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Os enfeites postos anunciam que o período natalino chegou e como um bom protetor da tradições, Fábio sempre opta pelo vermelho. Foto: Rafael Bandeira/LeiaJáImagens

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Cuidadosamente, os bonecos encontrados nas ruas são realocados em cima de um móvel coberto por pedaços de grama sintética. Com algumas referências bíblicas, um presépio diferente, mas igualmente acolhedor começa a ganhar vida. Nas paredes da casa, laços vermelhos, espumas reutilizadas de travesseiros e colchões velhos, tecidos e plásticos coloridos são ornamentados de modo que toda as paredes fiquem enfeitadas, em diferentes ângulos. Pelo menos uma vez por ano, a casa onde vive Fábio Bento, conhecido pelos amigos como Magão, 36, muda completamente de aparência.

Os enfeites postos anunciam que o período natalino chegou e como um bom protetor da tradições, Fábio sempre opta pelos detalhes no tom do vermelho mais vivo que encontrar pelas ruas. Todo o material da ornamentação para o Natal é reciclável e muitos deles são doados por amigos, que conhecem a relação do Magão com o fim do ano e a felicidade por ter um teto para morar, pelo menos por enquanto. Fábio vive há pouco mais de dois anos na ocupação Sítio dos Pescadores, localizada na comunidade do Bode, na Zona Sul do Recife.

Junto a ele, um total de 35 famílias também habitam o local. São casas feitas com madeira, muitas improvisadas de um só vão, já outras construídas com alvenaria são mais arriscadas. Isso porque o terreno no qual a ocupação se encontra pertence ao município do Recife e já possui um projeto para ser implementada uma escola pública no local.

A ocupação teve início no dia 16 de março de 2016 e Magão logo ganhou uma moradia. Atualmente, ele, que nunca trabalhou formalmente com carteira assinada por falta de oportunidades, se considera um profissional “faz tudo”. Garante que sabe fazer uma boa faxina, é auxiliar de cabeleireiro e realiza outros bicos. Ele nasceu e foi criado nas palafitas do Pina, bairro da Zona Sul do Recife, mas em 2016 passou por um dos momentos mais desesperadores de sua vida.

Apaixonado pelas cores do Natal desde criança, o cabeleireiro sempre sonhou em fazer como nos filmes de Hollywood. Foto: Rafael Bandeira/LeiaJáImagens

Ele morava com um tio e uma sobrinha deficiente em uma casa simples, mas que representava muito. Após uns aos, a garota foi morar em um abrigo e o tio piorou na dependência do álcool. “Um dia ele jogou um góia do cigarro no chão, nem percebeu. Deu um vacilo grande”, relembra entristecido Magão. Em pouco tempo, tudo já tinha virado cinzas. “Teu barraco está pegando fogo, tesá pegando fogo”, as pessoas gritavam. Magão conta que perdeu tudo, desde os documentos até as memórias físicas do local.

Meses depois conseguiu ajuda através do Programa Atitude, de Atenção Integral aos Usuários de Drogas e seus Familiares, voltado para o atendimento a usuários de drogas e redução de danos. “Consegui temporariamente um local para morar e comer, não tinha nada, nem roupa”, conta.

Ao entrar na comunidade do Sítio dos Pescadores, a primeira casa a ser avistada é a de Magão. Ela já chama atenção pelos enfeites em alusão ao Natal no muro de entrada. Ele conta que o espírito natalino não pode se abater pelos percalços que enfrenta no medo de perder o seu lar, porque a data representa um momento importante.

Apaixonado pelas cores do Natal desde criança, o cabeleireiro sempre sonhou em fazer como nos filmes de Hollywood. “Queria aquele presépio belíssimo todo iluminado de encher os olhos de todos, o Natal é isso, felicidade, alegria, amor e muita luz”, diz. Mas, o que faz a data se tornar ainda mais saudosa é que o dia 24 também representa a data em que perdeu a mãe, há 16 anos. “Ela partiu exatamente na véspera de Natal e para eu não ficar triste lembrando disso, tento colorir a minha vida do jeito que posso, mesmo sem luxo”, complementa.

