Frase do querido Rubem Rocha Filho: “trocar de casa é também hora de descobrir que tipo de leitor você é”. Ele se referia à revisão (ou mesmo à seleção) que fazemos ao transladar biblioteca. Nessa linha, dá para dizer mais, que é oportunidade de saber, ou pelo menos suspeitar, quem somos.
Estou de mudança. Primeira conclusão, após encaixotar metade dos livros? Não sou sujeito dos mais focados. Somente entre os títulos que resolvi não passar adiante, tem de física, cosmologia e eventos inexplicáveis; há prateleira de crônicas e pesquisas sobre futebol; por motivos familiares, guardo ainda bocado de obras sobre sociedade açucareira e Pernambuco de tempos holandeses.
A lembrança do saudoso amigo Josué Mussalém também ocupa lugar razoável, com a participação do Brasil na Segunda Guerra Mundial, tema de nossa predileção. Está junto de um punhado de obras sobre Guerra do Paraguai, porque recentemente planejei romance ambientado nos dois cenários de conflito – não é por falta de planos que publiquei nada, preciso é de disciplina e um tantinho daquele sentimento de urgência típico de minha geração.
Cinema, fotografia e comunicação ficam pertinho de livros sobre música erudita, jazz e blues; filosofia, ali ali com psicologia (principalmente a patológica). Na parte de ciências sociais, duas dúzias tratam das democracias pelo mundo – porque ainda cogito investigar melhor o que a mídia entende por regimes democráticos. Existe, sobretudo, área de poesia, ficção e teoria da literatura. Mas, se vale é saber o que procuramos ter completo, há Guimarães Rosa, Borges, Kafka, Calvino, Hermilo Borba filho e João Cabral. O que não significa desistir de inteirar Tolkien, Saramago e Mário Quintana – para desagrado de uns dois ou três amigos.
Cismando nisso, quantos autores eu doei ou troquei para não perder amizades? De quantos me desfiz para não perder a alma (se é que esse produto ainda tem reparo)? Ou, simplesmente, quantos abandonei por não lhes arranjar cantinho? Uns 2/3 já não estão comigo. Ou eles ou meus filhos gêmeos, que nascerão em 1014 (segundo uma cigana japonesa e caolha que apareceu em sonho). Porque espaços nos apartamentos andam custando fortunas no Recife.
Para chegar à verdade, com o avanço da tecnologia – recentemente lançaram pen drive onde arquivar mais de cem mil títulos –, manter biblioteca é negócio que exige alguma tara. Percebo que as pessoas se deparam com minhas estantes e fazem aquele olhar de desconfiança, como se eu fosse algum depravado ou serial killer potencial.
Fetiche, ganha-pão, quebra-galho... Existem os que adoram mostrar suas estantes no Facebook. Tem outros que não podem é se separar de algo, mesmo que seja unha encravada. Há profissionais que vivem dos livros, e Antonio Maria já falava de pessoas que empilham alguns para substituir pé de cama ou criado-mudo.
Eu, enfim, que tipo de leitor sou, além de desfocado? Provavelmente, ser humano bem pior do que os livros requerem que eu seja. E, decerto, alguém muito melhor do que eu seria, caso eles não houvessem me acompanhado. Entre as margens em branco, sob as mais diversas capas, está boa parte do peso que conta ao meu favor, nesta balança invisível e afiada que mede meus ganhos e desacertos.