Tópicos | Memórias da cena pernambucana

Ator, jornalista e pesquisador. As várias faces de Leidson Ferraz têm em comum o amor pelo teatro, manifestado desde a infância, em Petrolina, sertão de Pernambuco. Se nos palcos interpretou personagens diversos, fora deles também atuou e atua para fortalecer a produção teatral pernambucana; primeiro como assessor de imprensa de diversos festivais, peças e iniciativas voltadas às artes cênicas; e mais tarde como um explorador da história do teatro feito em Pernambuco, publicando pesquisas que têm trazido à luz um passado esquecido por muitos. O início da jornada - e da paixão - Leidson como pesquisador se deu com a série de livros Memórias da cena pernambucana, que em quatro volumes resgatou a trajetória de quase 40 grupos de teatro de Pernambuco, desde a década de 1940.

Em conversa com o LeiaJá, Leidson Ferraz conta um pouco de como se apaixonou pelo teatro e pela pesquisa da sua história, fala do surgimento do teatro moderno de Pernambuco no século 20, resgata histórias dos grupos dedicados às artes cênicas e adianta os próximos projetos de pesquisa em que está envolvido.

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Com o que você se envolveu primeiro, o teatro, o jornalismo ou a pesquisa?

Eu sou de Petrolina e não via teatro, mas já fazia teatro porque na escola tinha uma feira de ciências anual e eu sempre era chamado pra fazer as coisas do teatro. Com oito anos de idade meus pais me levaram para ver a Paixão de Cristo de Nova Jerusalém. Foi o primeiro espetáculo teatral que eu vi de fato. Quando vi aquilo - na época o grande José Pimentel - fiquei encantado e disse: ‘eu quero fazer isso’. Com 9 anos de idade - eu sempre fui muito ousado né - eu fiz uma adaptação da Bíblia e montei uma Paixão de Cristo com 50 meninos da minha rua. Eu dirigia com um megafone, roubei todos os lençóis da minha casa, não sei como fazia aquilo. Eu fiz o papel do Satanás, sempre gostei de fazer o papel do mal, o Judas, que pra mim é o melhor personagem da Paixão de Cristo, e fiz o Pilates. Aí comecei a fazer teatro dentro de casa, a cobrar ingresso. Aos 13 anos, vim morar no Recife. Só aí eu vi espetáculos profissionais e já tinha certeza que queria fazer teatro. Como sempre fui muito comunicativo, em determinada fase da minha vida decidi fazer comunicação. O teatro veio antes da comunicação. Não tenho curso de artes cênicas, mas vi muito espetáculos. Em 1993 eu me profissionalizei como ator, já tive experiência como diretor também, mas não quero uma coisa nem outra. Muito tempo depois de fazer teatro é que eu descobri esse lance da história do teatro.

E quando você descobriu o lado de pesquisador?

Eu passo o dia inteiro lendo, anoto, descubro coisas. E o Sesc me deu a grande oportunidade de ser professor de história do teatro. Não existia essa cadeira, e no semestre passado eu assumi - morrendo de medo - a cadeira de História do Teatro Pernambucano no curso regular de teatro do Sesc Piedade. Foi uma experiência maravilhosa, porque não adianta pesquisar tanto, estudar, ler tanto e não compartilhar. Ali eu tive seis meses com aulas toda semana. Não sou um acadêmico, mas eu vivo para isso hoje em dia. Minha casa é uma loucura de material que as pessoas me doam e eu vou guardando. Passo o tempo lendo e escrevendo.

Quando você fez sua primeira pesquisa sobre o teatro de Pernambuco?

