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A segunda reportagem sobre o deslizamento da área de lazer do residencial Ecovila Yapoatan escutou moradores do condomínio e teve acesso aos documentos que sugerem a construtora como responsável pela tragédia que resultou em duas mortes. A Mult Técnica Engenharia, por outro lado, culpa a administração do conjunto habitacional.

Além das duas vidas perdidas, cerca de 2 mil pessoas que compraram um sonho, agora moram em um condomínio à beira de um precipício, em Jaboatão dos Guararapes, na Região Metropolitana do Recife, em Pernambuco. 

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Pôr do sol no mirante antes do deslizamento. Reprodução/Redes Sociais

Antes do pesadelo

O sol finalmente pareceu ter brilhado para quem abdicou de momentos de lazer e poupou a vida toda para financiar o sonho de morar em um condomínio. O folheto era lindo, a proposta mais ainda: sair do aluguel para viver na casa própria, com direito à piscina, churrasqueiras, salão de festa, pista de cooper e parque infantil.  

O Ecovila Yapoatan foi, para moradores dos 752 apartamentos, divididos em 47 blocos, o início de uma vida mais confortável, rodeada por verde e tranquilidade. Para outros, o reinício em uma nova casa, com novo endereço e novos vizinhos. A vista daquele mirante a 50 metros do chão atraía os visitantes e alimentava o sonho dos novos moradores.  

Visão da parte do mirante que suportou o deslizamento.Júlio Gomes/LeiaJá Imagens

Um estrondo na madrugada de 28 de maio de 2022 e tudo mudou. O mirante ao redor da piscina veio abaixo com a chuva, justamente onde já haviam rachaduras. A avalanche de destroços caiu sobre duas casas na Rua Campo Verde. Duas pessoas morreram, nove ficaram feridas e 30 desalojadas aos pés do talude.  

As unidades do Ecovila Yapoatan começaram a ser entregues em 2016 e totalmente concluído em 2018. Apesar do conjunto ser novo, fissuras no piso que percorriam a rampa de acesso à piscina, cortava o quiosque central e ia até a pista de cooper começaram a incomodar a administração.

A gestão do condomínio afirma ter buscado seis vezes a Mult Técnica Engenharia para realizar os reparos quando as fissuras aumentaram e se tornaram rachaduras. Os chamados foram feitos entre setembro de 2021 e janeiro de 2022, mas apenas um foi atendido.  

Rachaduras no piso do local interditado. Júlio Gomes/LeiaJá Imagens

A insistência dos moradores fez um representante da construtora ir ao local. Segundo os relatos, já dava para colocar um dedo dentro da rachadura, e, mesmo assim, ele não teria solicitado uma intervenção. Os administradores do condomínio recordam que o profissional da construtora disse não haver problemas estruturais e resumiu as rachaduras a "microfissuras", decorrentes do ajuste natural da estrutura. 

Sem solução 

Mais de um ano se passou e a área do talude permanece destruída. Uma lona foi colocada para evitar o contato direto da chuva com o solo, mas buracos no plástico já ameaçam sua eficácia para evitar novos deslizamentos.

O atual síndico, Edson Silva, interditou a área e relata que, desde aquela madrugada, cada chuva renova o medo de uma nova tragédia. "Os moradores estão todos em pânico e sem esperança. Não temos o retorno da construtora e ainda tem o risco de queda novamente".

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O morador André Silvestre aponta que a empresa responsável pelo Ecovila Yapoatan parece não ter a mesma pressa que teve para vender os apartamentos e acusa a construtora de não assumir o compromisso de requalificar o único espaço de lazer do residencial.  

“A gente trabalha tanto, junta as economias para vir para um lugar melhor e o sonho se tornou pesadelo. A construtora alega que não tem dinheiro para fazer e tava tudo dentro da garantia. Ela alega que foi um acidente natural e tá se esquivando". 