Ele conta que o espírito natalino não pode se abater pelos percalços que enfrenta no medo de perder o seu lar. Foto: Rafael Bandeira/LeiaJáImagens

O local que Fábio vive é pequeno e composto em sala e quarto em um só vão. Vaidoso, ele deixa a cama cheia de jóias e bijuterias que ganhou de um amigo. Na sala, a árvore de Natal feita com materiais reciclados chama atenção de quem entra na casa dele, que não possui fogão e nem geladeira. “Eu como na casa dos amigos, compro coisas prontas, não caberia aqui e também não tenho condições de comprar um”, afirma. Para concluir a ornamentação do Natal, ele destaca que está faltando um dos principais objetos: o pisca pisca. “Só queria mais isso, vamos vê se eu vou conseguir. Já pedi a algumas pessoas e todo mundo só faz prometer, vai passar o Natal e não coloco a luz”, menciona dando algumas gargalhadas esperançosas de quem vai ganhar.

Na tradição ocidental, o papai noel é um dos personagens mais importantes nessa época do ano. É o velhinho que faz a alegria das crianças ao levar os presentes na véspera de Natal. Magão já não mais crê nessa tradição natalina, mas apesar das dificuldades, ainda acredita na Justiça e no direito de ter uma propriedade para viver sua vida como presente de Natal. “Luto por moradia desde que me entendo por gente. Sempre com aquele medo de que tanto faz a gente está conversando aqui e de uma hora para outra, ser colocado para fora a força da casa e não saber para onde ir”, lamenta. Ele mora com um sobrinho de 18 anos e possui a tutela do garoto. “A maioria da minha família já faleceu, eu tenho três sobrinhos que me restaram para aproveitar o resto da vida”.

Ansioso para a chegada do dia 24, ele já fez sua programação, que pode ser alterada dependendo se surgir um convite melhor. Durante o dia, já foi chamado para fazer vários cabelos na comunidade. “As pessoas gostam do meu trabalho aqui, sou bom no que faço”, diz. Mas, ele já adianta que quando der a sua hora, vai meter o pé no mundo para aproveitar a melhor época do ano e pedir por mais paz no mundo, principalmente. “A noite vou me encontrar com os meus amigos aqui pela região mesmo, talvez fazer amigo secreto, confraternizar, comer um churrasco”.

Em 2018, o déficit habitacional em Pernambuco é de 285 mil unidades, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad). Outro problema é o número alto de pessoas que vivem em moradias inadequadas e sem saneamento básico. Dados do  Instituto Brasileiro de Geografia Estatística (IBGE) revelam que quase metade da população pernambucana é refém dessa falta de infraestrutura.

Sem muita renda, com pouca perspectiva de melhoria no futuro e com a incerteza de ter uma moradia digna e própria um dia, Magão ainda resiste e bate o pé ao falar que toda a comunidade deveria enfeitar sua casa. Mas, no Sítio dos Pescadores, são poucos que, por diversos motivos, procuram se apegar aos enfeites.

Um dos poucos que decidiu ornamentar a casa, o zelador Jobson explica que se as outras pessoas também tivessem mais condições financeiras, enfeitariam bem melhor e comprariam árvores de Natal. Foto: Rafael Bandeira/LeiaJáImagens

O zelador Jobson Carlos, 26, mora a poucos metros de Magão e com um dinheiro extra que recebeu, conseguiu comprar um pisca-pisca para colocar no muro de entrada da sua casa. Ele conta que cresceu morando com o pai e a mãe, mas assim que saiu de casa foi residir na ocupação do Sítio dos Pescadores. “O sonho de ter uma casa vai aumentando, todo mundo quer ter seu espaço e encontrei o meu há dois anos”, detalha Jobson sobre como foi morar na comunidade.

Um dos poucos que decidiu ornamentar a casa, ele explica que se as outras pessoas também tivessem mais condições financeiras, enfeitariam bem melhor e comprariam árvores de Natal. Mas, a situação de incerteza, o desemprego, a falta de oportunidades e a não perspectiva de melhorias afastam cada vez mais seus vizinhos desse apego à ornamentação natalina. “Desde pequeno eu acho bonito colocar luzes, celebrar essa data tão importante, queria fazer isso um dia também e mesmo que seja uma ocupação, temos que viver, somos gente”, conta Jobson que descreve como será sua festa natalina. “Minha família vai vir para o meu terreno, vamos ouvir música, conversar e comer um churrasquinho”, expõe.

