Tópicos | transformam

Sob as lonas, pessoas em situação de rua tentam fugir da chuva e do sol. (Júlio Gomes/LeiaJá Imagens) 

##RECOMENDA##

Um bom emprego no comércio, um salário digno e uma casa para viver com suas filhas e netas. Enquanto a nuvem cinzenta da realidade se aproxima do pequenos grupo de moradores de rua que habitam o entorno do Cais de Santa Rita, Zélia*, de 42 anos, imagina como estaria sua vida se ela tivesse aprendido a ler e escrever. A chuva logo começará e será preciso recolher os cobertores da calçada, abandonando todo o resto do lado de fora da lona de plástico debaixo da qual a mulher agora vive com sua família. Cada precipitação representa uma pequena tragédia cotidiana para aquela pequena comunidade de pessoas. Perde-se a identidade, a camisa preferida, uma carta escrita por um familiar. Não há como sonhar, acumular ou construir nada sob as lonas que se multiplicam e redesenham a paisagem das calçadas do Centro do Recife no contexto de pandemia de Covid-19.

“Eu trabalhava vendendo acarajé e tapioca. O preço do carvão e da comida aumentou muito e, por causa da pandemia, o movimento de pessoas na rua ficou mais fraco. Caiu muito nossa renda e, como não sei ler, não consigo nada. A prefeitura podia botar a gente para ficar ‘mais inteligente’, para ver se a gente se acostuma com alguma coisa. Gosto de negociar, acho bonito”, diz Zélia.

Pregos e barbantes são utilizados para sustentar barracas feitas de lona. (Júlio Gomes/LeiaJá Imagens)

O contexto de crise sanitária também reduziu a oferta de pequenos “bicos” que o marido de sua filha fazia para sustentar a família. Sem renda, ele entrou para o tráfico de drogas e foi preso. “Faz cinco meses que minha filha entregou a casa dela e a gente ganhou essa lona. Agora, ela está gestante e puxa um carrinho para fazer o dinheiro do almoço e dar para as duas ‘crias’. Tem vezes que não dá, mas hoje um rapaz teve pena e botou ela pra fazer uma ‘viração’. A luta é muito grande”, afirma.

Inicialmente, a família se instalou na Avenida Engenheiro José Estelita, no bairro de São José. Na região, Prefeitura do Recife e iniciativa privada executam as obras do Porto Novo e do Porto Novo Recife, respectivamente. Os projetos estão associados à demolição do histórico Cais José Estelita, onde o Consórcio Novo Recife- composto pelas empreiteiras Queiroz Galvão, Moura Dubeux, GL e Ara Empreendimentos- para construção de 13 torres residenciais e comerciais, que variam de 12 a 38 andares. “A obra vai ser alguma coisa que a gente não sabe o que é, mas se aconteceu isso que seja melhor. O dono aí é quem sabe. A gente não sabe. Umas 40 famílias foram tiradas da avenida. Algumas pessoas ganharam o auxílio [moradia] e outras não”, acrescenta.

No centro, é a maior a oferta de distribuição de alimentos e roupas. (Júlio Gomes/LeiaJá Imagens)

Incompatível com o luxo dos projetos urbanísticos em curso na área, a longa fileira de lonas se desfez. “A gente só fez sair de lá, andar um pouquinho, e armar as lonas aqui no Cais. É só fazer um buraquinho nela, passar um barbante e bater com prego na parede, mas, de conforto, é péssimo. Só estou aqui porque não está fazendo sol. Quando chega a tarde, corro lá pro outro lado”, comenta Pedro*, 18 anos, que vive sozinho em sua barraca.

O jovem conta que não recebeu nenhum tipo de auxílio da prefeitura. “Quem acabou recebendo foi o povo que já tinha casa e vem para o lado de cá toda noite para tentar pegar as refeições que o pessoal das ‘comunidades’ [organizações que apoiam pessoas em situação de rua] distribui”, lamenta.