O incômodo causado pela chuva também se reflete dentro dos apartamentos. Thiago Ramos conta que convive com infiltrações e rachaduras dentro de casa, nas janelas e, principalmente, no banheiro. "Quando chove, tá acontecendo de sempre a água penetrar. Isso tá sendo muito difícil para todos os moradores [...] um dia eu cheguei em a casa e tava praticamente alagada", relatou. 

Mãe de uma criança de 10 anos, Veridiana Medeiros conta que a piscina foi determinante para sua chegada ao Ecovila e lamenta a interdição do espaço pensado para os menores: "nossas crianças é que pagam o preço. É de domingo a domingo enfurnada dentro de um apartamento". 

Integrante do conselho fiscal do condomínio, Sidney Andrade acompanha a debandada dos condôminos e a insatisfação generalizada pela desvalorização dos imóveis. "As pessoas estão saindo e só não estão vendendo porque desvalorizou. Tá todo mundo alugando a preço de banana e quem tem condição de ir embora, tá indo". 

"Proposta indecente"

Empenhado na reconstrução da área de lazer, Edson manifestou surpresa quando recebeu uma "proposta indecente da construtora". O documento encaminhado pelo advogado da Mult Técnica condicionou o conserto do mirante à assinatura de uma cláusula que isentava a empresa de toda responsabilidade sobre o deslizamento. A construtora citou a influência de causas naturais e considerou que o deslizamento foi um "evento decorrente de força maior", agregado à falta de manutenção do próprio condomínio. 

Trecho do acordo proposto pela construtora para reconstruir a área destruída.  Arquivo Pessoal

A imposição não foi aceita e o condomínio contratou um engenheiro especialista em inspeção, manutenção e recuperação de estruturas para descobrir as causas do deslizamento. O laudo técnico produzido pelo engenheiro Paulo Roberto da Cunha Filho constatou que a estabilidade do muro dependia de uma drenagem eficiente. Contudo, houve infiltração e o terreno acabou saturado, comprometendo a fundação e aumentando a tendência de deslizamento. 

Laudo aponta falhas na construção

A análise reforçou que o muro de arrimo tem a função de fazer a contenção pelo seu próprio peso, mas a água da chuva entrou pela fissura e fragilizou a base do muro, culminando no colapsou da estrutura aterrada. O engenheiro também identificou falhas construtivas e mal uso de materiais na obra. "Essas falhas construtivas tiveram participação ativa na fragilização do talude, corroborando com a instabilidade do mesmo", observou no estudo.  

Erros construtivos identificados pela perícia: 

- Formato do gancho de fixação curto e sem ancoramento; 

- Bitola do gancho de fixação menor que o especificado no memorial descritivo; 

- Posição errada da tela de argamassa, que não ficou dentro do material, mas embaixo, em contato com o solo úmido, possibilitando a oxidação; 

- Tubulação de 100mm que passa no local da fissura, no limite de onde houve a queda da barreira. Esse cano também possui uma união irregular feita com arame, sem luva adequada. 

Veja os laudos:

O Instituto de Criminalística enviou peritos no dia 1º de janeiro de 2023 e concluiu que o deslizamento foi causado pela infiltração nas rachaduras no piso da área de lazer, que deixou o solo da base do muro de arrimo saturado e, consequentemente, causou o colapso. 

A perícia feita no local constatou que o talude natural não apresentava estrutura de contenção e foi utilizado concreto jateado para estabilizar a encosta. Também foi verificado que o concreto se desprendeu em alguns pontos da barreira e que a rachadura no piso próxima às piscinas tinha, aproximadamente, dois centímetros de espessura. 

Conclusão da perícia do Instituto de Criminalística. Arquivo Pessoal

O caso foi denunciado à Polícia Civil, que mantém as investigações, e acatado com unanimidade pelo Conselho Regional de Engenharia e Agronomia de Pernambuco (CREA-PE). O presidente Adriano Antônio Lucena estima que, pelo menos, duas mil vidas foram impactadas só no condomínio. Ele enfatizou que a posição do Conselho é mediar a conciliação fora da Justiça. 

