Tópicos | Mulheres na música

Conhecido como uma música de crítica social e mensagem acerca da dura realidade das periferias, o rap tem grandes representantes brasileiros. Racionais MC's; G.O.G.; Dexter; Sabotage; Emicida; todos homens. Da mesma forma, o trap e o brega funk são estilos que priorizam a diversão e incitam a sensualidade e já têm um leque de representantes de peso. Os trappers Chris MC, Matuê e Sidoka, e os bregueiros Dadá Boladão, MC Troia e Shevchenko e Elloco, são alguns exemplos de sucesso. E também homens. Mas esse cenário está mudando. A presença feminina, de discurso empoderado, é cada vez maior nessas cenas que, antigamente, eram majoritariamente dominadas por artistas masculinos.

As 'manas' também querem cantar sua realidade, além de fazerem questão de reivindicar o direito de ocupar os espaços, se divertir e, por que não, rebolar sem a necessidade de prestar contas ou pedir permissão a ninguém. Sendo assim, elas estão levantando suas vozes e fazendo música de qualidade que está atraindo um público igualmente crescente, ao passo que se multiplica o número de artistas mulheres no rap, trap e brega funk. 

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Foi a partir de uma situação de assédio que Rayssa Dias, de 24 anos, moradora de Salgadinho, em Olinda, decidiu criar o brega funk empoderado. Ao testemunhar uma amiga sendo apalpada durante uma festa, ela resolveu que usaria sua voz para exigir respeito no 'rolê' e fora dele também. "A gente estava numa casa de show e lá no evento um cara meteu a mão na bunda da minha amiga. A justificativa dele foi que tinha sido por conta da música. Aquilo mexeu comigo, eu disse: 'caramba, eu como cantora e poeta que faz parte da militância, isso acontece na minha frente e eu não vou poder fazer nada?'. Fiquei tão revoltada que no dia seguinte fiz uma música sobre isso".

Rayssa Dias é a criadora do brega funk empoderado. Foto: Rafael Bandeira/LeiaJáImagens

Nos versos da música em questão, batizada de 'Fica na Tua' e gravada em parceria com a rapper Lady Laay, Rayssa é direta: "Quando eu chegar no baile, sentando e quicando, tu fica na tua! Se tu não respeitar, a idéia é uma só, tarado aqui no baile, nós passa o cerol". A cantora, na correria para fazer sua carreira acontecer desde os 12 anos, tendo passado pelo coral de uma igreja evangélica, bandas de brega romântico e batalhas de poesia, explica sua composição: "Quando a gente é mulher, a gente tem essa dificuldade de ser respeitada nos ambientes que a gente frequenta. O brega é um meio muito machista, até porque é dominado por homens, tem esse lado pejorativo que explora a sexualidade. As meninas querem rebolar a bunda, mas elas querem ser respeitadas".

A parceira de Rayssa em 'Fica na Tua', Lady Laay, sabe bem o que é abrir espaço para fazer seu ‘trampo’. MC, Bgirl e grafiteira, ela vem desde 2012 lutando para ser ouvida e respeitada no meio do hip hop. A estrada, de lá até cá, ensinou a Laay que o lugar que hoje ocupa é dela e não é necessário pedir licença para mostrar a que veio. "(Já passei por) tentativas de boicote, silenciamento, falta de valorização. Mas coloquei em mente que nós mulheres somos capazes de coisas grandiosas, e se a cena rap não enxerga isso, pra mim ela não é digna do nosso trabalho. Cansei, não precisamos tentar nos encaixar, nos diminuir pra caber num mundinho tão limitado e imaturo, cheio de homens que tentam nos diminuir porque sua masculinidade e ego podem ser frágeis demais diante da nossa capacidade", dispara a artista.

Agora, ela se aventura no meio do trap, indo na contramão da pegada comercial do estilo - que prioriza letras que falam sobre diversão, mulheres (em um sentido quase sempre pejorativo) e ostentação -; e criou o Afrontrap, o "trap de afronta". "Essa minha proposta se refere em mesclar a característica dançante e ousada do TRAP com o viés social na afronta de tocar em feridas da sociedade, tabus e temas polêmicos, que seriam trazidos nas letras de forma afrontosa e descontraída utilizando como principais artifícios o deboche e o sarcasmo", explica Laay. 

Consciente de seu papel social enquanto cantora e compositora, ela quer, através de sua música, politizar o estilo e "ser a mudança" que ela mesma quer ver. "Eu acredito que o artista, independente do gênero musical, tem uma responsabilidade sobre o impacto e consequências que sua música causará... Sobretudo quando o público alvo de sua música é uma parcela da população estigmatizada, vulnerável e que está à margem dos privilégios e até dos direitos básicos". 

Consciência do poder que suas vozes podem ter também é algo que não falta para as minas do Femigang. O grupo de rap formado pelas MCs Adelaide, Adelita, Maria Helena e a DJ Larissa é ‘cria’ do Recital Boca no Trombone, realizado no Alto do Pereirinha, no bairro de Água Fria, há cinco anos e que vem revelando talentos na cena hip hop pernambucana, sobretudo os femininos. O Femigang foi formado pela necessidade de ocupar esse espaço e veio com tamanha força e disposição de se firmar em uma cena tão masculina que já é tido como referência por outras MCs e rappers que vêm aparecendo no Recife, como comenta Adelaide. "É difícil porque a gente ainda é invisibilizada dentro do movimento, mas a gente conseguiu esse espaço batalhando pra caramba, e os frutos estão chegando".