Ana Karla, 23, a coordenadora da ocupação do Sítio dos Pescadores e integrante do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), relata que os problemas na ocupação são muitos, falta energia elétrica, água encanada, saneamento básico, assim como em outras ocupações. “Mas a gente tem dado um jeito em todas as questões porque temos que passar por isso, a ocupação hoje só existe porque há déficit habitacional em toda a cidade e isso nos leva a ocupar esses terrenos abandonados”, explica.

Karla é a coordenadora da ocupação do Sítio dos Pescadores e integrante do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST). Foto: Rafael Bandeira/LeiaJáImagens

Ela aponta que desde o começo, a ameaça de sair do local é constante e que o terreno deverá ser uma escola, de fato. “Mas como a gente participa das reuniões e negociações, combinamos que só sairíamos com duas condições, a primeira é que a verba para o colégio seja entregue para que a obra comece, e a outra é que eles precisam nos realocar para outra moradia”, destaca Karla. Para ela, eles estão ocupando um espaço e propondo um uso social de um local abandonado. “Quando a gente chegou aqui só tinha lixo, entulho e mato”, relembra.

A ocupação se encontra em uma área Zona Especial de Interesse Social (Zeis) e deveria servir a políticas públicas de moradia e regularização fundiária. É o que pensam os moradores. Para Karla, o medo de dormir e não saber se irá acordar sendo despejada é a pior angústia que poderia sentir. “Outras ocupações, mesmo com negociações, já foram destruídas, e por isso, temos esse receio de perder tudo que estamos construindo”, lamenta.

À noite, ao passar pelo local, as luzes coloridas chamam atenção dos pedestres e motoristas. Foto: Rafael Bandeira/LeiaJáImagens

Na Zona Oeste do Recife, no bairro da Iputinga, um morador, que preferiu não se identificar para a reportagem, também decidiu gastar um dinheiro a mais e enfeitar a sua casa para esperar a chegada do Natal. Ele vive na 'Ocupação Vitória para Cristo', que fica localizada na Avenida Maurício de Nassau. À noite, ao passar pelo local, as luzes coloridas chamam atenção dos pedestres e motoristas. Na escuridão, o brilho dos piscas se destacam e dão uma nova vida ao local.

“Eu sempre gostei muito do Natal, é o nascimento de Jesus Cristo, podemos até ter falhas, mas ele está presente em nossas vidas. Morei em muitos cantos em toda minha vida e sempre achei bonita esses enfeites, pelo pouco que eu tenho, gosto de ter organização. As pessoas passam, olham e admiram pela beleza de tudo que eu faço. Gosto mesmo é de enfeitar tudo”, celebra o morador.

Ele se mudou para a ocupação há três anos, mas a tradição é longa e o acompanha por todas as casas que já morou. Assim como em outras ocupações, Marcos*, nome fictício, vive a realidade das incertezas. “Aqui na favela moram umas trinta famílias, eu acho. A gente não sabe de quem é esse terreno, dizem que é da Marinha, outros dizem que é do Estado. Era para ser um teatro e tem até a estrutura das arquibancadas montada”, conta. Com o abandono da obra, as famílias avistaram no terreno um local para habitar.

Há cerca de seis anos, algumas pessoas começaram a construir suas casas se aproveitando da estrutura de concreto que já estava por lá. “A gente mora aqui, mas sempre com aquele medo acontecer alguma coisa ruim. Estamos aqui porque precisamos e sem dúvida se tivesse um lugar melhor, eu sairia na hora. Não consigo ajeitar minha casa, enfeitar mais, fazer tudo que gosto porque tenho medo de gastar meu trocado e chegar alguém aqui para derrubar tudo, é difícil”, narra.

Neste Natal, Marcos não quer pedir muito. Ele afirma que já tem o principal que é saúde para trabalhar com reciclagem pelas ruas, mas possuir uma casa sua seria o melhor presente que poderia ter. “Pelo menos quatro paredes e o resto eu organizaria. Queria algo meu porque eu poderia cuidar e construir. Imagina eu morar numa casa e colocar uma árvore de natal daquelas de cinco metros, seria um sonho, mas por enquanto tô acordado e atento”, pontua o morador, que espera ter um Natal tranquilo ao lado da família na ocupação.

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