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Foto: Chico Peixoto/LeiaJáImagens --- Diagnosticado com hanseníase, Fernando foi vítima do internamento compulsório em Pernambuco. Ele revela memórias sobre a "Cidade do Medo"

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Um esmorecimento nada comum para um jovem de 17 anos despertou a curiosidade alheia. Isolado, no canto mais brando de uma residência, o adolescente, claramente debilitado, não demonstrava energia para reerguer-se. Desconfiada da condição do rapaz, uma vizinha identificou um grande ferimento em uma das pernas do garoto, que logo se tornou claro indício de que a saúde dele precisava de sérios cuidados. A mulher tomou a iniciativa de procurar um médico e, ao fazer contato com um especialista, foi orientada a levar o jovem para uma unidade hospitalar. Seria nobre a atitude da senhora aos olhos de muitos cidadãos. Para Fernando Antônio de Paula, o rapaz enfermo, no entanto, foi o começo de um de seus piores pesadelos.

Fernando residia com sua mãe e algumas tias no bairro de Águas Compridas, em Olinda, na Região Metropolitana do Recife. A vizinha conhecia seus familiares; sob a orientação do médico, convenceu o rapaz a procurar a unidade de saúde, contudo, não revelou que se tratava na época de um “leprosário”, como eram chamados os locais que recebiam pessoas acometidas de hanseníase. Há exatos 33 anos, o verdadeiro destino foi o Hospital Colônia da Mirueira, situado na cidade pernambucana de Paulista. Fernando foi diagnosticado com hanseníase. Nunca mais viu grande parte de seus familiares. A vizinha não passou do portão e retornou a sua rotina social.

Entenda: A hanseníase é uma doença crônica, infectocontagiosa, cujo agente etiológico é o  Mycobacterium leprae (M. Leprae). Esse bacilo tem a capacidade de infectar grande número de indivíduos, no en­tanto poucos adoecem. A doença acomete principalmente pele e nervos periféricos podendo levar a sérias incapacidades físicas. É de notificação compulsória em todo o território nacional e de investigação obrigatória. Essa doença pode acometer pessoas de ambos os sexos e qualquer idade em áreas endêmicas. Entretanto, é necessário um longo período de exposição e apenas uma pequena parcela da população infectada adoece. Fonte: Ministério da Saúde.

Em poucas horas, tudo se tornou uma incógnita para o futuro de um jovem de apenas 17 anos. Dificilmente ele aceitaria ir para a colônia caso descobrisse, antes do isolamento, que se tratava, na verdade, de um "leprosário". Nada incomum para a sociedade da época, uma vez que desde a década de 30, por meio de uma política governamental do presidente Getúlio Vargas, os brasileiros identificados com hanseníase eram obrigados a ser separados do restante da população considerada saudável. Na ótica da gestão pública do período, foi uma ação emergencial de saúde, sob o argumento de que a medicina não reunia conhecimentos suficientes para tratar a doença que apresentava alto poder de transmissão. Já na visão das vítimas do isolamento compulsório, foi uma devastadora segregação social que durou mais de 40 anos e castigou cerca de 50 mil brasileiros.

Para manter os enfermos longe do restante da população, o governo federal construiu hospitais colônias em vários estados brasileiros. Nesses locais, verdadeiras cidades foram erguidas para que os doentes construíssem laços sociais entre eles próprios. Quem era diagnosticado com hanseníase só podia se relacionar com outros acometidos pela mesma doença. Nas ruas, fora dos muros das colônias, uma espécie de polícia sanitária tinha a missão de encontrar as vítimas da enfermidade e levar a força para o isolamento.

De bens materiais a vínculos sentimentais com familiares e amigos, quase nada restou para Fernando. Se já não bastasse a alcunha de conviver com uma doença taxada de “incurável” na época, era preciso adaptar-se a uma realidade que deixava marcas na pele e principalmente na alma. Do lado de fora das colônias, o preconceito preso à raiz da população oprimia os doentes; a maioria dos sadios não queria “leprosos” por perto. Até mesmo na literatura bíblica, a doença era sinônimo de castigo contra os pecadores. Além disso, o receio de contágio, as deformações nos corpos das vítimas e a falta de tratamento adequado para curar a hanseníase, entre outros fatores, estimularam uma mancha negativa no imaginário da população: o Hospital Colônia da Mirueira, que abriga uma vila de convivência onde os pacientes construíram novas famílias, foi batizado de “Cidade do Medo”.

