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Nesta quinta-feira (4), diversos perfis no Twitter e Instagram dedicados a expor estudantes que supostamente fraudaram o sistema de cotas universitárias em instituições de ensino do país inteiro surgiram fazendo denúncias. O ato, que se mostrava uma atitude bem intencionada para assegurar o direito de quem busca acesso ao ensino superior, no entanto, pode levar a erros e linchamentos virtuais, como o que aconteceu com a jovem indígena Larissa Sá, de 19 anos, que cursa o segundo semestre de medicina na Universidade Federal do Maranhão (UFMA) e foi injustamente exposta como fraudadora de cotas para indígenas pelo perfil @fraudadorcotaPE. 

A estudante mora na cidade de São José do Belmonte, em Pernambuco. Ela é do povo Atikum Umâ e frequenta a Aldeia Logrador, no município de Carnaubeira da Penha, no mesmo estado. Em entrevista concedida ao LeiaJá, ela contou que tem registro na Fundação Nacional do Índio (Funai), entre outros documentos que comprovam sua etnia.

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Na manhã desta quinta-feira, Larissa se deparou com diversas ofensas que não entendeu de imediato ao abrir o Instagram, e conta que foi informada do que estava acontecendo no Twitter por seus amigos. 

“Alguns amigos estavam me mandando prints do Twitter, e lá era muito pior, eu estava no chão, as pessoas que estavam me julgando tinham aquela visão estereotipada de indígena de 1500. Comecei a me defender, uma menina me respondeu dizendo que podia me ajudar, mandou minha exposição para um twitter chamado @indiodeiphone e as pessoas começaram a me apoiar. Eu acho que comecei a receber apoio de pessoas que pensam igual a mim e começou a ficar tudo bem”, contou ela.

Perguntada sobre como enxerga os ataques que sofreu no contexto da sociedade hiperconectada, em que as pessoas são facilmente expostas e ficam sujeitas a demonstrações de ódio virtual, Larissa disse ver perigo na exacerbação do contato com a vida de todos, mas também alguns pontos positivos.  “Eu acho que o perigo está nesse poder exacerbado de todo mundo ter contato com a vida de todo mundo, com tudo que se passa. É ruim com a vida da pessoa que é ‘linchada’ como também é bom porque muitos assuntos importantes vêm à tona. Esse linchamento que aconteceu comigo também serviu para dar visibilidade a um assunto pouco falado. Isso também fez com que eu criasse coragem e a partir de hoje eu sou outra pessoa para poder falar acerca desse assunto”, afirmou a jovem. 

Fraudes e comissões de verificação  

Esta não é a primeira vez que Larissa sofre preconceito devido à forma como as pessoas imaginam que um índio deva ser. Esse problema fez com que a jovem tivesse que passar no vestibular duas vezes e entrar na Justiça contra a universidade quando não foi reconhecida como indígena pela comissão de verificação em sua primeira aprovação. Ela conta que, na equipe que a entrevistou para realizar a verificação de autodeclaração, nenhum dos avaliadores era indígena.

“Passei na UFMA em outro campus e fui fazer minha matrícula, fui na banca avaliadora, não me deram certeza, voltei para minha cidade. Saiu outra lista de espera e tinha outra pessoa na vaga que era ocupada por mim. Pensei que tinha aberto outra vaga, mas disseram que minha vaga tinha sido indeferida. Informaram que a banca tinha concluído que eu não era indígena. Comecei a chorar, minha mãe pegou o telefone e a mulher no telefone disse que a vaga foi indeferida porque a banca achou que eu não era indígena. Minha mãe perguntou com base em quê; ela disse que não sabia dizer, que só estava passando a informação e não podia fazer nada por nós”, contou Larissa, que processou a instituição de ensino, mas nunca obteve uma resposta adequada e precisou voltar ao pré-vestibular por mais um ano. 

Ao ser aprovada novamente, Larissa não teve ânimo de contar às pessoas sobre o feito. Quando foi novamente à entrevista para verificação de autodeclaração de sua origem indígena, ela sentia apenas medo. “Aquelas pessoas não eram indígenas e uma pessoa que não passa aquilo na pele não pode julgar outra. Como você indefere a matrícula de alguém porque você acha que ela não deve estar ali? O erro começou na representatividade” afirmou a estudante.