José Manoel (Sobrinho, gerente de cultura do Sesc Pernambuco) propôs um resgate da história dos grandes grupos do teatro pernambucano, e assim surgiu o projeto Memórias da Cena Pernambucana. Era um debate que acontecia toda terça-feira no Teatro Arraial com integrantes de grupos - inicialmente que tinham já acabado, mas depois abrimos para grupos que ainda estavam em atividade e em seguida para companhias, produtoras, cooperativas. E eu, que já divulgava muito o teatro pernambucano - fazia assessoria de imprensa para várias peças e festivais - fui convidado para trabalhar - de graça - para divulgar este projeto. E eu me apaixonei por aquilo. Eu fazia teatro há um bom tempo, mas até então não tinha noção de quem era Carlos Reis, José Pimentel, Lúcio Lombardi, Maria Jesus Bacarelli, Hermilo Borba Filho, Clenio Vanderlei, pessoas que são fundamentais para a história do nosso teatro. Com muitas delas eu pude ter contato direto fazendo entrevistas, outras eu fui descobrindo pelos poucos livros que existiam. Desde então eu não parei mais. Então o Memórias da Cena Pernambucana não nasce como série de livros, mas como uma série de debates, que foram todos gravados. Nós reunimos 40 grupos de cidades diferentes como Recife, Olinda, limoeiro, Arcoverde… E foi muita luta para conseguir publicar aquele material, demorou muito tempo. A partir daí, eu - que já era conhecido como jornalista e ator - passei a ser muito conhecido como o pesquisador da história do nosso teatro, alguém que estava trazendo para livros histórias que estavam completamente esquecidas. O projeto não focou apenas nos medalhões, demos também atenção a grupos de visibilidade mínima. Hoje posso dizer com orgulho que graças ao preço do livro e às parcerias que consegui - principalmente com o Sesc - esses livros estão espalhados por todas as faculdades de artes cênicas que você puder imaginar. Dei muita palestra, fiz exposições, e como estava em contato direto com esses artistas, muita gente me deu material. Hoje tenho certeza que eu - modéstia à parte - sou a pessoa que mais tem coisas sobre o teatro pernambucano.

Como pesquisador, quando você identifica o nascimento do teatro em Pernambuco?

O teatro pernambucano começa quando os padres jesuítas aqui chegaram. Os séculos foram acontecendo e há registros na história de muitos espetáculos que já aconteceram. A trajetória normal do teatro: ele começa na rua - os primeiros autos dos jesuítas eram feitos na rua -, depois a igreja abraça o teatro; em seguida o expulsa. Os ‘bonecos’ começaram a dizer coisas que não podiam, isso aconteceu o mundo inteiro. O teatro ganha a rua e os palácios; Maurício de Nassau por exemplo sempre incentivou apresentações teatrais dentro do palácios, é uma trajetória muito longa. Mas Joel Pontes, quando escreveu o livro O moderno teatro em Pernambuco, institui um marco que eu respeito: a fundação do grupo Gente Nossa. Em 1931, quando Samuel Campelo funda o Gente Nossa, pra mim, começa a modernidade do teatro de Pernambuco. Muito pela valorização do artista local, na época o que vinha de fora era o que interessava - não muito distante de hoje, né? - e a valorização da dramaturgia nordestina. É engraçado que o grupo Gente Nossa foi muito criticado na época pelo repertório, porque abria concessões ao público, era um repertório que tinha como foco muito o riso.

Historicamente, qual foi o próximo passo?

