Mourão, em sua residência no Centro do Recife, relembra a época que jogou ao lado do Rei do Futebol / Foto: Chico Peixoto/LeiaJáImagens
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Na companhia de 30 gatos, o zagueiro do Santos de Pelé, Manoel da Rocha Mourão, é o morador da única casa residencial da Rua do Aragão, no Centro do Recife. Atualmente quase integralmente ocupada por empreendimentos na área de movelaria, a via já foi reduto dos judeus fugidos do nazismo europeu e teve entre seus célebres moradores a modernista Clarice Lispector, que morou na cidade durante parte de sua infância.
Comprida e conjugada, como manda a arquitetura que impera na Boa Vista, a residência de número 128 deu mais sorte do que a casa da escritora, que amarga abandono de anos. Diante dela, Mourão é registro vivo de uma era de ouro do bairro da Boa Vista, alegrando os lojistas com os relatos de façanhas como a vitória da equipe santista sobre o Barcelona pelo placar de 6x1, no Camp Nou, na Catalunha, em 1959.
Alagoano de Viçosa, Mourão morava em Maceió quando recebeu o convite para fazer um teste para a equipe profissional do América de Pernambuco. “Eu jogava no CRB, que ainda era um time amador. Um dia, chegou lá o finado Vicente, goleiro do ‘Mequinha’, atrás de jogador. Eu tinha acabado de sair do Exército, estava com negócio de vinte anos”, conta Mourão. No Recife, o zagueiro venceu o Torneio Início do campeonato estadual, atraindo a atenção dos dirigentes do poderoso Santos. “Eles tinham jogadores de zaga com uma certa idade. Lembro que quando fui fazer o teste, o português Amândio Fernandes, um dos grandes diretores do América, me perguntou como foi. Respondi: ‘tudo certo. Agora tem dois molecotes de lá que vão ser craques. Um deles se chama Durval, o outro Pelé”, relata.
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Em 1957, Mourão seria oficialmente contratado pelo Santos, assumindo rapidamente a titularidade como zagueiro. Lá, acompanharia a carreira de Pelé, de garoto ousado em seu primeiro treino no time profissional do Alvinegro da Vila até sua consagração como Rei do Futebol, após conduzir, com apenas 17 anos, a Seleção Brasileira ao primeiro título mundial, em 1958. “Pelé devia ter uns 15 anos de idade e estava começando no Santos. Passou a bola por debaixo das pernas do Elvio, que ficou indignado: ‘ô, moleque, me respeite!’. O garoto respondeu: ‘mas, Seu Élvio, o senhor abriu a perna e a única passagem que tinha era por aí’”, gargalha ao lembrar dos primeiros treinos do craque.
Outros nomes de peso como Coutinho, Zito, Pavão e Jair da Rosa Pinto também estiveram ao lado de Mourão em conquistas importantes como o Torneio Rio-São Paulo e a Taça Teresa Herrera, na Espanha. “Chegamos no Camp Nou e ganhamos do Barcelona por seis a um. A gente saia jogando pela Europa, o Santos era um timaço e muito querido”, comenta o zagueiro.
Também foi disputando a Taça Teresa Herrera que Mourão fez uma das melhores partidas de sua carreira. Em 1959, o zagueiro foi ovacionado pela imprensa por anular as investidas de ninguém menos do que Garrincha, em partida contra o Botafogo. Modesto, ele revela um pouco de sua estratégia para parar um dos maiores atacantes de todos os tempos. “Ele vinha com a bola de um lado para o outro, parecendo um carangueijo, parava e, de repente, arrancava. Eu tinha mais ou menos a mesma idade que o Mané e muita vitalidade. Percebi uma dificuldade dele de sair pelo lado esquerdo e, como sou canhoto, impedia muitas passagens”, comemora. A euforia em torno do defensor foi tão grande que o radialista Fiori Gigliotti desceu da área reservada para cumprimentá-lo pessoalmente. “Ele me sacudia e gritava: ‘você parou o Mané, você parou o Mané!’. Acontece, respondi. Se não parar, ele bagunça”, completa.
Após as excursões pela Europa, Mourão voltaria ao Recife, contratado pelo Sport. O zagueiro teve ainda passagens ainda por Grêmio e News Old Boys, da Argentina, onde encerraria a carreira, em suas palavras, “melancolicamente”. Aos 84 anos de idade, o alagoano não se arrepende de ter deixado a promissora carreira no futebol aos 29, para cuidar da mãe doente. “Após um jogo contra os Estudiantes de La Plata, fui expulso de campo, suspenso e voltei para o Brasil com o objetivo de visitá-la. Ela me pediu que ficasse, estava precisando de cuidados”, explica.
Mourão serve ração para os gatos de rua que adotou provisoriamente. (Chico Peixoto/LeiaJáImagens)
Casa no Centro do Recife
Após deixar o futebol, Mourão investiu seus rendimentos em uma transportadora, em que é sócio do irmão. Com a outra parte do dinheiro, resolveu comprar uma casa no Centro do Recife, pelo qual se encantou durante a estadia anterior na cidade. Memórias de tempos dourados da Boa Vista, como a da visita de Pelé e do elenco santista na casa onde ainda mora após sua aposentadoria do futebol, também reforçam sua identificação com o bairro. “Aí na esquina, onde hoje há apenas um prédio desativado, já existiu o Hotel São Domingos, que recebeu praticamente todas as delegações de futebol que vieram ao Recife. Certa vez, o time do Santos ficou hospedado nele e resolveu procurar onde eu morava”, diverte-se.
Pelé e companhia, escaparam do hotel em busca do endereço do amigo. “Na molecagem deles, encontraram a casa e pediram para minha mãe preparar um almoço, mas eu havia saído. Fui ao hotel encontrá-los, uma grande confraternização”, emociona-se.
Mourão diante do antigo Hotel São Domingos, cujo prédio está desativado há anos. (Chico Peixoto/LeiaJáImagens)
Embora nunca tenha se casado ou tido filhos, o zagueiro não pode reclamar de falta de companhia. “Moro com três irmãs e trinta gatos. Começou a aparecer uma enxurrada deles. Minha cabeça não concorda com você pegar um bichinho desse e jogar longe”, afirma. Assim, inúmeros recipientes de água e ração foram espalhadas por sala de estar, quintal e corredor principal, mas a grande quantidade de animais torna a higienização da casa extremamente cansativa. “Quem tiver interesse em adotar algum deles, é só vir aqui e escolher quantos quiser, sem pagar nada. Eles estão alimentados e bonitinhos”, apela.