Larissa nasceu com os cabelos escuros e gosta de pintá-los de loiro, mas conta que antes de ir à entrevista chegou a pensar em mudar a cor dos fios. “Eu pensei que não valia a pena, que as pessoas têm que me aceitar. O sangue indígena corre nas minhas veias, o indígena não tem que provar fenotipicamente quem ele é. Isso é uma coisa que já me afetou muito, mas hoje em dia eu sinceramente não ligo mais”, disse ela. 

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Theo Brandon faz medicina na Universidade Estadual da Bahia.Foto: Theo Brandon / Arquivo Pessoal

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As cotas para pessoas transgênero dentro de graduações públicas são novidade no Brasil. Determinada primeiramente pela Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), a medida foi divulgada em edital apenas em fevereiro de 2018, causando polêmica. Hoje, para a graduação, a Universidade Federal do Grande ABC (UFABC), Universidade Federal da Bahia e Universidade Estadual da Bahia (Uneb) são as outras instituições que oferecem cotas para pessoas trans. O processo para compreender a necessidade de uma cota do tipo na graduação pode não ser fácil, afinal, soma a necessidade de entender o desamparo sofrido por esse segmento da população LGBTI+ no País com os cruéis obstáculos ultrapassados pelo mesmo público no ensino básico. 

A invisibilidade do público trans não é restrita à educação. A simples existência dessa parcela de brasileiros não foi levada em consideração nos últimos censos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A Organização Mundial da Saúde estima que menos de 1% da população mundial seja transexual. 

O que sabemos hoje em dados internacionais ou alternativos é: 82% das pessoas transgênero deixam a escola entre os 14 e 18 anos. Os motivos, de acordo com a RedeTRANS, são as agressões diárias sofridas dentro dessas instituições a e a falta de amparo da família. 

A Pró-Reitora de Ações Afirmativas da Universidade Estadual de Brasília (Uneb), Amélia Tereza Santa Rosa Maraux, afirma que esses foram alguns dos pontos considerados em conversa com a sociedade antes da instalação desse tipo de política afirmativa na instituição. “As pessoas travestis e trans têm uma dificuldade grande de concluir o percurso educativo no ensino fundamental e médio. Não é difícil perceber indicadores, como por exemplo, de distorção entre idade e série no ensino fundamental e por conta disso a evasão na educação básica”, explica.

Segundo o estudo "Juventudes na escola, sentidos e buscas: por que frequentam?", realizado pelo Ministério da Educação no final dos anos 2000, os preconceitos contra a população LGBTI+ são a principal forma de segregação dentro das escolas. Pessoas que se enquadram nesse segmento têm um “índice de rejeição” de mais de 19%, principalmente entre os jovens do Ensino Médio.

Ainda segundo o estudo, os alunos homens cis são os que têm mais dificuldade em encarar  a população LGBTI+ como companheira de classe. Pela pesquisa, 31,3% dos rapazes não querem ter como colegas de classe homossexuais, transexuais, transgêneros e travestis. No caso das meninas cisgênero, esse número baixa para 8%. 

No primeiro semestre letivo após a implantação desse tipo de cotas, a Uneb recebeu 20 alunos transgênero para diversos cursos diferentes. Entre eles, estava Theo Brandon, de 23 anos.

O caminho de Theo até a medicina

Natural da cidade de Camaçari, no interior da Bahia, Theo alcançou a oportunidade de cursar medicina, graduação mais concorrida da Uneb, no primeiro edital que instituiu cotas para pessoas trans. Mantendo uma boa relação com os estudos desde a infância, as primeiras violências sofridas pelo baiano por questões tocantes a gênero não eram tão perceptíveis, mas as dificuldades socioeconômicas enfrentadas no período sim. “Desde essa época eu tinha que, muitas vezes, fazer uma jornada tripla: trabalhar vendendo trufas na vizinhança e na própria escola para conseguir dinheiro de transporte para estudar, fazer cursos para garantir uma ascensão profissional no futuro e estudar meu ensino fundamental em si, tendo que andar quilômetros em um único dia, às vezes, para garantir concluir minhas atividades”, lembra. A identificação com a transgeneridade surgiu quando ele já cursava o ensino médio no Instituto Federal da Bahia.