O TAP (Teatro de Amadores de Pernambuco), que é muito importante porque trouxe para cá encenadores de fora. Europeus como Ziembinski, Bollini, que trouxeram a modernidade teatral mundial. Esses europeus trouxeram para cá espetáculos que em parte não foram entendidos pela crítica da época. Em 1948, o espetáculo Nossa Cidade não tinha cenário, nem as tapadeiras, deixou a nu o Teatro de Santa Isabel, os refletores à mostra. Isso foi um choque, a ponto de ter críticas perguntando se o Teatro de Amadores estava pobre, estava sem dinheiro para os espetáculos (risos). Mas era uma questão estética, de revelar os meandros da atividade teatral, uma coisa que em Nova York estava sendo feita há muito tempo. Então estes encenadores trouxeram uma ruptura. O TAP foi muito importante por conta disso. Mas tem a presença de Hermilo Borba Filho desde 1946, com o Teatro do Estudante de Pernambuco, depois o Teatro Popular do Nordeste, que é uma outra vertente, de valorização da pesquisa sobre manifestações populares que estavam completamente esquecidas. Ninguém até então reconhecia o bumba-meu-boi com características teatrais, cênicas. Hermilo estuda isso e traz para o palco, é um choque estético também. Já na década de 1970 a gente tem uma revolução, o desbunde do Vivencial, do Teatro Experimental de Olinda, das encenações de Carlos Bartolomeu e de Guilherme Coelho. No final desta década você já tem uma profissionalização de fato, com a Práxis Dramática, com a Aquário Produções, elencos enormes, resgatando um pouco a revista, com dramaturgos que muita gente desconhecia. São momentos. Hoje a gente tem um grupo como o coletivo Angu que pega a escrita de Marcelino Freire e transpõe para a cena na íntegra. É uma outra forma de fazer teatro, valorizando uma outra escrita. Você tem o Magiluth, que faz uma mistura, tem uma certa ironia e a presença do ator sem uma ideia de personagem muito definida, é um rascunho de personagem em que o ator também é importante, o que é uma ousadia. Por outro lado você encenações de Antonio Cadengue, que é mais plástico, mais bem cuidado em termos de cenografia e figurino. Temos vertentes diferentes.

Tendo como panorama estas décadas e mais décadas que você tem estudado sobre o teatro de Pernambuco, como estamos agora? Como você vê o atual momento da produção cênica do Estado?

Eu costumo dizer que teatro é a arte da crise. A gente sempre está em crise. Por não ter dinheiro, porque não consegue financiamento, porque os teatros sempre estão caindo aos pedaços, porque a gente monta espetáculos lindos e ninguém vai ver porque não tem divulgação na grande mídia… É uma crise eterna (risos). Hoje, acho que estamos em uma encruzilhada, porque depende muito da verba do Funcultura. Se você observar, a produção - não só teatral - fica estacionada, todo mundo esperando a verba do Funcultura. Aí quando sai, todo mundo começa a ensaiar e vem um monte de montagens. É assim que a gente está vivendo e isso é um horror, pouca gente se aventura a produzir. Hoje, 90% da produção tem financiamento do Funcultura, então estamos à mercê dos prazos que o governo dá e da comissão deliberativa que aprova ou não os projetos. É cruel, mas é um reflexo do mundo de hoje, em que o estado tomou para si e a iniciativa privada fugiu. Ou será que não procuramos? Antigamente, nos programas das peças tinha patrocínio de motel, livraria, loja de tecidos, hoje a gente não tem mais isso, ninguém mais procura, posso contar nos dedos os espetáculos que trazem hoje algum tipo de apoio ou patrocínio que não seja o Funcultura. Mais crise… (risos)

Você acabou de publicar o resultado de uma pesquisa focando em seis décadas de teatro para criança em Pernambuco. Existe uma produção consistente deste teatro no Estado, historicamente e hoje em dia?