"Não adianta agora dizer que a culpa é de fulano ou de beltrano, porque se disser que a culpa é da construtora, ela vai dizer 'rapaz, não tem dinheiro para resolver esse problema' [...] a construtora sempre colocou 'eu não tenho condições de fazer essa intervenção numa obra de R$ 4, R$ 5 milhões'”, afirmou. 

Reuniões no CREA-PE colocaram as partes frente a frente e, segundo o presidente, todas as medidas paliativas para garantir o mínimo de segurança foram cumpridas pela empresa. Entre elas, a drenagem e reforço da barreira e a instalação das lonas e tapumes para isolar a área.  

Reunião mediada pelo presidente do CREA-PE com representantes da construtora e do condomínio. Reprodução/Redes Sociais

A Mult Técnica Engenharia não parou os negócios por conta do prejuízo em um de seus empreendimentos e logo anunciou a construção do Maria Farinha Flat Residence. Os moradores do Ecovila Yapoatan estão revoltados, pois a empresa que alega não ter caixa para reestruturar o condomínio vai aplicar R$ 40 milhões para erguer quatro torres, na beira mar de Paulista, em um total de 280 unidades.  

O material de divulgação do novo residencial descreve que o espaço vai contar com restaurantes, lavanderia e academia de ginástica. Tudo para facilitar a vida de quem confiar seu dinheiro nos planos da construtora. 

Rachaduras e pontos de infiltração se repetem na cisterna do Ecovila Yapoatan. Júlio Gomes/LeiaJá Imagens

O presidente do CREA-PE não comentou sobre a suspensão do vínculo da Mult Técnica com a instituição e explicou que esse tipo de prática é comum. Para cada empreendimento, as construtoras abrem uma Sociedade de Propósito Específico (SPE) - como se fosse um CNPJ para cada obra- e, "se quebrar, quebra só aquele, não a matriz", continuou. 

"O recebimento que ela tá tendo é das pessoas que tão comprando aquele novo empreendimento. Se ele for pegar esse recurso e colocar em um empreendimento velho, que ele tenha problema, ele nem vai fazer o novo e talvez não resolva o velho", comentou Adriano. 

Engenheiro chefe Aldo Bezerra e um dos donos da Mult Técnica Mário Fernandes apresentam projeto à Prefeitura de Paulista.  Divulgação/Prefeitura de Paulista

Construtora culpa o condomínio

O LeiaJá procurou a construtora e solicitou um porta-voz para dar esclarecimentos sobre as causas do incidente, mas nenhum representante foi designado. Por meio de nota, além de culpar as fortes chuvas daquela madrugada como a principal razão do deslizamento, a Mult Técnica Engenharia diz que o condomínio não realizou a manutenção do sistema de drenagem. A gestão do conjunto rebate e diz que o manual entregue pela empresa não fala sobre a recorrência da limpeza dos equipamentos de escoamento. 

Sem apresentar documentos probatórios ou indicar os profissionais contratados para realizar as vistorias pós-deslizamento, a construtora diz que os "profissionais mais respeitados do Estado" elaboraram os laudos técnicos, os quais teriam atestado que "as manutenções adequadas não foram realizadas pelo condomínio de acordo com as normas técnicas vigentes". 

“Laudos emitidos por técnicos competentes, experientes e de vasta referência no mercado, concluíram que não existe nenhum elemento que comprove qualquer tipo de vício oculto ou aparente que tenha sido o fator do deslizamento do talude”, sinalizou. 

A reportagem teve acesso a um desses laudos. A análise do escritório do engenheiro André Luís de Oliveira Castro, em Riacho das Almas, a cerca de 130 quilômetros do condomínio, no Agreste de Pernambuco, mostra imagens aéreas da barreira e conclui que não houve vícios construtivos que justificassem o incidente.

Além da distância do escritório, outro detalhe chama atenção: mesmo com fotos do deslizamento, ele é datado de 25 de maio de 2022, três dias antes do fato. A gestão do condomínio rechaça a legitimidade do laudo. A construtora considera a denúncia de falsificação uma "informação descabida e improcedente". 

