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"Eu era gay, não podia ser trans", lembra a transformista Sharlene Esse. (Julio Gomes/LeiaJá Imagens)

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Rua Imperatriz, Centro do Recife, início dos anos 1980. Era debaixo das escadas de uma pensão antiga que um pequeno grupo de homens gays transgredia, em tons de purpurina e irreverência, o muro acinzentado do fim da ditadura militar. Cabia a Sharlene Esse a missão de entregar uma contrapartida financeira à dona do estabelecimento pelo “favor”. Caso circulassem pelas ruas “montados”, os transformistas corriam o risco de topar com figuras como “Aracati”, um policial bastante temido pela comunidade LGBT da época.

“A gente estava andando na rua à noite e as outras gritavam: ‘lá vem o Aracati!’, eu saia correndo, porque ele virou até lenda, atirou em muitas. Na época, só existia travesti e transformista. Eu era um gay, não podia ser ‘trans’, se não você era apedrejada”, explica Sharlene. Transformista, ela fez parte de uma cena que abalou as estruturas do teatro e da sociedade pernambucana, trazendo o artista LGBT para o centro da ribalta, muito antes de o debate ganhar a força que agora possui.

O pesquisador e professor do curso de teatro da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Rodrigo Dourado frisa que o termo transformismo possui uma conotação essencialmente artística. “O transformismo remonta aos rituais primitivos, em que, para fins ritualísticos ou performáticos, uma pessoa se transforma em outra de outro gênero, assumindo vestes, voz e comportamentos típicos dele. Na Grécia antiga, por exemplo, não existiam mulheres em cena, sendo elas interpretadas pelos homens”, explica.

No Brasil, o primeiro gênero teatral a acolher artistas com identidade de gênero não-normativa foi o teatro de revista, que marcou o começo do século vinte. Nele, travestis protagonizavam espetáculos musicais ao lado das famosas vedetes. “Nos anos 1940, o teatro de revista vai ficando bastante marginal, um gênero desprezado pela elite e tido como vulgar. No Rio de Janeiro, o Teatro Rival torna-se uma referência para as transformistas. Lá, foi apresentado, na década de 1970, o espetáculo ‘Les Girls’, que estabelecia a cultura do teatro de revista no Brasil”, comenta.

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Nos anos 1980, o Recife receberia a influência carioca por intermédio do ator e diretor Barreto Júnior, reconhecido pela crítica por sua irreverência e seus papéis cômicos. Ambas, aliás, características centrais do grupo teatral Vivencial Diversiones, por cuja sede Sharlene costumava passar todas as manhãs ao ir para o colégio. Esse itinerário mudaria sua vida completamente. “Nasci em Bom Conselho em 1961 e vim para o Recife em 1975, com o objetivo de estudar. Na escola pública Renato Fonseca, fui aluna de teatro de Paulo de Castro. Passava pelo vivencial e ficava assustada, porque ele era conhecido como o ‘teatro dos frangos’. Eram as pessoas que mais incomodavam na cena cultural de Pernambuco: Perna Longa, Américo Barreto, Henrique Celibi, Guilherme Coelho e companhia”, completa. 

Aos 17 anos, como gosta de dizer, Sharlene começou a dar seus primeiros “pinotes” pela badalada noite do Recife. Misty, Mangueirão, Vogue e Stock eram algumas das numerosas boates ‘friendly’ da época, que empunham uma cartografia diferente à cultura cidade, ainda mais concentrada em uma região central movimentada e efervescente. “Sabe um endeusar? É você ver os sapatos, o batom, a boca, a peruca...Meu primeiro contato contato com o transformismo aconteceu num show que vi em uma das boates da cidade. Logo depois, fiz um teste na Misty, que ainda ficava na Rua do Riachuelo, e passei interpretando Donna Summer”, lembra Sharlene. As casas noturnas costumavam fechar um elenco fixo, no qual a transformista passou 11 anos, arrematando premiações locais, apresentações memoráveis e um dos primeiros Documentos de Registro Técnico (DRT) na categoria artística de Pernambuco.

Sharlene (dir) montada de Gal Costa ao lado de Jeison Wallace, interprete de Cindela. (Shalene Esse/arquivo pessoal)

Para atender melhor à demanda do público, Sharlene passou a estudar as performances de outras divas da cultura pop, como Mireille Mathieu, Liza Minnelli, Whitney Houston até chegar à personagem que lhe rendeu maior reconhecimento: Gal Costa. Em uma arte onde a fidelidade do figurino é quase tão importante quanto captar os movimentos típicos da cantora que se dubla, a transformista se inspirou primeiramente na capa do clássico disco “Gal Tropical” (1979) para montar-se com flores na cabeça e vestido vermelho. Em uma das apresentações, Sharlene foi ao banheiro acompanhada pela colega Vivi Bensasson e acabou esbarrando com um espectador ilustre. “A gente pegou Tim Maia fazendo xixi (risos). A gente nem sabia que ele estava na casa. Depois desse episódio, passamos um bom tempo conhecidas na noite como ‘as menininhas de Tim Maia’”, brinca. Era comum que artistas famosos e pessoas de fora do meio LGBT frequentassem os shows das transformistas.

