação e exaustão, existem fatores ligados à falta de espaços para socialização, espaços de lazer e suporte social com centros de aconselhamento e diálogo. Segundo ele, tais pontos podem explicar as razões estruturais para o aumento dos números de licenças.

De acordo com pesquisa, 13% dos profissionais em educação em Pernambuco foram afastados por ansiedade ou nervosismo. Outros 9% tem problemas relacionados à voz e 7% ao estresse.  O estudo foi desenvolvido pelo Grupo de Estudos Sobre Política Educacional e Trabalho Docente da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

A realidade de cada indivíduo se relaciona com os problemas estruturais da realidade educacional no país, avalia a psicóloga Aline Sharon. “Conviver com as diferenças é um grande desafio, mas o principal problema perpassa na falta de reconhecimento da categoria. A classe escolar não visualiza o profissional com respeito. Essa configuração potencializa o desenvolvimento de transtornos”, explica. O mesmo grupo de estudos da UFMG apontou as principais causas para os afastamentos em todo o país: depressão, ansiedade, nervosismo e estresse.

O caminho para mudança dessa realidade pode parecer inalcançável. Maria*, após o afastamento das atividades em sala de aula, decidiu, com o apoio da família, não voltar a lecionar. Mantida com a ajuda financeira dos filhos, ela relembra que o processo de aconselhamento não existiu: “Não busquei ajuda, simplesmente deixei essa situação se instalar dentro de mim até um ponto que não aguentava mais e decidi parar. A partir desse momento, reconheci que precisava de ajuda e não conseguiria mais voltar ao trabalho sem as condições necessárias para realizá-lo”.

Outra pesquisa, denominada Trabalho Docente na Educação Básica do Brasil, realizada pelo mesmo grupo da UFMG, mostra que "grande parte dos trabalhadores que possuem enfermidades não incapacitantes continua cumprindo suas jornadas de trabalho, em prejuízo de sua saúde, como é notório no caso de problemas de voz e sintomas de sofrimento mental.”

Hoje, Ana*, mesmo afastada das salas de aulas, mantém contato com a escola, trabalhando no setor administrativo. “É uma situação muito difícil para mim continuar nesse espaço que me remete a momentos difíceis. Infelizmente não tenho condições de abandonar o trabalho, pois é minha única renda para mim e meus filhos”, lamenta. A psicóloga Aline Sharon diz que a permanência agrava os prejuízos mentais, irritando a cadeia emocional, o que pode acarretar problemas físicos que devem ser observado por profissionais de saúde.

A questão é sistemática e esbarra em problemas de educação social, falta de estrutura para realização de trabalho e valorização da carreira na educação. Ainda de acordo com Aline, a solução para reduzir esses problemas ligados à saúde é a abertura para o diálogo. Já o sindicalista Heleno defende que cabe às instituições o investimento em políticas de assistência a esses profissionais, com acompanhamento diário e preocupação com as demandas básicas para o exercício da profissão.

*Nomes fictícios para preservar a identidade

COMENTÁRIOS dos leitores