Laudo apresentado pela empresa que os moradores apontam irregularidade. Reprodução

A Mult Técnica Engenharia alega ainda que enviou outros dois profissionais para vistoriar o Ecovila Yapoatan, após a queda da estrutura, mas não detalhou a data e horário das visitas.

O condomínio aponta que eles nunca estiveram no local. A informação também foi considerada "descabida e improcedente" pela construtora. 

Sobre os cinco chamados que teriam sido ignorados pela Mult Técnica, a empresa se limitou a pontuar que "todas as intercorrências foram atendidas e saneadas" e que seus próprios laudos reforçam que as alegações do condomínio não possuem fundamento técnico. 

No comunicado, a construtora reafirma que, após o incidente, autuou “de forma voluntária” na remoção de “capins, árvores de médio porte e lixo” da área não afetada e elencou as ações tomadas após o evento, sendo elas:

- Isolamento da área com instalação de tela; 

- Fornecimento de lonas para proteger a área afetada;

- Monitoramento através de topografia periódica de todo perímetro mais próximo ao talude.

 Lona com furo usada para evitar contato das chuvas com a barreira. Júlio Gomes/LeiaJá Imagens

A Mult Técnica garante que a construção respeitou todas as normas técnicas e as boas práticas exigidas e afastou “toda e qualquer indicação de descumprimento das normas ou imperícia na construção do empreendimento e do talude". Nesse sentido, a construtora nega as acusações de mal uso de materiais e falhas construtivas constatadas na perícia feita pelo condomínio. 

"Entendemos que os apontamentos que constam no laudo contratado pelo condomínio são frágeis de elementos técnicos que possam amparar um parecer direcionando a falhas ou vícios dos materiais. A construtora possui toda segurança técnica para desconstruir elementos tendenciosos, com objetivo de distorcer o nítido e evidente fato gerador do deslizamento do talude, onde reafirmamos: ação da natureza e falta de manutenção", refutou a Mult Técnica. 

Moradores no trecho do talude que suportou o desabamento. Júlio Gomes/LeiaJá Imagens

Empresa diz não ter obrigação de reconstruir a área

Sobre a "proposta indecente" mencionada pelo síndico, que garantia a reconstrução do mirante se os proprietários assinassem uma cláusula que retirava a eventual culpa ou dolo da Mult Técnica Engenharia, a construtora mais uma vez contestou a responsabilidade legal pelo ocorrido e completou que não tem obrigação de arcar com reparos e indenizações. 

"O que a construtora propõe decorre unicamente da sua boa-fé, decência e atenção especial com seus clientes, além da sensibilidade que o caso demanda [...] Desta forma, atua ativamente na mediação para prevenção de conflitos não tendo qualquer responsabilidade legal em reparar ou indenizar o condomínio pelo ocorrido", considerou. 

Na posição de que busca contribuir “por livre e espontânea vontade” para a solução do caso, a Mult Técnica teria participado de cinco encontros com representantes do Ecovila Yapoatan, o primeiro em seu escritório e os demais na sede do CREA-PE. Contudo, de acordo com a construtora, a gestão do residencial encerrou as negociações de forma unilateral. 

"Infelizmente os representantes do condomínio adotaram, sem a devida deliberação em assembleia, portanto de forma unilateral e sem valor jurídico, a posição e a decisão de encerrar o processo de negociação sem ao menos manifestar ou registrar uma resposta com uma contraproposta” 

Pelo entendimento da empresa de não ter responsabilidade de recuperar a área, a reconstrução do talude que mantém o Ecovila Yapoatan à beira de um precipício segue sem previsão. O presidente do CREA-PE, Adriano Lucena, indicou que a esperança para conseguir o valor da obra é através de emendas enviadas por deputados federais.

Representantes do CREA-PE apresentam situação do Ecovila Yapoatan ao deputado Lucas Ramos.  Reprodução

A articulação com os parlamentares já teria começado, mas ainda não houve pedido formal, pois o CREA-PE não teve acesso a levantamentos em posse da construtora que são exigidos para a requisição.  

