Tópicos | Panfúcio

 

Colégio Padre Félix (saudade!), primeiro dia de aula, ano de 1958, o bedel fez a chamada para identificar os alunos. Era uma apresentação coletiva. “Pafúncio Ramirez”! Curiosidade silenciosa e sacana à espera do detentor de nome tão bizarro. Timidamente, o corpo, magérrimo e banhado por uma palidez enfermiça, ergueu-se lentamente e com o indicador em riste balbuciou o quase inaudível “preseeeente”.

 

Adolescentes impiedosos esboçariam o urro de sarcasmo não fora a cara, preventivamente, ameaçadora do experiente bedel. Restaram sibilantes sussurros, contendo risos de mofa. O pobre coitado acabara de ser nomeado vítima preferencial das almas sebosas.

 

Não demorou. A mórbida curiosidade logo foi satisfeita: Pafúncio era filho único de Dr. Euprépio Ramirez, falecido, havia um ano. Deixara viúva dona Zorilda Francisca Ramirez e, uma pensão razoável do IAPI, complementada pela escola particular da respeitada Professora Zorinha cujos alunos eram campeões nos exames de admissão dos mais famosos colégios do Recife.

 

Fervorosa beata, era toda cuidados com os estudos e, sobretudo, com a saúde de Pafúncio, coroinha da igreja da Soledade, pertinho do sobrado da Rua do Sossego. No térreo, funcionavam as salas de aula e o andar de cima servia de acolhedora residência. Pafúncio, para completar o orgulho materno, fazia parte do coro da Igreja.

 

Pafúncio era tão tímido, tão indefeso, tão aplicado nos estudos, tão leso que, mesmo contrariando os padrões dos meninos endiabrados, sua pureza assegurou-lhe sossego, respeito e certa admiração.

 

A gente sabia que D. Zorinha protegia Pafúncio de vento encanado; antes de dormir, untava de vickvaporub o peito do menino para evitar “puxado” (acesso de asma); o sereno era um veneno tanto que, às cinco da tarde, retornava ao calor do lar; praticar qualquer esporte era um sacrilégio (uma vez “desmentiu” o punho e usou a semana inteira "Emplastro de Sabiá"); tomava fortificantes famosos como “Óleo de Fígado de Bacalhau”, “Biotônico Fontoura” e, para o funcionamento correto dos intestinos, engolia, estoicamente, colheradas do imtragável “Óleo de Rícino”.

 

Futebol, nem pensar. O pai era torcedor do Auto Esporte, um Íbis de curta existência, por conta do xará Euprépio, um zagueiro especialista em botinadas. Levou Pafúncio ao estádio. Perdeu de 8x0 para o América. Para Pafúncio, futebol nunca mais, exceto quando “a pátria de chuteiras” entra em campo.

 

Eis Pafúncio, adulto. Celibatário. Macho. Casto(?). Mistério. Parte dos amigos achava que ele (ainda) é virgem: outra parte desconfia que, em matéria de sexo, era um Tartufo e, segundo rumores, proprietário de um apartamento no Edifício Continental (garçonière) onde mantinha secretos encontros amorosos.

 

Funcionário público concursado e, hoje, aos setenta anos, aposentado, jamais teve dificuldades financeiras. Tudo regrado. Tem uma poupança milionária destinada por testamento a uma congregação religiosa, atendendo à caridosa mãezinha. Aos noventa e três anos, Dona Zorinha, lúcida, saudável, candidata séria ao centenário, recebe todo afeto e dedicação do filho exemplar. Hoje moram numa confortável chácara em Aldeia.

 

Pafúncio tem quatro passatempos preferidos: leu e releu 522 vezes a coleção de gibis e todos os números das revistas “Tico-Tico”e “O Cruzeiro”; lê bulas de remédios, em especial, novidades sobre doenças sistêmicas; planta os alimentos que consome; diariamente compra os jornais para dar uma olhada no necrológio e só.

 

Todo Natal vou visitá-los. Reviver a alegria para contrastar com os encontros fúnebres cada vez mais frequentes (Pafúncio compareceu durante 25 anos à celebração de missa de um amigo). E não resisti: “Bicho, que história é essa de ler bula de remédios e comer o que planta”? “Guga, foi curto e grosso, eu sou meu próprio médico. Não tenho plano de saúde. Tenho pavor a estetoscópio. E não morrerei pela boca, envenenado pelas pesquisas mutantes sobre ovo, chocolate, carboidratos, frutas, legumes que ora, dizem, fazem bem; ora, dizem, fazem mal”.

 

Saí de lá e fui ouvir um doutor de cabeça e a outro que manja de nutrição. “Seu amigo, ambos disseram, é hipocondríaco. Tem doenças imaginárias. Isto se chama também nosomania”. O outro sentenciou: “Sofre de fagofobia. Medo de comer”.

 

Não sei quem tem razão. Mas se Doutor Freud conhecesse Pafúncio diria que, embora tenha “casado” com a mãe, Pafúncio é um caso raro de sanidade mental.

 

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