Tópicos | Lei 10.639

Por Elaine Guimarães e Mariana Ramos
Produção: Maya Santos

Aprovada com o objetivo de resgatar "a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil", a Lei 10.639 completou 20 anos em janeiro de 2023. Trechos da normativa especificam as temáticas que devem ser abordadas obrigatoriamente nas escolas públicas e privadas do Brasil em todo currículo escolar, em específico, nas disciplinas de artes e literatura e história brasileiras.

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Apesar de duas décadas de existência, a historiadora e professora de história da África da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Valéria Costa, observa que há uma interpretação errônea da Lei, no que se refere a restringi-la a algumas áreas do conhecimento.

“Tem-se um entendimento distorcido. A Lei diz que tem que abarcar todas as áreas do conhecimento, mas, algumas disciplinas ficaram de ‘abre alas’. Veja, ficar ‘abre alas’ não significa que é apenas uma obrigatoriedade dessas disciplinas, ou seja, as demais áreas também têm a obrigatoriedade. Essa incompreensão acabou fazendo com que as disciplina das áreas das ciências naturais e exatas não incorporassem de imediato essa empreitada.”

Para além de projetos aplicados nas instituições e abordagens de tais temas em datas como 13 de maio [Abolição da Escravatura no Brasil] e 20 de dezembro [Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra], a presença desses conteúdos em sala de aula contribuem para a construção de uma sociedade antirracista e reconhecimento da população negra na construção do país.

No entanto, o que é previsto por lei, muitas vezes, é deixado de fora da sala de aula. Para Valéria Costa, o que explica a ausência das temáticas prevista na normativa do ambiente escolar é o racismo. “A construção do racismo, que é historicamente elaborada, nega a produção de conhecimento da África e dos africanos em diáspora. Então, o racismo se fortaleceu, dentro da perspectiva ideológica, inferiorizando, necrosando e anulando o outro, que é o africano e descendentes”.

Uma escola eurocêntrica

À reportagem, a docente da UFPE ressalta que os currículos escolares ainda são pautados pelo eurocentrismos, ou seja, a Europa como centro da história e construção da sociedade moderna. “Quando a escola é pautada nesse eurocentrismo esse racismo epistemológico aparece negando que a África tem uma produção de matemática, de biologia, medicina".

Valéria Costa destaca que o processo até a implementação da diretriz nas escolas foi de iniciativa do movimento negro. "A Lei é uma luta antiga do movimento. Ela é muito marcada por uma trajetória de luta histórica do movimento negro, logo, quem batalhou e continuou trazendo essa discussão para a sala de aula fomos nós, professores negros, ativistas e os não negros que têm uma bandeira para defender essa causa".

A formação acadêmica dos professores

Um dos motivos que inviabilizam a consolidação da Lei 10.639 na Educação básica perpassa pela formação dos professores. Nessa perspectiva, a historiadora explica que muitos docentes relatam que não tiveram acesso a esses conteúdos durante a formação acadêmica. “As universidades são estruturadas dentro de um princípio europeu e judaico-cristão. Reitor, pró-reitor são posições, é uma titulação eclesiástica. Logo, a gente esbarra novamente no racismo”.

Valéria Costa relembra que a disciplina que leciona na UFPE, história da África, iniciou na instituição como eletiva, mas, em 2022, passou a ser obrigatória. O que para a docente representou uma avanço. "Isso vem se dando muito lentamente. Em todas as federais, a disciplina de história da África já existe como obrigatória, mas ainda são poucas [universidade] que ofertam a disciplina de relações étnicos-raciais como obrigatória porque ainda não se dá o devido valor". 

SEE reconhece que a Educação antirracista no Estado ainda é tímido

A Secretaria de Educação de Pernambuco (SEE-PE) reconhece que o trabalho no ensino antirracista no estado ainda não alcançou todas as escolas, mas está no trabalho para alcançar esta meta. Lilian Conceição, professora e representante da SEE-PE, afirma que a lei foi uma vitória necessária, mas ela sozinha não assegura uma mudança na cultura racista do país.

“A lei vem, primeiro, para fazer com que o Estado assuma que a educação que vinha implementando até então era racista. (...) Nós precisamos superar o que, infelizmente ainda se encontra em muitas situações, que é falar deste tema do racismo apenas no 20 de novembro e, às vezes, no 13 de maio. É pensar de que modo possamos transversalizar [os conteúdos]”, detalha a profissional.