"A gente foi atrás dos deputados para que houvesse uma emenda parlamentar e, chegando, a gente fizesse a intervenção. Eles se comprometeram em fazer algum aporte. A gente tá fazendo contato para fazer essa ponte e que um deputado bote R$ 500 mil, outro coloque R$ 1 milhão, quando a gente somar isso chegar ao valor da obra. Esse é o caminho que a gente tá percorrendo", explicou o presidente.

O LeiaJá publica, nesta quinta-feira (10), a primeira de duas reportagens sobre o deslizamento da área de lazer do residencial Ecovila Yapoatan. O colapso da estrutura causou duas mortes e deixou o condomínio à beira de um precipício, em Jaboatão dos Guararapes, na Região Metropolitana do Recife, em Pernambuco.

A tragédia

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Gláucio José da Silva dormiu na noite chuvosa de 27 de maio de 2022 sem saber que seria a última ao lado da esposa. Soterrado por barro e escombros do que acabava de deixar de ser sua casa, o serralheiro de 57 anos ficou abraçado à Luci Maria da Silva, de 48, enquanto ela se debatia até a morte em uma crise de claustrofobia.

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O casal morava aos pés da barreira da Rua Campo Verde, em Jaboatão dos Guararapes, mas nunca havia sofrido com deslizamentos até o início da construção de um condomínio, no alto. Eles jamais imaginariam que as chuvas intensas de 2022 fariam com que a área de lazer do residencial despencasse dos 50 metros de altura e destruísse sua casa. 

Trabalhador autônomo, Gláucio não costumava deixar a esposa sozinha. A família tinha uma vida financeira estruturada, dois carros na garagem e um patrimônio construído às custas das horas de Gláucio dentro da oficina, no mesmo terreno onde ficava a casa.

"Como pobre, minha casa era excelente. Era de luxo", lembra orgulhoso. Reformas no imóvel e a compra de eletrodomésticos tornaram o local o ponto de encontro das festas da família. A herança que seria deixada para o filho e onde o casal sonhava atravessar a velhice. 

Ferramentas e materiais de trabalho ainda estão embaixo da terra. Júlio Gomes/LeiaJá

Destruição nos olhos

Um estrondo por volta das 5h09 da manhã e, de repente, tudo ficou escuro. Ele ainda não sabia, nem teve tempo para entender, mas aquele som soterrou seu futuro. O muro de arrimo de três metros e meio veio abaixo. Ele ficava no alto da barreira e sustentava o mirante do Condomínio Ecovila Yapoatan. A estrutura, a 50 metros de altura, não suportou o peso da área que reunia pista de cooper, dois quiosques e um mirante circunscrito à piscina. Sem conseguir respirar com facilidade, um pequeno feixe de luz salvou a vida de Gláucio embaixo de quilos de destroços. 

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A algumas casas dali, Rafael Rodrigues se preparava para o trabalho quando ouviu o barulho.

"Teve tipo uma zoada de trovão, só que era o mirante descendo. Aí pegou nas casas aqui embaixo", descreveu.

Sua primeira lembrança ao abrir a porta foi do mar de lama que atravessava a rua, e, no fim, destroços empilhados onde ficava a casa de Gláucio. Fios de alta tensão arrebentaram e caíram no chão, mas risco de uma descarga fatal não impediu a união dos vizinhos para tentar resgatar as vítimas. 

Rafael permanece na Rua Campo Verde e diz que os problemas com a chuva são os mesmos. Júlio Gomes/LeiaJá

O medo que sufoca

A estrutura que veio abaixo colocou Luci frente a frente com seu maior medo. Ela tinha fobia de ambientes fechados e, por conta disso, se recusava a realizar atividades simples do dia a dia, como andar de carro ou de elevador. O deslizamento que tirou sua vida também não deu chances ao marido da sua irmã, Francisco Claudino de Oliveira, de 61 anos, que teve a cabeça esmagada por um pedaço de concreto. 

"Infelizmente eu tô aqui e ela não tá [...] ela não morreu por conta do soterramento, ela morreu de pânico. Ela tinha fobia e não conseguia andar de carro fechado, não andava de metrô. Para ter uma ideia, podia ter os andares que for, mas ela ia de elevador, subia [o prédio] andando", comentou Gláucio. 

