Tópicos | Ana Maria de Barros

Dentro de onde deveria existir ordem, o horror. Cenas de barbárie: decapitações, "churrasco" com carne humana e inúmeros mortos que, após um tempo, se tornam estatística. Desde o início do ano, o sistema prisional brasileiro volta a dar sinais claros de sua insustentabilidade. Rebeliões em presídios como o de Alcaçuz, em Natal-RN, e o Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj), em Manaus-AM, evidenciaram, mais uma vez, as enormes deficiências do processo penintenciário do país. Sem reeducação e abarrotados em celas, os detentos se animalizam a cada dia. Há saída? Para a cientista política Ana Maria de Barros, professora do mestrado de Direitos Humanos da Universidade Federal de Pernambuco, é possível pensar, sim, na ressocialização. Entretanto, antes de tentar mudar o preso, é emergencial reestruturar o próprio sistema e as próprias cadeias.  

LeiaJá: Ao longo de seus estudos, voltados ao processo de ressocialização dos presidiários, você trabalha sob a égide de uma "educação penitenciária" como possibilidade de mudança de perspectivas. Ainda é possível pensar este tipo de ressocialização no Brasil ou isso é, como muitos afirmam, utópico?

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Ana Maria de Barros: Em primeiro lugar, precisamos compreender que o sistema penitenciário brasileiro não é voltado para a ressocialização. Nós passamos da ditadura para a democracia; dentro do processo de redemocratização, o sistema prisional não foi repensado. Nossas prisões são herdeiras de toda a cultura da ditadura, de torturas, grandes violações de direitos humanos. É possível, sim, ressocializar, mas é necessário o Estado assumir o sistema. As prisões não são comandadas pelo Estado, mas pelos criminosos. O Brasil tem masmorras medievais onde seres humanos são jogados para viver em condições mínimas de cidadania, higiene. É possível pensar no processo de ressocialização desde que o país apresente uma proposta concreta de política pública que supere a vigente hoje. 

LJ: O preso de hoje é mais difícil de "contornar" e tentar ressocializar do que aquele de 20 anos atrás?

ANB: Hoje a população carcerária é muito jovem e muito grande. Quanto mais jovem é o preso, mais complicado é a internacionalização de normas. O problema carcerário caminha lado a lado com o problema de saúde pública. É urgente refletir sobre o crack. Hoje o moleque, ainda muito novo, tem crise de abstinência lá dentro (das prisões). Há 20 anos, a média era de presos adultos. Esse "novo preso", em geral, já é oriundo de outras unidades, das Funases, já vêm com essas marcas, é mais difícil de ressocializar. Eles têm acesso às armas muito mais facilmente. Então é necessário pensar na educação desse jovem, mas pensar na periferia, na escola pública, na educação integral. Projetar o futuro destes jovens. Com o vazio do Estado, eles são recrutados pelo crime muito cedo. O criminoso chega antes do Estado na vida desses jovens. 

LJ: Uma discussão que é preciso levar em consideração é a arquitetura prisional. O modo como estas unidades são construídas contribuem para essa cultura do crime e reincidência de episódios violentos?

ANB: A arquitetura prisional brasileira é herdeira do modelo bélico português e espanhol, quando velhos mosteiros e conventos eram transformados em prisões. É falha. Nos Estados Unidos, há um outro modelo de penitenciárias, quase feitas em círculo, onde do centro é possível controlar os outros espaços. Mesmo assim, é insuficiente, pois há situações de violência. Não basta vigilância física, é necessário haver vigilância eletrônica. Também é fundamental separar os criminosos por delito. Quem praticou roubo, latrocínio, estelionato, estupro. E ainda tratamos presídio e penitenciária como a mesma coisa; não é bem assim. O presídio é para quem ainda não está cumprindo pena. Penitenciária é para quem já foi julgado. Aqui no Brasil é tudo junto. Então tem que haver intervenção, uma revisão arquitetônica, sim.

LJ: Diante de tanta barbárie, parcela da população brasileira se vê indignada e brada: "bandido bom é bandido morto!". Muitos criticam os direitos humanos. Na sua concepção, isso é fruto de uma visão distorcida do que, de fato, são esses direitos humanos?

ANB: Direitos humanos são todos os direitos inerentes à pessoa humana. À vida, à liberdade, à comunicação; é o direito de ir e vir, de liberdade ideológica, de agora eu estar tendo essa conversa com você. Desde a época da escravização negra, das lutas de classe, violência contra as mulheres, a estrutura penal brasileira serviu para desrespeitar a vida. No período ditatorial, o sistema penitenciário funcionava para matar e fazer desaparecer os presos políticos. Os direitos humanos denunciavam as torturas nesta época. Então essa ideologia que denigre os direitos humanos vem daí. Em 98, a Anistia Internacional publicou um relatório intitulado "Eles nos tratam como animais", sobre o sistema prisional brasileiro. Estamos no século XXI e ainda temos este estado de barbárie. Direitos humanos não é direito de bandido. Agora é repensar o que já deveria ter sido feito há 30 anos. 

LJ: Nas últimas rebeliões, tanto nas redes sociais como na mídia tradicional, vimos uma enxurrada de imagens sobre os massacres. A cobertura da imprensa inflama ou impulsiona estes motins?

ANB: Vivemos numa sociedade do espetáculo. Não só a mídia; os motins acontecem online, transmitidos para os smartphones. Acompanhamos corações sendo arrancados, pessoas violentadas, assassinadas. A crítica que nós fazemos à mídia é ela não dar espaço às boas experiências. Casos que precisam ser apresentados para a população entender. O cidadão comum está muito assustado. Vivemos uma crise na segurança pública em que todos nós temos medo de sair, não sabemos se vamos voltar. É um tema que envolve a sociedade como um todo.

LJ: Podemos vislumbrar um cenário melhor nos próximos anos?

ANB: Como está, não acredito que vá ter grandes mudanças. Daqui a dez, 20 anos, talvez. Nossa classe política é muito corrupta, não querem perder voto e isso interferere na realidade prisional. Acredito que a sociedade civil organizada tem muito mais poder para exigir e conquistar as mudanças necessárias do que as forças políticas tradicionais que aí estão.

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