Religião e política: o Estado brasileiro é mesmo laico?

Nos últimos anos, princípios religiosos e anseios políticos vem andando lado a lado no Brasil

por Giselly Santos sex, 30/08/2019 - 15:38
Michel Jesus/ Câmara dos Deputados Michel Jesus/ Câmara dos Deputados

Quem nunca ouviu a máxima “religião e política não se misturam”? Ou, “o Estado é laico”? E até mesmo, “não discuto nem religião nem política”? Esses argumentos são repetidos constantemente por eleitores no Brasil, contudo a realidade de parcela dos quadros políticos nacionais expressa outra coisa: princípios religiosos e anseios políticos vem andando lado a lado nos últimos anos. 

Um retrato claro disso é a forma como o presidente Jair Bolsonaro (PSL) se propõe a nortear seus discursos e basear suas escolhas diante da condução do país. O seu slogan de campanha já dizia “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos” e, constantemente, suas falas fazem citações a passagens bíblicas e princípios religiosos. 

Principal meio de comunicação de Bolsonaro com a massa, nas redes sociais, por exemplo, ele já criou a chamada “série João 8:32” - fazendo menção a um versículo do evangelho de São João que diz: “conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” - para rebater críticas da oposição, divulgar dados do governo e respaldar seus discursos. 

Recentemente, ele se utilizou do texto religioso para reforçar seu argumento de que “passar fome no Brasil é uma grande mentira”. E na última segunda-feira (26), ao anunciar que se reuniria com os governadores da região amazônica para tratar das queimadas e do desmatamento, o presidente convidou os internautas a acompanharem o encontro a partir de uma transmissão ao vivo no Facebook e disse “será um João 8:32 imperdível”. 

O recorte é mínimo diante de tantas outras posturas. Jair Bolsonaro já consagrou o Brasil a Nossa Senhora, foi o primeiro presidente a participar da Marcha para Jesus, recebeu orações em cultos e prometeu que na oportunidade que tiver pretende nomear para o Supremo Tribunal Federal (STF) um ministro terrivelmente evangélico. 

O alinhamento aos valores cristãos “deve ser uma das marcas que Jair Bolsonaro deixará expressa” como do seu governo, segundo o professor do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília (UnB), Eurico Antônio Gonzalez Cursino dos Santos. Mas, ressalta o estudioso, há inconsistências do presidente. “Ao mesmo tempo que ele se diz católico, essa prática de referência bíblica e as referências que ele faz direto estão sempre direcionadas ao meio evangélico”, observou. 

Ao avaliar os discursos do chefe do Executivo nacional, Santos ponderou que antes das eleições e no período eleitoral as falas de Bolsonaro com cunho religioso eram mais frequentes, porém quando assumiu o governo ele diminuiu o ritmo.

“A comunicação do presidente Bolsonaro com a população, inclusive durante o período eleitoral, foi marcada por essa referência a valores religiosos, principalmente cristãos. Acredito que isso, em si, está dentro da Constituição. A democracia tem que tomar decisões, que são referidas a valores. Não vejo como uma substituição da política pela religião, nem o tom da campanha, nem o tipo de comunicação que ele faz com a população, ele está se referindo a valores que são da população”, salientou. 

 

Base evangélica no Congresso Nacional

Se o presidente tem alinhamento religioso, no Congresso Nacional isso é ainda mais claro. Inclusive, de acordo com um levantamento do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), em 2018 foram eleitos 91 deputados e senadores que se declararam, se declaram evangélicos ou se alinham ao grupo na votação de temas ligados à religião e aos costumes, além dos que ocupam cargos nas estruturas das instituições religiosas, como bispos, pastores, missionários e sacerdotes.

Fora os 91, outros mais conservadores se alinham aos pensamentos e valores cristãos para basear suas posturas. A polêmica mais recente, baseada em princípios religiosos, foi com relação ao projeto de lei de autoria do deputado Orlando Silva (PCdoB) que instituía o Estatuto da Família do século XXI. Deputados alegaram que o projeto legalizava o incesto e iniciaram uma campanha nas redes sociais contra o autor da matéria e o relator Túlio Gadêlha (PDT), que deu parecer favorável ao texto.

O debate fez com que o projeto fosse retirado da pauta da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara para que o parecer fosse reorganizado, sem deixar brechas para essa interpretação. O projeto, na realidade, considerava como família todos os tipos de formação que ultrapassassem a tradicional pai, mãe e filhos.

Questionado se era saudável a mistura de princípios religiosos com direitos constitucionais e a criação das leis que regem um país, o professor Eurico Antônio Gonzalez Cursino dos Santos disse que “é natural, em uma democracia de massas, que esse tipo de coisas aconteçam”. 

“Democracia integra as pessoas à tarefas complexas de governar, e aí um valor religioso, de uma ideologia bem fundada, acaba tendo funcionamento. A Constituição, no modo como ela organiza a política, faz com que neste momento não estejamos ameaçados quanto à uma espécie de teocracia. Acredito que é impossível de acontecer”, argumentou.

“O que acontece é que estamos apenas começando a lidar com argumentos religiosos e a expressão da religião na política, isso não vai parar não, vai vir mais. Porém, a própria política se encarrega de reconduzir argumentos religiosos apenas como argumento de valor e não de regra geral”, emendou. 

Apesar de não ver riscos para uma teocracia, o estudioso ponderou que fez uma recente pesquisa sobre leis com cunho religioso e encontrou cerca de 400. Um sinal de que não há laicidade no Estado.

“O nosso Estado nunca foi laico, desde a República, ele se mantém próximo as religiões, especialmente às cristã; primeiro ao catolicismo, depois as evangélicas e a partir de 1990 às majoritárias. Mas ele nunca deixou de expedir leis que de alguma forma representasse vantagem para as religiões no campo da educação, da assistência social, da saúde. Ou seja, nós nunca fomos completamente laicos”, disse Santos. 

 

A igreja evangélica está fincando raízes na política?

Em 2008, o bispo Edir Macedo lançou um livro em que dizia: "tudo é uma questão de engajamento, consenso e mobilização dos evangélicos. Nunca, em nenhum tempo da história do evangelho no Brasil, foi tão oportuno como agora chamá-los de forma incisiva a participar da política nacional". 

No “Plano de Poder”, em que traça projeções para diversas áreas, inclusive a política, o líder religioso já deixava clara "a potencialidade numérica dos evangélicos como eleitores” e hoje, mais de uma década depois, isso tem se justificado. 

Indagado sobre o fato do número de políticos evangélicos ter crescido, o professor do departamento de Sociologia da UnB, Eurico Antônio Gonzalez Cursino dos Santos, disse que há mercado para tal, mas é limitado. 

“Manifestamentes são as igrejas evangélicas que têm eleito seus próprios ministros, mas eu não acredito que isso possa ir muito além do que já foi, pela presença deles, a distribuição demográfica, pela importância do catolicismo que oferece uma espécie de limite para essa ascendência e pelas próprias relações internas que nem todos são favoráveis a esse convívio próximo com a política. É uma mercadoria que tem mercado, mas é limitado”, conjecturou.

Ainda na ótica do especialista, “normalmente quem tinha acesso ao poder era a religião católica, então diria que os evangélicos estão chegando à política por outra via, que não é a da formação política católica, eles estão chegando lá pelo voto”.

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