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Ao telefone, revelando bastante desgaste emocional, Iraci Maria dos Santos diz que tinha esperança no começo. Na última terça-feira (20), quase dois meses depois do desaparecimento do filho, ela ainda tentou contato com ele via WhatsApp. Ele não respondeu. “A mensagem foi enviada, ele só não abriu. Apareceu lá que ele recebeu”, conta.

Na madrugada do dia 24 de agosto, a Polícia Rodoviária Federal em Pernambuco (PRF-PE) postou no Twitter: “RODOVIA BR 101, KM 76, SENT. CRESCENTE, PARCIALMENTE INTERDITADA. LOCALIDADE DE ÁGUA MILAGROSA/PE. CERCA DE 20 MANIFESTANTES. PRF NO LOCAL”. 'Água Milagrosa, é a Vila dos Milagres, comunidade do Ibura, na Zona Sul do Recife.

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Cerca de uma hora depois, outra postagem: “ENCERRADA A INTERDIÇÃO NO KM 75 DA BR 101. Equipe PRF no local auxiliando o retorno do trânsito à normalidade”. Porém, não demorou muito e às 6h32 a PRF voltou a tuítar: “NOVA INTERDIÇÃO: BR 101, km 75, sentido crescente (Recife-Cabo), moradores da comunidade Água Milagrosa. Pneus queimados. PRF em deslocamento”. O protesto foi ficando cada vez mais intenso. No dia seguinte, o ato terminou com um ônibus incendiado.

A manifestação que começou tímida, com cerca de 20 manifestantes, estava relacionada a uma situação até então não resolvida. Naquele dia 24 de agosto já se completavam dois dias do sumiço de Aleff dos Santos Pereira, de 17 anos. Na Vila dos Milagres, todos o conhecem como Neguinho. A quinta-feira, 22 de outubro, marca os dois meses do desaparecimento.

O sumiço de Aleff está repleto de versões, interpretações, discordâncias e incertezas. Contada por Iraci, sua mãe, a história é como um jogo de quebra-cabeças com muitas peças faltando e outras peças querendo ocupar o mesmo espaço no jogo. Tentando descobrir onde seu filho se meteu, Iraci ouviu muita gente e construiu uma versão cheia de remendos. 

Aleff estava morando havia cerca de 15 dias no bairro do Jordão, também na Zona Sul da capital. Tão recente que não deu tempo de chegar o perfume que sua mãe havia pedido no catálogo da Avon antes ainda da mudança. No dia 22 de agosto, dia em que desapareceu, Aleff havia ido buscar o produto na casa da revendedora de cosméticos, no Buracão.

O Buracão é uma comunidade dentro da Vila dos Milagres, com condições sanitárias críticas. Formada, basicamente, por uma ladeira estreita, com casas apertadas à beira de um canal que acompanha todo o percurso. Para ir de um lado a outro da rua, é necessário passar por algumas das pontes improvisadas espalhadas no caminho. Outra moradora, que também prefere não se identificar e participou dos protestos, afirma ter visto Neguinho na manhã daquele dia 22 de agosto, conversando com amigos da comunidade.

O adolescente era conhecido por sua extroversão. Ao conversar com quem o conhecia, a sensação é de que era querido por todos. Naquela data, ele tinha dito a *Maria, moradora do Buracão, que almoçaria na casa dela, mas terminou almoçando na casa de *Lúcia, outra moradora do local. À tarde, segundo Lúcia, Neguinho disse que ia descer para a entrada da comunidade, à margem da BR-101. Ela não voltaria a vê-lo.

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Espancado e levado por supostos policiais

De acordo com moradores, Aleff estaria na margem da BR-101 manuseando seu celular, quando foi abordado por pessoas em um Sandero prata, que o levaram. No protesto do dia 25 de agosto, os manifestantes gritavam que a polícia havia levado Aleff. “Vieram aqui em casa dizer: ‘a polícia pegou Neguinho ali embaixo'”, lembra Lúcia. “Disseram que levaram ele pra casa da prima e arrombaram a porta. Bateram tanto nele... O que o povo fala é que ele saiu da casa praticamente morto”, conclui.

Segundo informações de populares, as pessoas que teriam abordado Neguinho subiram com o menor por uma ladeira paralela ao Buracão, onde é possível o tráfego de carros, e desceram com ele pela ladeira do Buracão até a casa de sua prima, onde forçaram a entrada. Neste percurso, Aleff teria sido duramente espancado.

Maria conta que ouviu gritos do lado de fora da sua casa. “Eu achava que eram meninos brincando de papagaio”, lembra. Ela logo percebeu que havia algo errado quando ouviu vozes raivosas. Morando a poucos metros da casa da prima de Aleff, Maria colocou a cabeça para fora, para saber o que acontecia. De acordo com ela, três homens forçavam entrar na casa, enquanto o menor estava sentado nos degraus, gritando de dor. Ela não consegue ter certeza se o adolescente estava ferido, mas acredita que sim, já que ele se lamentava bastante.

