No dia 15 de junho de 2015, a Inglaterra celebrou os oitocentos anos de existência da Carta Magna.
Éuma história comprida. Escrita em latim, com 63 cláusulas, o documento, quase milenar, éreverenciado como um marco na conquista das liberdades humanas.
A propósito, os estudiosos divergem sobre o número de cópias remanescentes eo alcance político das regras no contexto da era medieval. No entanto, todos convergem em relação a três pontos fundamentais e que justificam a celebração universal: éum texto ancestral do constitucionalismo moderno; éa primeira fonte do devido processo legal;é, sobretudo,uma imposição do primado da lei sobre o Rei João Sem-Terra, ou seja, a partir de então, ninguém, nem mesmo o Rei, podia agir, senão em conformidade com a lei.
No longínquo ano de 1215, a cláusula 39 prescrevia: “Nenhum homem livre seráperseguido ou aprisionado, ou seráprivado dos seus direitos e posse, ou posto fora da lei ou exilado, nem usaremos de força contra ele, sem o devido julgamento de seus iguais ou pela lei da terra”. Mais adiante, “homens livres”, a nobreza minoritária frente à maioria de servos da gleba, foi substituído por “ninguém”. Desta forma, consagrou-se no estatuto o princípioerga omnes.
Quando se usa a fita métrica do tempo, chega-se àconclusão de que a luta contra a opressão, em favor do primado da lei, é uma luta imemorial e estána raiz das pelejas políticas pela criação de uma sociedade de cidadãos.
Lamentavelmente, não chegamos lá. A boa nova, no entanto, éque estamos caminhando. Mas o caminho éde pedras. E as pedras assumem expressões que revelam uma sub-cultura política. Quem por acaso ainda não ouviu ou foi tentado a dizer: “sabe com quem estáfalando?”; “aos inimigos os rigores da lei, aos amigos os favores da lei”; “manda quem pode, obedece quem tem juízo”. Em recentes episódios, dois juízes infratores deram voz de prisão a uma agente de polícia e a dois funcionários de empresa aérea que cumpriam, corretamente, seus deveres funcionais.
Este caldo de cultura foi apurado e se mantém aquecido pelo autoritarismo que rege, desde as estruturas familiares –o patriarca; as relações sociais hierarquizadas –o dono, o chefe, o branco; ao sistema político no qual o autoritarismo se mimetiza naoligarquia, no clientelismo, no familismo e no mais nefasto e arraigado dos vícios que éo patrimonialismo.
Com efeito, este vício –o patrimonialismo –brota no lodo que enlameia a suposta igualdade formal e a desigualdade real na efetiva aplicação das leis onde prevalece o princípio Orwelliano (a Revolução dos Bichos, consagrada sátira ao totalitarismo soviético), segundo o qual, ao sétimo mandamento original “Todos os animais são iguais”, acrescentou-se “mas alguns são mais iguais do que outros”. Ao final, o porco Napoleão, líder da revolução, engana a todos e com sua turma de suínos brindam a prosperidade, jogando carteado com os ex-inimigos humanos Frederick e Pilkington.
Em “Os donos do Poder”, Raimundo Faoro fez o mais completo estudo sobre o patrimonialismo. A releitura de Faoro coloca o Brasil contemporâneo diante do espelho: “Dominante o patrimonialismo, uma ordem burocrática, com o soberano sobreposto ao cidadão, na qualidade de chefe para o funcionário, tomarárelevo a expressão. Além disto, o capitalismo, dirigido pelo estado, impedindo a autonomia da empresa, ganharásubstância, anulando a esfera das liberdades públicas, de livre contrato, livre concorrência, livre profissão, opostas todas aos monopólios e concessões reais”.
E na linha da promiscuidade entre o público e o privado, Faoro adverte: “[...] Para isso o estado se aparelha [...] O funcionário estáem toda parte dirigindo a economia, controlando-a [...] O cargo confere fidalguia e riqueza. A venalidade acompanha o titular [...] Tudo étarefa do governo, tutelando os indivíduos, eternamente menores, incapazes [...] A expressão desta comédia se revela numa arte, cultivada às escondidas: a arte de furtar”.
Contra a exímia arte de furtar, o Estado Democrático de Direito se realiza em duas vertentes: valendo para todos no resguardo do direito de defesa e valendo para todos, exercendo a função punitiva aos comprovadamente culpados.