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Dos direitos de Gilvan Lemos

Cristiano Ramos, | seg, 09/01/2012 - 09:49
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Toda época elege suas posturas politicamente incorretas. Por muito tempo, ser liberal e contestador garantia lugar nas listas negras. Agora, ser conservador é a escolha arriscada. Em muitos círculos, não há espaço para religião, posições políticas moderadas ou desconfiança estética com as novidades, por exemplo. Mesmo o escritor Gilvan Lemos pode se tornar alvo das lentes mais severas.

Todos estão sujeitos a responder pelas suas declarações, naturalmente. As personalidades públicas, então, sabem que a liberdade de opinar implica possibilidade de ser interpretado – mal ou bem – e criticado. Acredito, porém, que cada caso é um caso. Em alguns, podemos refletir tantinho mais, enriquecer as discussões. É assim com Gilvan.

Aos 83 anos, esse escritor nascido em São Bento do Una, autor de romances como O anjo do quarto dia e A lenda dos cem, tornou-se assunto até nas redes sociais. Reverberaram bastante suas declarações depreciativas sobre a literatura contemporânea, sobre a suposta ditadura editorial das invencionices, das narrativas curtas, dos textos escritos por homossexuais, blogueiros etc. Entre as coisas verdadeiramente ditas por ele e as atribuídas, ficou um balaio sem critério aparente, senão o de que nenhuma dessas esferas combina mesmo com Gilvan Lemos.

Apóiem ou repudiem as assertivas (até as falsas), faz parte. Sem, no entanto, tirarem de Gilvan os direitos de prosseguir sendo quem é, de ter suas convicções, de viver e morrer com elas. Seus princípios têm razão de ser, que em nada são banais. Não se trata de simples turrice,  

Menino de interior, não terminou os estudos, aprendeu a escrever sozinho, evoluiu quase que completamente de maneira intuitiva. Rapaz de timidez castradora, solitário, ele arranjou emprego público onde sobreviver (e, de certa forma, esconder-se).

Apesar de tudo, foi autor muito bem aceito no início da carreira, juntou elogios de peso, virou leitura obrigatória em vestibulares. Depois é que foi sendo gradativamente esquecido pelo mercado e pela mídia nacionais. Isso quando progredia de maneira comovente, pois Morcego Cego (Record, 1998) foi o supremo e mais belo esforço de Gilvan em apreender os movimentos literários de nosso tempo. Tempo que não é, nunca foi, e jamais será o dele.

De tão inábil com lobby, estranho às rodas de influência e de autolegitimação, Gilvan nem devia ter se candidatado à Academia Pernambucana de Letras, senão quando esta resolvesse recebê-lo de braços abertos, sem a necessidade de campanha, de disputa. Resultado foi que, na primeira tentativa, perdeu para um quase desconhecido escritor. Mais que isso: recebeu somente um voto. Precisou esperar até 2011 para que a instituição reparasse a “injustiça”.

Tudo explicado, estou para defender a tese de que Gilvan Lemos já transcendeu demais. Lutou e até venceu (espantosamente) diversas e desmedidas batalhas. Seria cruel cobrá-lo que fique entre as cordas por mais 5, 10 ou 15 rounds. Quase um E.T. vivendo na pele de um pacato morador da Boa Vista, foi humilde suficientemente para apanhar e se aperfeiçoar com as quedas. Conseguiu também deixar de ser tão bicho do mato, fez mais que os cinco amigos com quem convivia nos bancos da Livro 7 e da Nossa Livraria; concedeu entrevistas, foi a eventos, circulou. Daí as polêmicas aumentarem.

Seus mais recentes momentos no ringue têm sido de resistência aos problemas de memória. A idade o deixou tão, mas tão esquecido, que precisou optar por narrativas curtas.

Esse escritor, desmemoriado e memorável, possui direito de sentar na arquibancada, de resmungar, de reclamar das lutas que atualmente são travadas por jovens autores. Há muita estrada corrida, conquistou o privilégio de não pagar ingresso, de gastar seu tempo sentado ao lado dos poucos (mas antigos e fiéis) amigos, atirando para cá e acolá.

Gilvan, força da natureza que foi muito além do que pareciam ser limites instransponíveis. Gilvan, que, das tripas coração, correu atrás e subiu em bondes diversos, fez-se contemporâneo de pelo menos duas gerações na literatura brasileira. Gilvan Lemos que, se não assoma antenado, afinado com nossas demandas, merece compreensão, generosidade e reconhecimento.

Se os leitores me tomam por equivocado, azar. Sou e serei pelos direitos de Gilvan, assumo partido mesmo. Melhor assim. Meu coração pede, minha memória embasa, minha consciência dorme sono de uns trezentos justos.

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