Lilian explica que a SEE de Pernambuco trabalha na educação antirracista através da adesão de novos materiais didáticos, por parcerias com bibliotecas, do currículo atravessado e transversal e da formação continuada dos professores e gestores da rede estadual. Estas iniciativas procuram preparar o ambiente escolar e os conteúdos para incidir uma educação mais completa dentro das salas de aula.

Muito além do senso comum

Há 11 anos, Walter Nascimento Jr. é professor de história. Ele conta ao LeiaJá como o estudo sobre a história e cultura afro-brasileira reflete na sociedade. "Eu, particularmente, sentia muita dificuldade de entender como são essas raízes históricas e a contribuição do povo preto no Brasil. Isso é muito importante porque como você vai sentir orgulho de algo que você não conhece? E é a partir dessa falta de conhecimento também que surge o preconceito", ressalta.

Para Walter, não basta apresentar o senso comum nas escolas, com temáticas como samba ou capoeira. Estes são importantes, sim, mas desmistificar a história também é de extrema importância. Apresentar a cultura afro-brasileira, conhecimento e contribuição matemática do povo preto, participação política e literária na história do Brasil são assuntos essenciais de acordo com o docente.

O professor Walter Nascimento Jr em sala de aula. Foto: João Velozo/LeiaJáImagens/Arquivo

“Um dos maiores impactos que a gente tem na hora de aplicar a lei é com os docentes, muitos professores não têm a formação necessária. Tanto que o ensino de história e cultura afro-brasileira, muitas vezes, a nível superior, aparece como um curso de pós-graduação e poucas vezes como disciplina obrigatória dentro do currículo do ensino superior”, diz Walter.

Segundo o historiador, há, ainda, muitos docentes preconceituosos que dificultam o trabalho de conhecimento e aproximação da cultura preta dentro da sala de aula. Além disso, ele cita que, durante seu tempo lecionando em escolas, era preciso ter cuidado com a abordagem de determinados temas, pois, a forma que isso chegaria aos pais poderia não agradar. “Como sabemos que existe o preconceito, tinha que trabalhar de forma cuidadosa", pondera.

Walter Nascimento Jr. Foto: João Velozo/LeiaJáImagens/Arquivo

Walter também destaca a dificuldade de encontrar estudos, principalmente vídeos sobre o tema. “É difícil, enquanto docente, porque a gente não tem tanto material didático. Não é uma coisa tão simples você ter estudiosos sobre o continente africano, sobre a história matriz afro-brasileira, que consiga escrever sem estar reproduzindo determinados preconceitos ou senso comum", expõe.

Em contraponto, o professor fala que a Lei 10.639 vai além da questão conteudística e trabalha toda a relação do discente com a sociedade. Orgulhoso, Walter Nascimento Jr. conta sobre como seus alunos foram tocados dentro de sala de aula. “A Lei tem um impacto muito positivo nos estudantes na criação de um reforço identitário. Hoje, os alunos não têm vergonhas de serem negros. Hoje, a representatividade se mostrou importante. Preto? Sou sim, tenho orgulho. Porque ele sabe quais são suas raízes, isso é muito importante, também, na questão de identificação profissional.”

Após 20 anos da lei, Walter acredita que algumas mudanças estão acontecendo, como um “trabalho de formiguinha”, mas que nada adianta ter a legislação na prática pedagógica, se não há esforços para mudar a realidade preconceituosa brasileira. “Antes da gente ter mudanças significativas na forma da lei, é preciso que a gente trabalhe primeiro como a sociedade está pensando”, observa.

Para além dos muros da escola

Assim como Walter Nascimento, a educadora, mãe e artista Kemla Baptista não teve contato com o tema durante a fase escolar. “Eu aprendi tudo em família, que é formada por educadores. A temática era frequente na mesa do café da manhã, almoço e jantar. Parece mentira, mas desde criança que eu me reconheço como pessoa preta”, conta à reportagem.

Filha de professora, Kemla relembra de uma ação promovida pela mãe na época de docência para que a história e cultura africana e afro-brasileira fosse contemplada durante um desfile cívico e como o preconceito ainda está presente diante de tudo que se refere à cultura negra:

Das duas décadas da Lei 10.639, Kemla Baptista dedicou 15 anos ao projeto Caçando Estórias mesmo sem patrocínio ou grandes incentivos. A iniciativa compartilha saberes ancestrais, por meio de contação de estórias, literatura, audiovisual, criação de conteúdo para a internet, teatro de objetos, música e dança. “O Caçando Estórias não é um instrumento para que a branquitude use como se fosse um dicionário do que não fazer”, salienta. 