Gláucio carrega o trauma de ter perdido a esposa nos braços. Júlio Gomes/LeiaJá

Presos por ferragens e alvenaria, nenhum deles conseguia se mexer. Os dois dividiam espaço e gritaram por ajuda por cerca de 30 minutos, antes de Luci sucumbir à sensação de confinamento e sofrer uma crise de pânico. Ela passou os últimos momentos imóvel, entre as pernas do marido. 

"Ela se viu presa e ficou sem ar. Ela morreu falando, e a pessoa que tá sem ar não consegue mais falar. Teve uma hora que ela travou, calou-se". 

O Corpo de Bombeiros foi chamado, mas a forte chuva e as ocorrências na mesma manhã impediram a chegada ao local. A corporação estava perto dali e se esforçava para buscar sobreviventes em meio ao lamaçal em Jardim Monte Verde, região mais prejudicada pelas chuvas em todo Grande Recife.  

Lonas plásticas colocadas no alto da barreira após o deslizamento. Júlio Gomes/LeiaJá Imagens

Três dias com o corpo

Ainda chovia muito e a lama também dificultava o resgate dos vizinhos quando outros blocos do muro de arrimo se desprenderam e rolaram barreira abaixo. Em meio à correria, três coqueiros em frente à casa de Josélia Alves, ao lado da de Gláucio, vieram ao chão e evitarem que seu imóvel também fosse destruído.  

Amiga da família, Josélia ainda carrega os traumas daquele dia. Ela compartilhou detalhes do resgate de Luci, desde a retirada da mulher dos braços de Gláucio, até os cuidados que recebeu das vizinhas. Após ser lavado e vestido, o corpo passou três dias no terraço do irmão de Josélia à espera da chegada do Instituto Médico Legal (IML).  

Josélia mostra os pedaços do muro de arrimo a poucos metros de casa. Júlio Gomes/LeiaJá

Abalada, Josélia não trabalha e passou a dormir na casa da filha. Sem se afastar muito da barreira, ela ainda vive na Rua Monte Verde. "Quando começa a chover, eu já fico com medo porque pode deslizar isso aí e vai simbora a casa com tudo", revela.  

Ouça o relato de Josélia sobre a remoção do corpo da amiga dos escombros 

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Chuva que não traz paz

Sozinho por quatro horas nos destroços, Gláucio só foi retirado por volta das 11h. Nesse tempo, tentou buscar explicações sobre o que acabava de destruir sua vida. Ele se diz vítima de uma tragédia anunciada e culpa a Mult Técnica Engenharia, responsável pelo Ecovila Yapoatan.   

Ainda em 2017, ele aponta que uma fenda se abriu dentro da piscina do condomínio e infiltrou o talude que sustentava o mirante.

"Só caiu o muro de arrimo, se fosse fatalidade tinha caído toda a barreira. Por conta do vazamento que tava tendo", acusa. 

Parte da estrutura do Ecovila Yapoatan ainda ameaça os moradores da Rua Campo Verde. Júlio Gomes/LeiaJá

Hoje, Gláucio vive sozinho em uma casa não muito distante de onde tinha a vida que acreditava ser intocável. Todos os dias ele chora quando lembra de Luci. Todas as vezes que olha no espelho, se confronta com as cicatrizes do dia mais triste da sua vida e volta ao desastre todos os meses, quando recebe a pensão vitalícia dada pelo governo do estado e o auxílio-moradia da Prefeitura para ajudar no aluguel.  

"Ontem pela manhã passei o dia todinho tirando lama de dentro de casa. Só vim parar de trabalhar era 22h. Perdi o sofá, que já foi de doação, e meu armário", lamenta. 

Na segunda reportagem: quem foi responsável pela tragédia? Moradores do Ecovila Yapoatan fazem denúncias e mostram documentos que sugerem a construtora como culpada. A empresa se defende e faz acusações contra a administração do conjunto habitacional.

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