“Perdi o contato com todo mundo, ninguém veio aqui. Tive que fazer minha vida neste local. O que me choca até hoje eram as dores, vi os pacientes rolarem no chão frio para poder passar! Precisei conviver com tudo isso. Mesmo doentes, eu e outros homens tínhamos que ajudar a tratar os demais pacientes, porque não havia profissionais de saúde suficientes para prestar atendimento. Aqui aprendi a vida. Foi aqui que aprendi a ter amor ao próximo. Possuo lembranças de vários amigos que morreram sofrendo; acredito, no entanto, que tudo é determinado por Deus. Perdi minha família lá fora, mas construí uma nova família aqui com uma mulher que também era doente”, relata Fernando, hoje aos 50 anos, casado e pai de três filhos, com 17, 18 e 23 anos. Nenhum deles tem hanseníase.  

“Quando eu dizia que era da colônia, as pessoas tinham medo. Na época que fiz 23 anos, fomos liberados para sair do hospital. Então, resolvi tentar ver o povo e fui ao encontro de uma antiga namorada que tive aos 17 anos. Nos encontramos, mas ela estava com um banquinho e sentou-se a uma distância de uns dez metros. Ela até conversou, perguntou como eu estava, mas não chegou perto de mim. Não me tocou. Isso me deixou marcado, porque, há um tempo, eu estava deitado com essa mulher e depois ela não queria chegar perto de mim”, conta Fernando.

Em tom de desabafo, ele continua seus relatos e retorna às memórias da “Cidade do Medo”. “O isolamento era uma coisa desumana. O pessoal doente, cheio de ferimentos, sem ter ninguém capacitado para apoiar. A gente que ajudava um ao outro. Não tinha como este hospital oferecer um tratamento correto. Era Cidade do Medo porque, antigamente, existiam pessoas com orelhas enormes, nariz inchado ou despedaçado. As pessoas eram todas deformadas”. Fernando deixou de morar no Hospital da Mirueira em meados de 1990. Hoje, reside no Recife com sua esposa e os filhos.

Foto: Chico Peixoto/LeiaJáImagens --- Mesmo sem morar mais no Hospital da Mirueira, Fernando visita com frequência os residentes que foram internados junto com ele

“Cidade do Medo”. E da resistência

De acordo com o livro “Histórias vividas na terra dos esquecidos”, das autoras Rosa Maria Carlos de Albuquerque e Maria José Dantas Mesquita, a construção do Hospital Colônia da Mirueira se deu em 1936, à época, “a cargo do Ministério da Educação e Saúde”.  Estrategicamente, a colônia foi erguida em um local afastado da área urbana, “cercado por mata virgem e intensa circulação de ar”; há quem diga que o objetivo era evitar fugas e isolar os enfermos para mantê-los longe da sociedade. “Foi construído para ser uma microcidade e com capacidade para internar 400 doentes. Foi projetado para possuir o caráter de uma cidade, com ruas, praças, templo religioso, área para administração, prefeitura, delegacia, escola, áreas de lazer, além dos complexos médicos necessários para o tratamento”, diz trecho do livro.

A obra ainda traz os seguintes detalhes: “Era divido em zonas A, B e C, sendo a zona C considerada área de contágio, onde ficavam os internos. Somente com a devida permissão era possível transpor-se a barreira e penetrar-se além das linhas demarcatórias, sob pena de repreensão, mediante a proibição imposta a todos aqueles que habitavam a zona do medo”. A inauguração oficial do Hospital Colônia da Mirueira foi realizada em 26 de agosto de 1941. “O Hospital foi símbolo do isolamento social das pessoas com hanseníase em Pernambuco. O leprosário foi construído para prestar serviço inestimável de ordem técnica, sanitária, social e humana, com a visão de proteger a coletividade. Em relação aos doentes, falava-se em vantagens e promessas redentoras, pois o medo e o preconceito eram muito maiores. Esses internamentos eram o grande pavor dos hansenianos. Geralmente os primeiros dias eram difíceis, custando noites de insônia, lágrimas, muita aflição e enorme saudade dos familiares”, traz o livro “Histórias vividas na terra dos esquecidos”.