Kemla Baptista com a filha Ayódele Baptista (à esquerda). Fotos: Elaine Guimarães/LeiaJáImagens

Das atividades desenvolvidas pela educadora e artista está a Casa do Ofá, primeira casa em Pernambuco voltada à Educação antirracista. “Das várias ações de caçar estórias é ter uma casa, uma sede, um espaço físico. É um desejo que eu tinha há muito tempo. Passei por muitos desafios, como todo mundo, durante a pandemia [Covid-19]. Lidar com cultura nesse período e com Educação, que foi completamente dilacerada no Brasil e ter um trabalho que fala de cultura e Educação antirracista é pedir para enlouquecer”, ressalta.

Para Kemla Baptista, 2023 é um ano crucial e, por isso, é necessário que as instituições de ensino, sejam elas púbicas, privadas, da Educação básica ou superior, se posicionem. "Acho que já ficou cafona a pessoa dizer que não sabia, que não tinha conhecimento, que nunca ouviu falar".

Que tal brincar de bica bidom? A brincadeira vem de Angola e até lembra o nosso esconde-esconde, mas guarda conexões ainda mais importantes do que as regras do jogo. O Catálogo de Jogos e Brincadeiras Africanas e Afro-brasileiras é um das iniciativas que buscam contribuir com uma educação para as relações étnico-raciais.

Nesta semana, no dia 9 de janeiro, a Lei 10.639, que incluiu oficialmente nos currículos escolares o ensino de história e cultura afro-brasileiras, completou 20 anos. A Agência Brasil conversou com especialistas e educadores que destacam avanços e a necessidade de monitorar a implementação da lei.

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Entre as entrevistadas, há o consenso de que a lei, em si, já é um importante avanço, inclusive por ser uma demanda do movimento social negro. “A formação do docente, o processo de alteração dos livros didáticos, os livros paradidáticos, hoje em dia, eu vejo esse movimento de literatura infantojuvenil que vem protagonizando com personagens negros e com a história de forma positiva da população negra. Esses são pontos que me fazem olhar com muita alegria mesmo, pensando a lei”, afirma Juliana Yade, especialista em educação do Itaú Social.

Neli Edite dos Santos, professora da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) e organizadora do livro Construindo uma Educação Antirracista: Reflexões, Afetos e Experiências, diz que, apesar de observar entraves para a implementação da lei, reconhece que esta é uma questão que expõe questões enraizadas na sociedade. “Estamos lidando com o nosso escravismo, com a nossa colonialidade, com as hierarquias étnico-raciais, com o mito de democracia racial que tanto mal fez e faz ao país. Entendo que o movimento antirracista e o movimento antirracista na educação, por si, já é produto dessas leis.”

Para a pesquisadora Givânia Silva, da Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (Conaq), é preciso lembrar que a Lei 10.639, na verdade, é uma alteração da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB). “É a lei maior da educação no Brasil”, ressalta Givânia. Para ela, cabe ao Ministério da Educação a indução de políticas e ferramentas de apoio, mas também a cobrança das redes municipais e estaduais. “Caso isso não aconteça, não tem outro jeito a não ser a gente recorrer aos órgãos de fiscalização.”

O tópico sobre Igualdade Racial, do Relatório Final do Governo de Transição, avalia que houve “ausência de acompanhamento, monitoramento e avaliação da Lei sobre o Ensino da História e Cultura Afro-brasileira e Indígena (10.639/03 – 11.645/08)”.

Juliana concorda que esse monitoramento é um dos aspectos fundamentais para avançar na implementação da lei. “Estamos falando de fortalecimento das identidades e dos direitos dos afrodescendentes, dos indígenas, de ser e estar e aprender nessa escola que forma, e que não pode mais formar, a favor do racismo. Estamos falando também de ações educativas de combate ao racismo e às discriminações. A implementação da lei e esse monitoramento vão ajudar a entender como e em que pé está cada um desses processos nos estados e municípios.”