Com pedras, pessoas em situação de rua tentam impedir que vento carregue as frágeis estruturas de plástico. (Júlio Gomes/LeiaJá Imagens)

De acordo com o coordenador estadual do Movimento Nacional pela População de Rua, Jaílson Santos, é comum que famílias carentes de diversas regiões da cidade disputem doações de grupos voluntários com as pessoas em situação de rua. “Temos um número grande de gente das comunidades pobres que identificou essa oferta de alimentação, roupa e produtos higiênicos no centro do Recife, onde as doações ficam mais concentradas. São pessoas com moradia que, em plena pandemia, se aglomeram nas ruas em busca da sobrevivência”, pontua.

Jaílson ressalta que é inegável o aumento do número de pessoas em situação de rua durante o período de crise sanitária. “Os últimos dados da prefeitura são de 2019, sabemos que houve uma contagem em 2021, mas ela ainda foi disponibilizada. Mesmo assim, acreditamos que esse número triplicou durante a pandemia. O que temos visto é uma quantidade exorbitante de gente que foi morar na rua nos últimos dois anos pela falta de emprego e habitação”, lamenta.

Para Jaílson a política do aluguel social no Recife não vem sendo efetiva no sentido de garantir moradia para quem precisa. “Com R$ 200 só se consegue pagar um aluguel em lugares ermos da cidade. Essas pessoas não recebem garantia de uma cesta básica digna ou de um cadastro de empregabilidade, nem conseguem arcar com os custos básicos de se ter uma casa. Elas recebem o valor e acabam voltando para as regiões centrais da cidade, onde é mais fácil conseguir comida”, afirma.

Êxodo para o centro

Raquel vive nas ruas com o marido e a filha, de 4 anos. (Júlio Gomes/LeiaJá Imagens)

Raquel*, 28 anos, deixou a Avenida 17 de Agosto, na Zona Norte, com destino à Rua do Imperador, no bairro de Santo Antônio. “Lá não chega comida como aqui. Estou na rua há cinco meses, desde que meu marido perdeu o emprego. A situação ficou ruim, porque nossa filha tem microcefalia, então dependemos da ‘comunidade’”, explica.

Na tentativa de proteger a criança, de 4 anos, Raquel decidiu montar uma barraca com lona, tendo como apoio as paredes da Igreja da Ordem Terceira de São Francisco da Penitência. “Na semana passada, entrou água na barraca e tudo ficou molhado. O pessoal da Igreja reclama se a gente sujar a parede, aí a lona não encosta totalmente e a chuva passa para dentro. Fui dormir debaixo de uma marquise com meu marido e a menina ficou com uma mulher que mora em um prédio aqui da rua”, conta Raquel.

Natália deixou a casa da mãe em razão do vício no crack. (Júlio Gomes/LeiaJá Imagens)

Instalada na barraca vizinha, Natália*, 30 anos, ajuda com os cuidados da criança. “Estou nessa rua há um mês. Deixei minha mãe e minha filha por causa do crack, fumo desde os 14 anos. Eu morava em Olinda, mas estava tirando as coisas de casa para comprar droga. Meus irmãos já me ajudaram muito, me internaram e tudo, mas perdi a confiança deles. Agora minha única família é Raquel”, comenta.

Natália chegou à Rua do Imperador há cerca de 1 mês e concorda que o local possui melhor oferta de doações do que outras áreas da região metropolitana. “Além das doações, tiro uns R$ 20 por dia. Com uma parte do dinheiro eu compro a droga e com a outra água e comida. Meu sonho é ter condições de ter uma moradia e criar minha filha”, completa.

Um problema solúvel

Barracas de lona nas proximidades do Cais de Santa Rita. (Júlio Gomes/LeiaJá Imagens)

O estudo “Moradia no Centro: da reflexão à ação”, realizado por Habitat para a Humanidade Brasil em parceria com Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), coletivo A Cidade Somos Nós, Federação de Órgãos para Assistência Social (Fase) e Cooperativa de Arquitetura, Urbanismo e Sociedade (Caus), identificou que, dos 112 edifícios analisados no bairro de Santo Antônio, 37,5% totalmente desocupados ou com menos da metade de sua área ocupada. Utilizada para moradia, essa estrutura ociosa poderia se transformar 2.106 unidades de habitação popular.