Nos registros históricos da unidade hospitalar, a capacidade inicial era para abrigar 400 doentes, no entanto, a colônia chegou a ter 500 pacientes. “Sofreram com o preconceito e o abandono, mas criaram uma sociedade só sua. Não tiveram o direito de criar seus filhos, mas agiam como se fosse uma grande família, mesmo a colônia sendo chamada a Cidade dos Mortos-Vivos e Cidade do Medo”, acrescentam as autoras Rosa Maria Carlos de Albuquerque e Maria José Dantas.

De fato, muitos internos não tiveram o direito de criar seus próprios filhos. Pacientes grávidas, quando entravam em trabalho de parto, eram submetidas a uma separação cruel e que deixaram marcas até hoje. Seus bebês eram levados para um local chamado de preventório, no bairro da Várzea, Zona Oeste do Recife. Não havia mais contato entre pais e filhos. Os bebês eram adotados ou passavam a viver em orfanatos. Atualmente, ainda existem relatos de famílias que nunca chegaram a conhecer seus filhos.

Fernando presenciou esses e outros tristes episódios que marcaram o isolamento compulsório. Porém, ele resistiu aos impactos da doença, mesmo com o tratamento ineficiente na época, e persistiu ante uma considerável parcela da população brasileira que via os enfermos como seres à margem da possibilidade de conviver em uma sociedade digna. Na colônia, trabalhou em atividades de agricultura, pecuária, além dos esforços para dar assistência aos demais pacientes. A rotina dos internos nos hospitais colônias, em geral, se resumia aos afazeres que geravam os próprios bens de consumo, como os alimentos oriundos das plantações, além de se submeterem aos tratamentos médicos. Ao caminhar pela “Cidade do Medo”, Fernando faz uma viagem pelas memórias que rementem a um período de dor e ao mesmo tempo de bravura dos que resistiram à doença e ao preconceito.

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O discurso de Fernando, por mais que em vários momentos remeta a memórias tristes da “Cidade do Medo”, reforça o auxílio humano que um paciente dava ao outro durante o internamento na colônia. Os que sentiam menos efeitos da doença ajudavam os internos mais castigados pela hanseníase. Sobretudo, além do auxílio físico, existia o aparato psicológico que, para Fernando, era tão importante quanto o tratamento corporal. Ele recorda do amigo Juliano Vieira de Farias. “Seu Juliano me ajudou muito mesmo. Quando cheguei à colônia, fiquei desesperado, era a primeira vez que seria vítima de um isolamento compulsório. Ele me deu palavras de conforto, pediu paciência e me fez acreditar que um dia tudo seria resolvido. Juliano foi um dos que mais me ajudaram dentro do hospital”, relembra.

Seu Juliano, bastante conhecido entre as vítimas do isolamento compulsório em Pernambuco, foi diagnosticado com hanseníase aos 14 anos, idade em que passou a viver entre os muros do Hospital Colônia da Mirueira. Em 2016, conhecemos Juliano – na época com 71 anos - em uma reportagem do LeiaJa.com e registramos um depoimento forte, sem rodeios e que não ocultou as marcas na alma de quem “sobreviveu” na “Cidade do Medo”.

“Se você fosse jogado dentro de um leprosário como eu fui com 14 anos de idade e te falassem que dali só sairia para o cemitério, o que você faria? Não existia perspectiva de uma vida digna e caí no mundo das drogas, após ser arrastado de dentro de casa e jogado no Hospital da Mirueira. Morava no bairro da Várzea, no Recife, com meus pais e mais sete irmãos. Me deixaram longe deles e passei a viver em um lugar que classifico como depósito de lixo humano”, desabafou Seu Juliano à época.

Se Juliano foi uma das pessoas que resistiram ao isolamento compulsório. Tocou sua vida nas dependências do Hospital da Mirueira – mesmo após o fim do internamento obrigatório - até 1994, quando decidiu residir sozinho em uma casa no mesmo bairro. Não se não casou na colônia, mas construiu uma "família" graças ao aparato emocional que dava aos demais internos. Ele faleceu em 2017, aos 72 anos.

Ainda residindo em uma das casas do Hospital da Mirueira, uma vez que por determinação federal os ex-pacientes do isolamento compulsório têm direito a morar nas antigas estruturas das colônias, Marly Ferreira, 67 anos, resiste à doença à rejeição social. Na pele, existem marcas da hanseníase, mas, segundo Marly, não se comparam às cicatrizes em sua memória. Recordar da época em que o hospital era chamado de “Cidade do Medo”, consequentemente a faz lembrar do preconceito da sociedade da época. “As pessoas tinham medo da gente. Nossa própria família não nos queria por perto. E isso dói, porque até os nossos familiares não nos tocavam. Muitos nos abandonaram”, revela Marly.