Na época do ensino médio, a experiência do aluno não foi muito diferente da de outras pessoas trans, principalmente no que diz respeito aos espaços burocráticos. “Foi um momento de identificação com a transgeneridade e intensos conflitos familiares e sociais derivado disto, como as dificuldades no acesso aos espaços segregados por gêneros na escola e políticas de nome social, para além da vulnerabilidade socioeconômica, que só piorou sem o apoio familiar”, recorda.

Dentro da universidade, a caminhada de Theo até o diploma de médico assemelha-se a de jovens negros e periféricos que não têm o apoio da família em um curso integral. Morando longe da faculdade, ele leva cerca de duas horas para ir e duas horas para voltar. O gasto com materiais como xérox e equipamentos práticos precisa ser equilibrado com os auxílios financeiros oferecidos pela escola. “A primeira opção, que não é o meu caso, é ter apoio financeiro da família. A segunda é ficar de olho em qualquer tipo de edital que abrir na faculdade, seja de bolsa permanência ou de pesquisa”, conta. As bolsas giram em torno de R$ 300. 

A Pró-reitora Amélia lembra que encontrar uma forma de fazer esses alunos continuarem na faculdade sem o apoio financeiro da família é um dos maiores desafios para a instituição hoje. “Mais do que ingressar, o nosso desafio é construir as políticas de permanência. Bolsas destinadas para que essas pessoas possam permanecer na universidade, residência universitária… São várias políticas somadas à política do ingresso para garantir a permanência e conclusão desses alunos”, explica. 

Mesmo consciente do seu papel como o retrato de que pessoas trans podem chegar à academia, Theo lembra que as cotas não são suficientes para suprir a quase inexistência delas nesse espaço. “Isso é sintoma de algo muito maior. Quando a gente insere as políticas de cotas a gente busca acabar com esse sintoma, mas o que gera esse sintoma está intacto e vai continuar produzindo as desigualdades. Muitas pessoas trans sequer chegam a terminar o ensino fundamental e/ou médio, então não tem como esperar que somente a política de cotas na universidade supra toda deficiência que vem sendo gerada”, pontua. Em tempos de debates contra uma suposta “ideologia de gênero”, poucas são as medidas tomadas no ensino médio e básico de cidades brasileiras para atenuar essa desigualdade. 

O desafio do ensino básico

Especialistas da área de educação lembram que uma das formas de diminuir a desigualdade e fazer pessoas transgênero alcançarem as universidades é fornecer um ambiente escolar seguro para que elas se sintam bem vindas. “Como uma pessoa trans vai aproveitar as cotas se ela nem sequer se sentiu à vontade de frequentar uma sala de aula no ambiente escolar de ensino médio, ensino fundamental, para poder minimamente concluir os estudos e ter acesso à cota? Isso parece ser uma coisa que ainda precisa ser trabalhada para que possa ter efeito na prática”, afirma Robeyoncé Lima, advogada e co-deputada estadual pela chapa Juntas (PSOL) no Recife. A possibilidade de discutir gênero nas escolas, porém, é minada com frequência por projetos de lei que já chegaram a ser considerados inconstitucionais.

Na cidade de Foz do Iguaçu, no Paraná, um projeto que proibia discussões e até mesmo a utilização do termo “gênero” nas escolas foi aprovado na câmara e precisou ser barrado pelo ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal, por ferir preceitos da Constituição, como o direito à igualdade. 

Cidades como Caxias do Sul (RS), Campina Grande (PB) e São Bernardo do Campo (SP) também tiveram PLs do tipo aprovados. Na contramão disso, a permissão da utilização do nome social dentro das escolas públicas foi homologado pelo MEC apenas em janeiro de 2018. Há poucos dados, porém, sobre o incentivo à utilização desses nomes dentro das instituições de ensino. 