Parceiro de Sharlene desde os tempos áureos, Odimir Felix Lins, artisticamente conhecido como Odilex, era a outra ‘doce Bárbara’ mais badalada do Recife. “O convite para interpretar Maria Bethânia partiu da Misty, durante o processo seletivo que fiz para poder entrar na casa. Claudete Bardot sugeriu que eu ouvisse o disco dela. Eu já tinha formação em balé”, lembra Odilex. Somados ao estudo da perfomance, o nariz avantajado, a magreza e longos cabelos crespos e negros, transformaram rapidamente o artista em um cover bastante fiel da baiana. Em uma noite de gala na Misty, Caetano Veloso, irmão de Bethânia, foi ao camarim para elogiar a interpretação. “Você tem o brilho do olhar de Bethânia”, resumiu o compositor, para a completa emoção de Odilex.

Odilex foi confundido com Maria Bethânia...Por ela mesma. (Chico Peixoto/LeiaJá Imagens)

A própria Maria Bethânia chegou a se confundir com Odilex ao se deparar com alguns retratos do transformista em cena. “Sou amigo de Irene Veloso, que é outra irmã de Bethânia; mostrou os registros para ela, que comentou: ‘não me lembro desse show’. Aí Irene explicou, ‘não Bethânia, esse é um rapaz que faz você no Recife’ (risos). Para mim, foi muito gratificante saber disso”, comemora Odilex. Nem só de artistas, intelectuais e LGBT’s, contudo, vivia a noite transformista. “Os grandes governadores do Estado viram nossas apresentações. E a gente fazia piada com político na cara deles, era comum. Também estavam na plateia famílias comuns, os teatros eram lotados. Era um glamour, posso dizer que sou uma diva do transformismo”, orgulha-se Odilex. 

O artista frisa que não é transexual, mas um homem gay. “O transformismo pressupõe que, ao final da performance, do ritual, o indivíduo retorna à sua expressão de gênero do cotidiano. Pode ser algo reversível, diferente da transformismo é algo reversível, diferente da identidade trans”, explica o pesquisador Rodrigo Dourado. Apesar disso, a exemplo do caso de Sharlene Esse, para algumas artistas, o transformismo foi um meio de se aproximar de uma identidade mais confortável, em tempos rígidos. “Acabou sendo uma porta de entrada para uma transição definitiva”, completa Dourado.

Glamour fora do país

Durante 30 anos, Márcia Vogue fez carreira de sucesso no exterior. (Rafael Bandeira/LeiaJá Imagens)

Embora Sharlene Esse e Odilex tenham realizado turnês internacionais, suas carreiras eram baseadas no Recife. Era comum, contudo, que transformistas assinassem contratos com produtores europeus para temporadas inteiras no exterior. Após vencer um concurso de beleza aos 16 anos de idade, Márcia Vogue foi contratada por uma agência de artistas da Suíça. “Muitas pessoas tentaram chegar na Europa pela arte da transformação, mas eram homens gays e, ao chegarem lá, era mandados de volta pelo empresário. Eu já tomava hormônio desde os 14 anos de idade. O patrão queria a pessoa pronta, que só precisasse se maquiar e pentear o cabelo, não quem ainda precisasse se montar ou raspar uma barba”, lembra.

Com contrato assinado e passaporte em mãos, Márcia Vogue logo se especializou em dança do ventre, através da qual foi levada a países como Alemanha, Bélgica, Luxemburgo, Holanda, França, Espanha, Emirados Árabes Unidos, Tailândia e Irlanda. Estrela em sua arte, a transformista passou trinta anos fora do Brasil, hospedando-se em cabarés e conhecendo as mais diversas culturas. “No ano passado, decidi brincar de vestibular. Fiz a prova para o curso de serviço social da UNINABUCO, passei e voltei a morar no Recife”, conta.

Ao contrário das colegas, Márcia acredita que as estrelas do antigo transformismo foram esquecidas. “Todos os sonhos que quis, já realizei. Se morrer amanhã, morro feliz. Hoje em dia, com essa coisa de redes sociais, todo mundo é diva, porque você não vai pintar sua própria figura de maneira pejorativa. Na minha época, quem dizia que você era boa no palco era a mídia, não o Facebook”, afirma. Márcia também se sente incomoda com a abordagem dos atuais programas de TV sobre o transformismo. “Eu tenho muitas matérias guardadas: Silvio Santos, Globo e jornais impressos, a mídia tinha interesse, não tem mais. Você liga a TV ao meio dia, vê uma transformista chamando os outros de ”bicha”, “viado”, acho horrível, uma falta de respeito. Tem gente que aceita tudo pra aparecer”, lamenta.