Hoje, Marly convive com o marido, também acometido pela doença, e com um filho sem o diagnóstico. Assim como os outros cidadãos vítimas do isolamento que conseguiram comprovar a segregação, ela recebe uma pensão mensal de um salário mínimo e meio, desde que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou uma lei que oferece ajuda de custo para aqueles que passaram pelo interno. Marly considera que atualmente o preconceito diminuiu bastante, porém, acredita que ainda é necessário disseminar informação para a população entender de vez que a hanseníase tem cura. No áudio a seguir, ele conta detalhes da sua história e desperta tristes recordações da “Cidade do Medo”.

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Um médico diante de um “depósito de pacientes”

Há 40 anos, José Carlos de Lima Cavalcante encarava um de seus maiores desafios profissionais. Na época, aos 24 anos de idade, o jovem médico recebia a missão de tratar os internos do Hospital Colônia da Mirueira, sem ter sequer o auxílio de outros profissionais de saúde, como enfermeiros, terapeutas e técnicos em enfermagem. Eram apenas ele e mais três médicos que se revezavam na colônia. De acordo com José Carlos, como o tratamento – a base de fortes de medicamentos - da hanseníase era longo – média de dez anos -, muitos pacientes não continuavam o procedimento e sofriam sérias consequência em decorrência da doença. “Os casos de antigamente eram muito mais agressivos e havia muita amputação. Hoje, o mais difícil é ver alguém falar de uma amputação. Antigamente eram umas seis amputações por ano”, diz. 

José Carlos não esquece tudo que presenciou durante o período do internamento compulsório. Sem a estrutura necessária para cuidar dos acometidos pela doença, ele e os demais médicos se viam em um local inadequado para um auxílio minimamente humano. “Cheguei como médico em 1978. A questão é que a colônia era diferente de tudo o que você pode imaginar. Era um depósito de pacientes. Porque começa que não foi programada realmente para ser um hospital. Pegavam esses pacientes, que eram um incômodo para a sociedade e um peso para a família, e jogavam aqui”, recorda em tom crítico. Até as faixas de curativo dos internos eram lavadas e utilizadas novamente.

De acordo com José Carlos, com a proximidade do fim do isolamento obrigatório, alguns pacientes que respondiam bem aos tratamentos e apresentavam pequenas sequelas, ganharam alta hospitalar, mas não tinham trabalho e muito menos para onde ir. Para dar um suporte básico a eles, a gestão da unidade, que no período já era de responsabilidade do Governo de Pernambuco, oferecia remuneração para esses internos, que passavam a ajudar os doentes graves. “Ficavam dando assistência. Aplicavam injeção, carregavam defuntos”, detalha o médico. “Havia criação de porcos, bois... Era tudo diferente de um hospital de verdade”, complementa.

Sobre a forma como a sociedade definia a colônia, José entende que pelo contexto da época, em que no Brasil a cura ainda era difícil e havia chances claras de contágio, expressiva parte da população tinha receio de chegar próximo ao hospital e principalmente tocar os doentes. “Tudo fruto da ignorância, aquilo que a gente não conhece, teme. Através dos anos, a doença ia deformando a pessoa e por isso há o medo. A segregação sempre existiu por causa do terror e do medo. Por conta das deformações, as pessoas se sentiam verdadeiros monstros. Na época não tinha nada de hospital, era um leprosário, as pessoas simplesmente eram jogadas aqui”, opina o médico. 

O internamento obrigatório na colônia pernambucana durou de 1941 a 1986. Alguns pacientes continuaram vivendo nas dependências da colônia, outros adquiriram residências e passaram a morar fora do hospital. Hoje, José Carlos é o diretor do Hospital da Mirueira.

O Hospital da Mirueira nos dias de hoje

Sob a gestão estadual, a unidade é referência em Pernambuco no tratamento de hanseníase e de dependentes químicos. Hoje, existem 22 moradores que foram vítimas do internamento compulsório e continuaram residindo nas casas da antiga colônia. Somando-se os parentes dos ex-internos, há cerca de 40 pessoas vivendo nas dependências do Hospital da Mirueira.