A testemunha viu apenas três homens com Neguinho, mas a maioria dos relatos aponta quatro. Segundo a moradora, eles estariam vestindo camisa social, distintivo da Polícia Civil, e um deles usava balaclava (touca ninja que cobre praticamente todo o rosto, impedindo a identificação). Além disso, de acordo com a senhora, o grupo teria se apresentado como polícia aos populares que presenciaram o acontecido.

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Em busca dos culpados

O grito de protesto contra a polícia, entoado na manifestação do dia 25 de agosto, foi estremecido quando um policial indagou “Vocês pensam que é difícil comprar um distintivo como esse da polícia?”. A dúvida persiste: seriam mesmo policiais os homens que levaram Neguinho? Iraci, mãe de Aleff, ainda suspeita da polícia. O sentimento da população é resumido por Lúcia: "O que a gente teme é a polícia, o senhor acredita? Não é nem a marginalidade do mundo".

Antes do dia em que levaram seu filho, num período de cerca de dois meses, Iraci recebeu três visitas policiais. Na primeira vez, conduziram Aleff à Unidade de Atendimento Inicial (UNIAI) da Fundação de Atendimento Socioeducativo (Funase), por envolvimento com o tráfico de drogas. De acordo com Iraci, os policiais arrombaram a porta de sua casa, quebraram muita coisa dentro da residência e bateram nele na frente das pessoas. O menor passou apenas uma noite na UNIAI, a mãe lembra.

Na vez seguinte, Aleff não estava em casa. Em seu relato, a mãe afirma que nesta ocasião o policial foi bastante educado. Falando “com licença” e “por favor”, pediu para ver alguns documentos e alertou que um suspeito havia informado que Neguinho continuava envolvido com o tráfico.

A terceira visita policial foi completamente diferente. Iraci afirma os policiais procuravam Aleff novamente, mas, como não o encontraram, levaram o irmão do jovem, Alexander, de 19 anos. “Não eram os mesmos policiais”, destaca. Ainda segundo ela, os policiais pediram R$ 3 mil para soltar Alexander, mesmo sem nenhuma acusação contra o mesmo. Iraci conseguiu R$ 2 mil emprestado – dinheiro que paga em parcelas até hoje – e disse ter chorado muito para que os agentes aceitassem o valor. Os policiais marcaram o local de encontro fora da delegacia. “Podem ter sido esses policiais corruptos que pegaram o meu filho”, suspeita.

Sem informações

A delegada Gleide Ângelo, do Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP), que em 2015 investigou e resolveu casos de desaparecimento de bastante repercussão como o da estudante Vaniela e o assassinato da jovem Maria Alice, seria a responsável pelo caso. Como Gleide estava de férias, o caso foi designado em caráter especial para o delegado Cláudio Castro, titular do Grupo de Operações Especiais (GOE).

Iraci reclama que, após depor para o delegado, não teve mais informações sobre o caso. O delegado recomendou que ela fosse até o Instituto de Medicina Legal (IML) de Alagoas, onde cerca de oito corpos estariam lá desde o dia do rapto do seu filho esperando reconhecimento. Ela foi, mas não conseguiu checar.

Conforme Iraci, o delegado de Alagoas disse que o caso era do Recife e ela não tinha autorização para ver os corpos. A doutora responsável por fazer exames de DNA estava ausente no dia. Iraci não tinha dinheiro para passar mais uma noite na cidade. Voltou. 

“A polícia tem tudo em mãos, mas não diz nada. Várias pessoas sumiram e foram encontradas. Uma fazia faculdade de direito, a outra tinha algum diploma ou coisa parecida. Só com Aleff que eu não vejo resultado. Só porque ele já teve envolvimento com droga, mas mesmo assim é um ser humano, já pagou pelo erro dele”, a mãe lamenta.

A mulher não sabe se foi polícia, mas crê que Neguinho tenha sido levado por conta do tráfico de drogas. “Pelo que eu soube, ele foi entregar, vender, alguma droga a eles”, diz, ressaltando que ouviu isso de uma pessoa que teme prestar depoimento à polícia. “Mas eu passei isso tudo pro GOE”, complementa. A tentativa de invadirem a casa da prima de Aleff, portanto, seria para procurar a suposta droga. 

O mistério de quem levou Aleff tem mudado a rotina das pessoas. A família dele, que morava no Buracão e teve a entrada da casa forçada, se mudou. Ingrid, dos produtos da Avon, também se mudou. Alexander deixou a escola e o emprego. Iraci, mesmo tendo deixado a Vila dos Milagres há pouco, se mudou. Ela já havia se mudado para o Jordão para afastar o filho das más influências.

O LeiaJá não conseguiu falar com o delegado Cláudio Castro sobre o andamento das investigações. A assessoria de imprensa da polícia civil informou que ele só se posicionará sobre o caso quando finalizar as investigações.

Iraci, que já se diz sem esperanças, continua esperando a resposta no WhatsApp.

*Os nomes foram trocados para preservar a identidade

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