Rumos no século XXI

Entre os anos 1986 e 2000, Odilex e Sharlene integraram o elenco do espetáculo “Salve-se quem puder”, uma colagem teatral satírica dos costumes da sociedade brasileira, que contava com grande elenco. “Mais de 25 pessoas em cena, incluindo vedetes e bailarinos. Começamos no Teatro Apollo, que só tinha capacidade para cerca de 300 pessoas e ficou pequeno, o que fez a gente se mudar para o Teatro Santa Isabel. O mais importante foi essa coisa de desmistificar que o gay era a escória, mostrar que éramos artistas levando entretenimento”, ressalta Odilex. De acordo com o transformista, uma das razões do fim das apresentações do projeto foi o encarecimento da pauta nos grandes teatros. “O Santa Isabel foi praticamente privatizado e também já não temos os patrocínios de antes”, completa Odilex.

As doces bárbaras: Odilex e Sharlene Esse contracenando com as personagens Maria Bethânia e Gal Costa. (Reprodução da internet)

Paralelamente às dificuldades financeiras dos nababescos espetáculos transformistas, se solidificava no Brasil a cultura Drag Queen, uma tendência norte-americana que invadira as boates paulistanas no início dos anos 1990. “Transformismo é um guarda-chuva maior, eu diria que a drag queen é uma transformista, no entanto, percebo nelas uma grande influência da cultura punk, no sentido de não buscarem se parecerem com mulheres, é quase uma cultura monstro. Sempre observei que, no Recife, as drags são as estranhas, americanizadas”, coloca o pesquisador Rodrigo Dourado.

Famosa por performar Vanusa e Elba Ramalho nos anos 1980, a transformista Raquel Simpson acredita que, depois dos anos 1990, com exceção a Cinderela, o público da cultura transformista tradicional caiu. “Os donos das casas noturnas foram fechando os espaços, como aconteceu com a MKB recentemente”, afirma. O caminho que Raquel encontrou para seguir na carreira artística foi focar sua atuação no ramo infantil. “Agora trabalho muito pouco como transformista, em saunas. Trabalho em espetáculos como Lelê & Linguiça, que estamos trazendo para as crianças”, acrescenta. Simpson, que ganhou até um documentário sobre sua trajetória artística (“Garota, Bem Garota”, de Marlom Meirelles), agora sonha em deixar o meio, mas garante que não se arrepende do caminho que percorreu. “Foi aquilo que a vida propôs para mim. Quando você vem ao mundo traz um carma, o meu está sendo cumprido, tenho fé em Deus”, resume.

Raquel Simpson ficou famosa por interpretar cantoras como Elba Ramalho e Vanusa. (Julio Gomes/LeiaJáImagens)

Para Odilex, o ocaso de algumas transformistas, contudo, não tem a ver com a ascensão das drags. “Quem é bom não perde espaço, estou há 40 anos na noite. Outros faleceram, não cabem mais dentro do vestido, porque engordaram ou foram procurar outras áreas. E essa invasão dos modismos, de bater cabelo-até hoje não sei como elas aguentam rodar tanto a cabeça...Perderam a essência do artista, de estudar para criar o personagem”, opina. Já Sharlene, que agora vive do trabalho de bartender em eventos particulares, atuando ocasionalmente como transformista, acredita que a vertiginosa queda do número de casas noturnas diminuiu suas possibilidades artísticas. “Hoje em dia é muito fácil você sair de casa montada. Aqui no Recife estava acontecendo um falatório entre as pessoas que estão querendo fazer a noite que as ‘véias’ não tinham mais nada que apresentar. Velhas somos nós, que fizemos a história e elas estão pegando carona”, critica Sharlene.

Se as transformistas pernambucanas já encarnavam divas estrangeiras, as drag queens passaram a trabalhar quase que integralmente com elas. Rodrigo Dourado acredita que, de fato, parte da comunidade drag queen local ignora completamente a história das primeiras transformistas. “Acho que existem duas culturas drag queen no Recife, uma mais periférica, que ainda possui conexão com as transformistas mais velhas, e outra de classe média, a Geração Ru Paul (reality show norte-americano), fluente em inglês e com recursos para se montar. Esses não querem nem saber das transformistas antigas, as referências são pessoas de fora do país. É um movimento colonizado”, explica.

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Diante desse cenário, quem continuou na noite com o transformismo acabou encontrando palco em espaços de socialização de homens gays (geralmente com mais de 40 anos), sobretudo nas saunas locais, algumas delas com estrutura para receber até 300 pessoas. “Quando se fala em sauna, tem que gente que acha que é um lugar para se fazer sexo. Tem quem queira, mas é um ambiente onde os amigos se encontram para confraternizar, ‘tomar uma’ e dar uma relaxada. A maioria das pessoas que estão nas saunas não curte o ambiente da boate”, comenta Odilex.

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