Eu estreei profissionalmente no teatro para crianças, então tenho uma paixão enorme, e digo abertamente que prefiro ver um espetáculo para a infância do que um adulto. Eu fui convidado para fazer um mapeamento da produção do teatro para crianças, já que sai tão pouco nos jornais. Essa pesquisa surgiu de um convite do Sesc - mais uma vez José Manoel na minha vida, meu anjo da guarda. Comecei a fazer esse levantamento da produção de 2000 a 2010, que vou publicar em outubro deste ano e se chama Panorama do teatro para crianças em Pernambuco 2000-2010, com incentivo do funcultura e apoio do Sesc Pernambuco. Um livro lindo, com fotos, com o Estado inteiro. Um trabalho do cão (risos). E eu comecei a me surpreender com a quantidade de gente que faz teatro para crianças em Pernambuco inteiro e quis saber como essa história começou. Aí descobri que em 1939, Valdemar de Oliveira, chamado para assumir o Teatro de Santa Isabel, lança um projeto de todo domingo de manhã ter teatro para crianças, numa época em que a criança não ia ao teatro, ninguém fazia teatro para as crianças, apenas nas escolas, nas casas. Aquilo deu muito certo. Não quero dizer que Valdemar é o pioneiro do teatro para crianças no Brasil, tanto que agora pesquisando o grupo Gente nossa achei em 1931 um matinal para crianças. Mas eram espetáculos variados, com canto, dança, recitações, era uma miscelânea de apresentações curtas, não havia uma dramaturgia específica para crianças. Quando Valdemar de Oliveira abre esse projeto, convida um grupo que monta Branca de neve e os sete anões. Depois ele monta três grandes operetas - entre elas A princesa Rosalinda - e a partir daí vários grupos surgem. Descobriram que criança podia ter teatro para ela. Então eu fui vasculhar essa história e descobri o período de 1939 a 1999 - que é o século 20. Achei que era fácil fazer (risos), e passei 2 anos. Mas ficou muito legal o trabalho, tive muito orgulho no lançamento porque consegui reunir muita gente que fez e ainda continua fazendo teatro para crianças. Quero publicar em livro, estou tentando, porque publiquei em DVD. Esse material vai entrar no site do CBTIJ - Centro Brasileiro de Teatro para a Infância e Juventude. É uma história que estava morta, apagada, eu fiquei surpreso. O ‘bum’ do teatro para a infância aqui foi nos anos 1980, com pessoas como Manoel Constantino, Dida Pereira, José Manoel Sobrinho, João Falcão, José Francisco Filho, a gente tem muitos nomes importantes, de pessoas que ganharam prêmios, que circularam pelo Brasil graças a entidades como a Feteape, a Confederação Nacional do Teatro Amador.

Qual a próxima pesquisa em que você pretende mergulhar?

Estou finalizando este panorama do teatro pra crianças, contando com a ajuda das pessoas para as informações, e acho que vai ficar muito lindo. Em outubro teremos uma mega festa, para ‘crianças grandes’ (risos). Estou agora com dois outros projetos: um é uma pesquisa sobre os anos 1930 e 1940, eu estou fazendo um panorama da cena como um todo no Recife nestas décadas, que marcam o início desta modernidade, tentando dialogar com o que estava sendo feito no restante do país. Eu estou adorando, mas é um trabalho enorme. Vou concluir esta pesquisa no próximo ano, ela se chama Um teatro quase esquecido - painel das décadas de 1940 e 1930 no Recife. O outro projeto que eu estou amando fazer é que, como eu disse no começo da conversa, quando fui fazer essas pesquisas e ia entrevistas as pessoas, elas me davam muitas coisas. Eu ganhei muita foto, muito programa, e um dia me deu um estalo e eu pensei que não podia mais guardar essas coisas. Eu vi a enorme quantidade de programas que eu tenho, que você não encontra mais em lugar nenhum. As pessoas foram me dando esse material. Então eu propuz à Fundaj (Fundação Joaquim Nabuco), porque foi a instituição que encontrei que tem mais cuidado com o acervo - e foi uma luta porque a Fundação não aceita hoje qualquer acervo - e eles entenderam que esse material é significativo, não só para o teatro pernambucano, mas brasileiro, e esse projeto se chama Teatro tem programa. Ele abrange o século 20, tenho programas desde 1926, de grupos os mais variados. A proposta é digitalizar todo o arquivo - tenho inclusive coisas do Teatro de Cultura Popular - TCP, cujo acervo foi queimado pela ditadura militar - isso é super importante. A ideia é digitalizar tudo e isso vai ser complementado com informações, até porque a maioria dos programas não traz o ano do espetáculo. Vou doar para a Fundaj e tudo isso vai parar na internet gratuitamente e qualquer pesquisador vai ter acesso aos programas dos espétáculos. Coisas das mais incríveis estão aqui. Contei com a ajuda de muita gente, que me deu essa sina de cuidar um pouco dessa história. Me sinto hoje um pouco neste papel, de cuidar disso. Nada é meu, quero que as pessoa tenham acesso a tudo que eu vou descobrindo, registrando, para que daqui a 60 anos, depois que eu for embora, alguém possa lembrar de um cara que guardou tudo isso e outros projetos nascerão.

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