Segundo a assistente social da unidade, Ieda Saraiva, o hospital possui com 28 leitos exclusivos para o tratamento da hanseníase. Os próprios moradores, principalmente os idosos que não possuem familiares para auxiliá-los, contam com consultas semanais.

Além dos ex-internos, pacientes diagnosticados atualmente com a doença recebem os serviços médicos do Hospital da Mirueira. A depender do nível da enfermidade, eles podem ficar internados na unidade hospitalar. É o caso de *Maria, 54, natural do Maranhão. Há mais de dez anos, ela residia na cidade de Bezerros, Agreste de Pernambuco.

Foto: Chico Peixoto/LeiaJáImagens --- *Maria se apega à fé e afirma que está confiante nos médicos para ser curada

De acordo com *Maria, há cinco anos ela passou a apresentar os sintomas da doença, mas os médicos não afirmavam que era hanseníase. Até que, em uma consulta particular no Recife, o diagnóstico foi oficializado. Há três anos, ela se internou no Hospital da Mirueira, onde apesar de enfrentar as consequências da doença, alimenta a esperança pela cura. “Tenho uma fé muito grande de alcançar a cura. Já vi uma pessoa que teve o mesmo problema e depois de dez anos ela foi curada. Converso muito com Deus pedindo a minha libertação, porque eu não era assim. Eu trabalhava muito e hoje não posso. E aqui os médicos cuidam bem da gente, somos bem tratados”, diz a paciente.

*Alfredo, de 58, também foi diagnosticado com a doença. Natural de Goiana, Região Metropolitana do Recife, há cerca de um mês ele apresentou hematomas no corpo; ao ser atendido por uma médica de sua cidade, o senhor foi encaminhado para o Hospital da Mirueira. “A médica mandou logo eu vir para cá. Estou me tratando e espero sair daqui logo”, comenta.

Há 13 anos trabalhando como cuidadora de uma ex-interna idosa, Rosete Lourdes Souza é exemplo de resistência ao preconceito. Antes de atuar na função, ouvia relatos amedrontadores sobre o Hospital da Mirueira. O termo “Cidade do Medo” era comum aos seus ouvidos. “As pessoas lá fora criticaram muito, diziam de maneira muito preconceituosa que era hospital de leproso, e que quem entrasse iria pegar a doença. O pessoal dizia que havia ‘paga-fígado’ e eu não sabia que era uma referência aos próprios humanos que existiam aqui. Mas não dei ouvidos, porque comigo não tem isso de preconceito”, conta a cuidadora.  

Ela auxilia Maria Bernadete Cabral, que reside no Hospital da Mirueira há 47 anos. Aos 17, morava com os pais na cidade de Orobó, interior de Pernambuco, e ao apresentar sintomas da hanseníase, foi levada a médicos particulares. Posteriormente, Maria Bernadete foi encaminhada à colônia, e diferente de outros ex-internos, a família continuou visitando ela. “Eu não estudei, não fiz coisa nenhuma, por causa do preconceito que as pessoas tinham diante da doença. Nossa família era de Orobó, no interior, e por causa do preconceito meu pai vendeu tudo e veio para Recife para me ajudar a tratar a doença”, relembra.

O atual quadro do Hospital da Mirueira possui mais de 30 médicos. A população pode marcar atendimentos para os especialistas, caso apareçam sintomas da doença. A marcação de consultas é realizada de segunda à sexta-feira, das 8h às 12h; todo serviço é totalmente gratuito.

De acordo com a direção do hospital, a unidade custa aos cofres do Estado um valor de R$ 1,7 milhão mensais. O montante atende, principalmente, aos pagamentos dos servidores concursados. Ainda segundo José Carlos, desse total, são destinados à sua gestão R$ 105.600 que servem para alimentação dos pacientes, compra de medicamentos, material de curativo, água, oxigênio e manutenção da estrutura física.

Alguns ex-internos ainda recebem cestas básicas mensais e todos os pacientes internados também contam com alimentação. Ao todo, são oferecidas mais de 90 refeições. José Carlos argumenta, no entanto, que há alguns problemas no Hospital da Mirueira, como a falta de roupas para pacientes, déficit de ventiladores e ar-condicionado. De acordo com diretor, já foi solicitado à Secretaria de Saúde de Pernambuco um aumento na verba para o orçamento do hospital, porém, até então, o valor é o mesmo. José Carlos estima que um acréscimo em torno R$ 105 mil mensais seria suficiente para amenizar as dificuldades do Hospital da Mirueira.  