Foi diante deste cenário que, no dia 14 de agosto de 2019, a Habitat para a Humanidade Brasil, o MTST, o Centro Popular de Direitos Humanos (CPDH), o Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico (IBDU) e o Coletivo A Cidade Somos Nós enviaram para a Prefeitura do Recife uma denúncia acerca do não cumprimento do decreto municipal nº 31.671, assinado pelo então prefeito Geraldo Júlio (PSB) em 10 de agosto de 2018, que visa garantir o cumprimento do princípio da função socioeconômica da propriedade urbana. Segundo a norma, “os imóveis urbanos em comprovada situação de abandono, cujos proprietários não possuam a intenção de conservá-los em seu patrimônio e que não se encontrem na posse de outrem, poderão ser arrecadados pelo Município do Recife, na condição de bens vagos, após regular processo administrativo”.

No ofício, as entidades apontam que, apenas no Centro do Recife, um total de 42 imóveis encontram-se abandonados. “Não há uma caracterização muito detalhada sobre o que é um imóvel em situação de abandono, então nós estamos entendendo que seja um imóvel vazio ou deteriorado, o que acontece em vários prédios do centro do Recife”, explica Ronaldo Coelho, assessor jurídico da Habitat para a Humanidade Brasil.

De acordo com Ronaldo, a prefeitura poderia utilizar as edificações para construção de habitações, centros esportivos, unidades de prestação de serviços públicos, assim como para doação para entidades filantrópicas que tenham como finalidade o desenvolvimento do empreendedorismo e assistência social. A denúncia das entidades da sociedade civil, contudo, nunca foi respondida. “A gente tem trabalhado para que esses imóveis sejam utilizados para moradia, o que é importante para que as pessoas que vivem na região tenham uma condição de vida adequada. Até o momento não nos consta que a prefeitura deu início a qualquer procedimento administrativo para notificar os eventuais proprietários desses imóveis, o que seria bastante interessante, já que se trata de um processo bastante longo e complexo”, ressalta.

Por meio de nota, a Prefeitura do Recife informou que iniciou, em 2019, o projeto-piloto de arrecadação de imóveis, tendo identificado 14 deles com características de abandono. A administração municipal alega que tais propriedades já estão sendo submetidas a processos administrativos. Leia a nota na íntegra:

“A Prefeitura do Recife informa que, desde o ano de 2019, iniciou o projeto-piloto de Arrecadação de Imóveis e identificou 14 imóveis com características de abandono e que estão sendo submetidos a processos administrativos. Todos eles estão localizados no bairro do Recife. Desse total, doze proprietários já foram localizados e contactados pela gestão municipal e foram convocados para regularizar a situação fiscal e tributária dos espaços, bem como dar nova função social e uso ao patrimônio. Dos imóveis já verificados, nenhum deles possui características para habitação popular.

Em paralelo, em novembro do ano passado, a Prefeitura do Recife implantou o Programa Recentro, que visa revitalizar os bairros do Recife, São José e Santo Antônio. Dividido em quatro eixos, a iniciativa prevê, dentre outras situações, a concessão de descontos e incentivos em impostos municipais, como IPTU e ITBI, para projetos de construção, recuperação e manutenção de imóveis em Zonas Especiais de Proteção Histórica (ZEPH).

Além disso, a Prefeitura do Recife deu início a estudos técnicos para elaborar uma concessão pública para locação social. O objetivo é produzir, no mínimo, 500 unidades habitacionais prioritariamente na área central da cidade - nos bairros de Santo Antônio, São José, Boa Vista e Cabanga -, voltadas para famílias com renda máxima de três salários mínimos. A proposta considera a Locação Social como mais uma alternativa de acesso à moradia digna e vê a habitação como um dos elementos estruturadores da requalificação urbana da área central da cidade”.

*Nome fictício (personagem preferiu não se identificar)

Leianas redes sociaisAcompanhe-nos!

Facebook

Carregando