Entraves

Balanços anteriores da lei apontavam, por exemplo, deficiências na produção de livros didáticos. E este é um dos aspectos em que se considera que houve avanço. Por outro lado, limitar as ações curriculares sobre relações étnico-raciais a datas de referência, como o Dia da Abolição da Escravatura e o Dia da Consciência Negra, são situações ainda observadas nas escolas.

Juliana enfatiza que também precisa ser superada a leitura discriminatória sobre as narrativas míticas africanas. “Por conta dessa falsa moral, os professores se apegaram muito a essa questão da moralidade, em uma tradução simplista de que falar da lei é tratar de religiosidade de matriz africana dentro da escola.”Para ela, o currículo tem vieses e, por isso mesmo, há muitos anos carrega um viés eurocêntrico.

Givânia acredita que a não implementação deste aspecto da LDB resulta de uma “miopia” da sociedade brasileira, que se nega a olhar para as questões de raça. “A gente só vai diminuir as desigualdades se diminuir e combater esse racismo estruturado em nossa sociedade. Como é que nós vamos diminuir esse racismo? Com formação, com educação e que se formem novos gestores”, afirma.

Iniciativas

O Catálogo de Jogos e Brincadeiras Africanas e Afro-brasileiras, que abriu esta reportagem, percorre o universo lúdico de sete países: Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Guiné Equatorial, Moçambique e São Tomé e Príncipe. Eles fazem parte da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), campus Malês, que fica em São Francisco do Conde, na Bahia. A pesquisa surgiu com a ideia de elaborar um material que consonância com a Lei 10.639, especialmente com as crianças da educação infantil.

Segundo a pesquisadora Míghian Danae, uma das organizadoras do catálogo, a adesão às brincadeiras, tanto do público de educadores quanto de crianças é quase instantânea. “A proposta é de uma conexão, ou de uma reconexão, com esse lugar de pertencimento e também da promoção da educação das relações étnico-raciais.” A pesquisadora destaca que os pequenos se sentem integrados à produção de conhecimento, por terem atividades corriqueiras do dia a dia reconhecidas no ambiente escolar.

Embora não tenha sido o objetivo inicial da pesquisa de jogos e brincadeiras, Míghian lembra que outras reflexões surgiram a partir do material coletado e novas produções acadêmicas estão em curso. “[Observamos] brincadeiras parecidas, e sempre vão ser parecidas, nunca vão ser iguais, porque estamos falando de países diferentes. Sempre diferentes. Mas a raiz é a mesma, a diáspora, que chegou até a gente por esse processo tão violento que foi a colonização.”

O catálogo foi incluído no Edital Equidade Racial na Educação Básica, que apoiou pesquisas aplicadas e outros trabalhos que apontassem soluções para os desafios da construção da equidade racial nas escolas do país. A iniciativa conta com o apoio do Itaú Social, Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades, da Fundação Tide Setubal, do Instituto Unibanco e do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef).

Outra pesquisa contemplada pelo edital foi coordenada por Neli Edite dos Santos. No livro Construindo uma Educação Antirracista: Reflexões, Afetos e Experiências, organizado por Neli, os educadores encontram uma coletânea de diversos autores sobre o racismo estrutural no ambiente escolar e estratégias de resistência. A obra traz práticas educativas bem-sucedidas, além de relatos, poemas e artigos científicos.

No âmbito do edital, Neli desenvolveu o projeto “Construindo uma educação antirracista: ingresso e permanência de cotistas na educação básica”, na Escola de Educação Básica da UFU. Nesta iniciativa, foram usadas estratégias de diálogo com professores, pais e responsáveis, além das crianças, também da educação infantil.

“Nós apostamos na música, na contação de histórias, no teatro, no desenho e na dança e, por meio dessas expressões artísticas, trouxemos elementos de valorização das culturas negra e indígena, de modo que essas crianças tivessem o seu olhar ampliado para estéticas, corporeidades, para instrumentos musicais, para sons, para narrativas que ampliassem o repertório delas, para além do chamado eurocentrismo”, acrescenta a pesquisadora.

Em uma das atividades, os estudantes, de 4 a 5 anos, foram estimulados a refletir, a partir de giz de cera com 12 cores de tons de pele. “A gente traz para a perspectiva pedagógica algo que esteja ao alcance daquela faixa etária, algo que também vai acionar a família e permitir que essa família se olhe do ponto de vista étnico-racial. Olhe para si. Quem nós somos?”, questiona.

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