Atual paranorama da doença no Brasil - De acordo com o mais recente levantamento do Ministério da Saúde, o Brasil registrou 25,2 mil casos de hanseníase em 2016. O quantitativo representa 11,6% dos diagnósticos do mundo. Ainda no cenário global, nosso país só perde para Índia – mais de 27 mil casos - em números oficiais da doença.

Fundado em 1981, o Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase (Morhan) é uma das instituições de referência no combate à doença e principalmente contra o preconceito. Artur Custódio, coordenador nacional do Morhan, alerta que os números da doença no Brasil, mesmo apresentando queda nos últimos anos, ainda são preocupantes e exigem atenção contínua do Ministério da Saúde. “Em números absolutos, só perdemos para Índia”, comenta Custódio.

Além de atuar com foco educativo, por meio da realização de eventos para apresentar à sociedade informações sobre a hanseníase, o Morhan também presta auxílio jurídico às vítimas da doença, inclusive os ex-internos do isolamento compulsório. A busca por pensão para quem viveu a segregação é um aos auxílios dados pelo Movimento, além da procura por filhos que foram separados dos pais no período do internamento obrigatório. 

Segundo Artur Custódio, é necessário o fortalecimento de um trabalho com a sociedade para propagar informações que possam diminuir o preconceito e acabar com estigmas negativos da doença. “O isolamento tem um impacto até na questão do estigma; ainda há pessoas que moram nos hospitais colônias. O preconceito vai além da imagem, além da questão física. Ele pega também o campo social e o psicológico. E essas pessoas têm dificuldade de se recuperar, e para isso ser revolvido, tem que haver um processo longo educacional”, opina o coordenador nacional do Morhan. 

A NHR Brasil, instituição sem fins lucrativos que tem o objetivo de “promover a melhoria na qualidade de vida e a reabilitação das pessoas atingidas pela hanseníase e por outras deficiências físicas no Brasil, através do desenvolvimento e implementação compartilhada de serviços efetivos, eficientes e sustentáveis para que tenham plena participação na sociedade”, também realiza trabalhos sobre a doença. Segundo a assessora técnica da NHR Brasil, Rejane Almeida, é notório que o preconceito tem diminuído pela disseminação das informações de que a hanseníase tem cura, no entanto, ela reforça que o trabalho de conscientização deve ser contínuo.

“Na atualidade, o tratamento é em nível ambulatorial. Todas as equipes de saúde têm trabalhado para reduzir o preconceito e para mostrar que hoje a hanseníase tem cura. É uma doença que pode provocar sequelas, mas não significa que vai provocar. Por isso, há a importância do diagnóstico precoce, porque quanto mais rápido ele acontecer, menor será a possibilidade de desenvolver incapacidade física. E o medo da hanseníase vem justamente das sequelas que ela pode provocar, porque ninguém quer ficar com as mãos atrofiadas ou com déficit de força no pé, por exemplo”, explica a assessora técnica.

Rejane informa que os hospitais do Sistema Único da Saúde (SUS) oferecem atendimentos gratuitos para as pessoas que apresentarem os sintomas da hanseníase. Ele alerta que a partir de qualquer indício, é muito importante a procura de um médico especializado, principalmente para a realização do diagnóstico precoce. “Isso torna a hanseníase uma doença com tratamento igual às demais e requer uma responsabilidade grande dos pacientes, porque os tratamentos podem durar de seis meses a um ano”, comenta. 

“Ainda não estamos em um patamar totalmente tranquilo, porque o Brasil ainda é o segundo país em números da doença no mundo. Mas, hoje contamos com atendimentos descentralizados para toda a população. Qualquer programa de saúde da família próximo da casa do paciente está apto a tratar a doença”, acrescenta Rejane.

* Nomes fictícios utilizados para preservar a identidade dos personagens

Fotos em preto em branco são do arquivo do Hospital da Mirueira 

Serviço:

Hospital da Mirueira

Endereço: Estrada de Santa Casa, sem número, bairro de Mirueira, em Paulista-PE

Contatos: (81) 3185-4415 / hgmses@yahoo.com.br

Agendamento de consultas: segunda à sexta-feira, das 8h às 12h. Gratuito.

--> Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase (Morhan)

  --> NHR Brasil

Expediente:

Reportagem - Nathan Santos

Imagens: Chico Peixot

Edição de vídeos: Danillo Campelo

Artes: Raphael Sagatio

“Se você fosse jogado dentro de um leprosário como eu fui com 14 anos de idade e te falassem que dali só sairia para o cemitério, o que você faria?”. Seu Juliano Vieira de Farias, 71 anos, me fez esse questionamento. Não tive resposta. O silêncio foi quebrado quando ele próprio respondeu: “Não existia perspectiva de uma vida digna e caí no mundo das drogas, após ser arrastado de dentro de casa e jogado no Hospital da Mirueira. Morava no bairro da Várzea, no Recife, com meus pais e mais sete irmãos. Me deixaram longe deles e passei a viver em um lugar que classifico como depósito de lixo humano”.

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Na memória de seu Juliano ainda existem vestígios do tempo em que a hanseníase era um mal sem cura no Brasil. Chamados preconceituosamente de leprosos, portadores da doença foram isolados do restante da sociedade em 1923, através de uma política criada pelo governo federal para evitar o contágio em massa. Segregação que alimentou ainda mais o desrespeito de grande parte da população contra os acometidos pelo diagnóstico, em uma época que a medicina brasileira ainda não tinha conhecimentos suficientes para tratar a enfermidade. O isolamento durou por quase 40 anos, mas existem relatos de que, mesmo após a determinação do fim da separação, alguns leprosários continuaram prendendo seus pacientes.

Apesar da frágil saúde, seu Juliano reuniu forças para compartilhar com o LeiaJá parte de suas histórias. Ele é um dos pacientes com hanseníase que viveram o isolamento compulsório em Pernambuco. Na época, uma polícia sanitária foi criada pelo governo federal com o objetivo de retirar a força os doentes do convívio social. Os leprosários foram chamados também de hospitais colônias, uma vez que as relações sociais dos doentes aconteciam apenas entre eles próprios, pois o contato com pessoas saudáveis, mesmo que familiares, era combatido. Verdadeiras cidades foram criadas dentro dos leprosários, onde pacientes tinham a missão de trabalhar para manter a limpeza da colônia e até cuidar das plantações e criações de animais que serviam para a alimentação de todos. No Estado, o antigo palco das tristes recordações de seu Juliano é o atual Hospital da Mirueira, localizado em Paulista, na Região Metropolitana do Recife.

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Em 1962, o isolamento compulsório chegou ao fim. Nem por isso a vida dos doentes se tornou livre das mazelas que atormentaram os portadores de hanseníase. Muitos foram abandonados pela família e continuaram morando nos próprios hospitais, como no caso de seu Juliano, que apenas resolveu sair do Hospital da Mirueira em 1994. Hoje ele vive sozinho em uma casa próxima à unidade hospitalar, mas, no antigo leprosário, ainda há pacientes que viveram o isolamento, muitos com sérias deficiências físicas e recordando os males da segregação.

Saiba mais: Segundo definição da Sociedade Brasileira de Dermatologia, “a hanseníase acomete primeiro a pele e os nervos periféricos, e pode atingir também os olhos e os tecidos do interior do nariz. O primeiro e principal sintoma é o aparecimento de manchas de cor parda, ou eritematosas, que são pouco visíveis e com limites imprecisos. Nas áreas afetadas pela hanseníase, o paciente apresenta perda de sensibilidade térmica, perda de pelos e ausência de transpiração. Quando lesiona o nervo da região em que se manifestou a doença, causa dormência e perda de tônus muscular na área”. Os doentes sem o devido tratamento podem perder partes do corpo.

“Cidade do medo”

Após o fim do isolamento compulsório, os leprosários passaram a ser administrados pelos estados. No caso da Mirueira, o Hospital se tornou referência no tratamento de hanseníase e ainda hoje abriga cerca de 20 pessoas que foram pacientes isolados, além de alguns agregados. Pelo preconceito existente no período de isolamento e por causa do risco de contágio da hanseníase, a colônia pernambucana era chamada de “cidade do medo” e chegou a abrigar cerca de 500 internos. Quase não havia cidadão com coragem de entrar no local, sob a ameaça de ser acometido pela hanseníase. A seguir, confira uma imagem da época registrada pela Fiocruz.