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Dentre os frutos estão participações em eventos importantes, como o show do rapper Baco Exu do Blues, em maio deste ano, no Baile Perfumado, e o Baile de Favela, que contou com apresentações de lendas do rap nacional como o DJ KL Jay, do grupo Racionais MCs. Mas para as meninas do Femigang, realização mesmo é ver a satisfação do seu público feminino durante os shows sem contar na rede de apoio e acolhimento que elas compartilham com outras artistas. "A gente vem de movimentos sociais, que nós organizamos, e vamos abrindo espaço para outras mulheres que veem que não é só meninas em cima do palco botando som e que não fazem nada além disso A gente tá construindo de verdade com mulheres da periferia, então muitas meninas se sentem acolhidas de chegar", diz Adelaide. 

A poeta e rapper faz questão de frisar que além do acolhimento ao público feminino e às artistas mulheres, o esforço do grupo é ensinar aos homens a importância deles nesse movimento de empoderamento feminino. Elas não se incomodam em ensinar sobre questões importantes para que a igualdade de gênero seja alcançada. "Temos outra ideia de feminismo, estamos lidando com os homens da favela, então não temos aquele feminismo de excluir. A gente quer trabalhar com eles e desconstruir aquilo pra poder ensinar a eles e construir juntos. A gente recebe muitas críticas por causa disso, porque a gente escuta eles e quer dialogar. Mas vale à pena, porque a gente vê a semente crescendo, o que a gente tá fazendo tá andando".

Rede de apoio

As dificuldades enfrentadas por essas e outras artistas mulheres que escolhem segmentos considerados machistas para se expressar não são meras histórias de panfleto. As barreiras são reais e vão desde dificuldade em conseguir produzir trabalhos até perseguição e ameaças. Adelaide, do Femigang, lista algumas: "Primeiro que as vezes nem tem 'line' (programação) só de mulher ou com uma mulher, sempre é só homem. Na line que botava a gente, atrasava o som, cortava o som, o tempo era sempre menor, o tratamento não era o mesmo. Às vezes não chamavam a gente porque eles estavam comentando por aí afora que a gente tava querendo mudar o hip hop só para mulheres".

Outra artista, essa da cena trap, Margot - uma joem de apenas 19 anos, moradora de Caetés I, em Abreu e Lima, lista outros empecilhos como a falta de estrutura e dinheiro para botar o trabalho na rua. "Eles lançam som uma vez por semana, a gente passa seis meses para lançar um som. Temos poucas produtoras e beatmakers. Mas hoje em dia ter mulher na line gera um hype, é bom mostrar que tem mulher preta, periférica, mas ainda assim é pouco, a gente precisa mais que uma apresentação".

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Para burlar as limitações e barreiras, as meninas acabam criando uma rede de apoio. A própria Margot só aconteceu após as meninas do Femigang impulsionarem o seu 'corre'. Ela começou a se apresentar em shows do grupo, há cerca de um ano, e acabou engrenando na carreira. "Até hoje eu digo que minhas influências não vieram de fora, vieram daqui mesmo, elas (Femigang) foram as primeiras mulheres do rap que eu comecei a ouvir", diz Margot. 

Público feminino

Não é fazer 'música de mulher' mas sim, fazer música sobre e para mulheres. As artistas ouvidas por essa reportagem foram unânimes ao falar sobre a importância de serem reconhecidas pelo público feminino durante os shows. Falar diretamente para quem entende daqueles temas, por viverem o mesmo, é o que faz diferença no trabalho dessas minas. "Quando eu vou fazer show, algumas meninas nem conseguem curtir porque acho que elas ficam com aquele olhar assim impresisonado, elas me procuram e falam surpreendidas, me elogiam. As mulheres têm essa necessidade no meio do brega de dizer: 'poxa, era isso que eu queria ouvir e dizer quando eu escuto brega", diz Rayssa Dias.

Margot também tem essa resposta do seu público, a identificação com o que se diz no palco é imediata e as meninas acabam fazendo do show um momento só seu. "Só a gente fala aquilo que elas se identificam, se não for a gente, ninguém mais vai dizer, por isso nossa voz ecoa muito. Quando eu tô tocando e vejo aquele bate cabeça das meninas, muitas vezes os meninos vêm e elas não conseguem curtir, aí a gente pede pra eles saírem e deixarem elas à vontade também. Aquele é o momento delas". 

Já Lady Laay, se surpreendeu com o poder de alcance de suas rimas. Ela revela que o feedback de seu trabalho vem de inúmeras formas, mas, sobretudo, de pessoas que não são da cena rap. “Descobri isso quando me dei conta que a maioria dos convites de shows partiam de eventos/públicos que mal curtiam rap, e que curtiam meu trabalho simplesmente por se identificar com a mensagem e pela representatividade. Foi aí que decidi que se essa cena ignora as mulheres, eu ignorarei esta cena”. A cantora sintetiza bem o que ela e as outras artistas presentes nesta matéria - entre tantas outras que não puderam estar nesse espaço -, representam em suas cenas musicais e até mesmo fora delas: “O simples fato de fazermos o que fazemos já é um ato de resistência”.

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