Robeyoncé: a universidade antes e depois da Lei de Cotas

Robeyoncé Lima, do Alto Santa Terezinha, é co-deputada estadual pelo PSOL. Foto: Juntas / Divulgação

As cotas universitárias para pessoas transgênero são recentes, mas os poucos casos de quem conseguiu desafiar obstáculos e concluir o percurso educacional cercado pelos muros hostis do ensino básico e superior existem. Um dos exemplos mais enigmáticos é o de Robeyoncé Lima, de 30 anos. O percurso dela começou em uma escola pública do Alto Santa Terezinha, na Zona Norte do Recife, passou pela Universidade Federal de Pernambuco duas vezes e hoje é traçado dentro da Assembleia Legislativa do mesmo Estado. 

Quando criança, a única forma encontrada pela estudante de fugir das brincadeiras constantes pelo seu “jeito afeminado” era estudar o suficiente para que as pessoas a respeitassem, pelo menos na hora de pedir as respostas dos testes. “Isso era uma forma também de reverter esse quadro de ser uma pessoa vista de maneira negativa para ser vista de maneira positiva, mesmo que só no período de provas”, lembra. 

Assim como tantos outros jovens da região marcada pela pobreza, as referências de universidade para ela eram distantes. “Na minha rua não tinha uma pessoa que tinha entrado numa universidade federal, que tivesse passado no vestibular, mas eu via história de pessoas que tiravam primeiro lugar em medicina, primeiro lugar em direito e eu dizia ‘sim, se essas pessoas podem passar, eu também posso’”, conta. No Brasil de 2006, Robeyoncé, preta e periférica, foi uma das duas pessoas da escola do bairro aprovada no vestibular. Iria cursar geografia na UFPE. Como reconhecimento pela conquista, ganhou uma grande faixa com o seu nome.

Na sua segunda graduação, Robeyoncé entrou pelas portas da tradicional Faculdade de Direito do Recife um ano antes da implantação da Lei de Cotas. Por mais de cinco anos, viu aquele espaço mudar. “No primeiro curso propriamente eu não vi por exemplo questões de gênero, não tive acessos a essas questões, não tive acesso a esse debate dentro desse curso. No segundo curso aqui na faculdade de direito, eu tive acesso, a questões de direito e gênero, direitos das mulheres e tudo mais”, conta. Acompanhando gradativamente a inclusão de pessoas que não tinham tanto acesso ao ensino público, ela também teve oportunidade de reconhecer a sua transgeneridade. 

“Eu nao sei se eu seria essa mesma pessoa se eu tivesse estudado em outra faculdade. Eu poderia estar de terno e gravata por exemplo, sabe? Se eu tivesse estudado direito em uma faculdade que apenas ensina a letra da lei, provavelmente eu estaria enfurnada em um terno e uma gravata, mas que bom que eu tive esse privilégio que muitas pessoas não têm”, lembra. São dos privilégios que ela lembra na hora de considerar o caminho que a fez chegar até aqui. Não ser expulsa de casa pela família, por exemplo, foi um deles. “Eu não fui tão exposta feito muitas outras meninas, até da academia, sabe? Esse status de advogada, esse status de deputada me dá uma certa segurança. O sistema me dá segurança”, afirma.

Reportagem faz parte do especial "Para que servem as cotas?", produzido pelo LeiaJá. O trabalho jornalístico explica a importância das cotas para a equidade e democratização dos espaços de educação brasileiros. Confira as demais reportagens:

1 - Cotas: sanção da lei marca o ensino superior

2 - A perspectiva social que explica a criação das cotas

3 - Cotas raciais valorizam diversidade no ensino superior

4 - Saiba como funciona as Comissões de Verificação de Cotas

5 - Inclusão de pessoas com deficiência marca Lei de Cotas

6 - Cotas rurais garantem ensino ao povo do campo

7 - A aldeia no campus: cotas e reparação histórica aos índios

9 - ProUni: inclusão social no ensino superior particular

10 - O que é mito e o que é verdade sobre a Lei de Cotas?

11 - Como seria um mundo sem cotas? 

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