Vera Lúcia Rodrigues, hoje com 59 anos, morou desde criança no Hospital da Mirueira. Seus pais tiveram hanseníase e ela também foi contagiada, além de sofrer com o cruel preconceito no lado de fora da colônia. A senhora já não mora na unidade hospitalar, mas trabalha lá com serviços gerais e conhece cada canto do local. Junto com o LeiaJá, ele refez caminhos que estão cravados em sua memória, muitos deles com tristes desfechos, mas que revelam um passado sombrio que afetou pelo menos 10 mil brasileiros, segundo dados da Secretaria de Direitos da Presidência da República. Vale lembrar que boa parte das casas e setores do Hospital da Mirueira foi erguida pelos próprios pacientes.

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Na época em que o Hospital da Mirueira era um leprosário, Vera viu os últimos minutos de vida da sua mãe, presenciou castigos contra os pacientes que “desrespeitavam” as regras do hospital colônia e teve filhos recém-nascidos arrancados dela – bebês de doentes eram tirados de perto das mães e levados para preventórios com o intuito de evitar contágio. “Era triste ouvir o que as pessoas falavam. Vivíamos presos aqui. Não tenho o que reclamar do convívio com os outros pacientes, mas fora do leprosário era um terror. Dentro do hospital também vivi fatos horríveis”, conta Vera.

De acordo com o coordenador do Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase (Morhan) em Pernambuco, Gildo Bernardo da Silva, o peso trágico dos hospitais colônias é tão forte na vida de quem viveu a separação compulsória, que os leprosários chegam a ser comparados com campos de concentração. “Alguns falam que foi exílio, outros dizem que são campos de concentração, pela forma brutal que a separação foi feita. Diziam que Getúlio Vargas, presidente do Brasil na época, era simpatizante de Hitler. A polícia sanitária ia buscar os doentes em casa para levá-los ao isolamento. Se fugisse, o paciente seria perseguido e castigado”, relata Gildo.

Por mais que a estrutura física dos hospitais colônias tivesse semelhanças com as cidades onde os sadios viviam, a realidade na época era de pura segregação imposta pelo estado. Segundo a professora e coordenadora do Programa de Extensão Hanseníase Cuidado e Direito e Saúde, da Universidade de Pernambuco (UPE), Raphaela Delmondes, houve violação dos direitos humanos. Ouça o depoimento da docente:

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Dona Maria José Borges (foto à esquerda), hoje com quase 80 anos, foi paciente do isolamento compulsório, mas preferiu permanecer nas dependências do Hospital da Mirueira. Ela afirma ter parentes fora da unidade hospitalar, mas quase não tem contato com eles. Sem uma das pernas e ainda com sérias lesões causadas pela hanseníase, Maria vive sozinha e conta com o serviço de uma cuidadora de idosos. Ao falar do passado, mesmo em meio às lembranças obscuras da separação compulsória, a idosa relembra quando conseguia trabalhar de pé e ainda reclama da atual falta de atividades de lazer. “Hoje só passamos o dia todo sentados, sem fazer nada. Antigamente era melhor que hoje, pois a gente fazia festa, brincava, só não podíamos passar do portão”, conta.

Outro residente do local, Mario Nunes completou 44 anos de moradia no Hospital da Mirueira. Carrega sequelas da doença e relembra fatos marcantes do isolamento compulsório. Hoje com 70 anos de idade, ele cobra da direção do hospital a realização de atividades para entreter os moradores e alega que os remanescentes da separação compulsória continuam isolados e esquecidos pelo governo estadual. Vizinha de seu Mario, dona Marly Ferreira, atualmente com 65 anos, chegou à Mirueira aos 15 anos de idade. A senhora também possui lembranças marcantes do período de isolamento. No vídeo a seguir, os pacientes descrevem histórias da época:

Através de nota, a Secretaria de Saúde de Pernambuco, pasta responsável pela gestão do Hospital da Mirueira, reconhece a existência das vilas dentro das unidades e reforça que apenas os antigos pacientes devem moral no local. A direção do Hospital também assume que o número de festividades e atividades para os ex-pacientes vem diminuindo, sob a alegação de dificuldades financeiras. “Neste momento, a direção optou por reduzir os gastos com o intuito de garantir a assistência aos pacientes do Hospital, que é seu serviço prioritário”, informou a nota.

Em 2007, uma lei federal sancionada pelo presidente Lula liberou um benefício para mais de 11 mil pessoas que foram submetidas ao isolamento compulsório. Elas recebem uma ajuda de custo no valor um salário mínimo e meio. 

       

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