Em março deste ano, a cena literária pernambucana ganhou mais uma produção independente. ‘Furtiva’, escrito pela jovem poeta Júlia Bione, de 16 anos, traz à superfície o íntimo da sua alma. A obra conta com 19 poesias que discorrem essencialmente sobre o amor. O livro faz parte do projeto Mostra de Publicações Independentes (MOPI), uma iniciativa da editora pernambucana Castanha Mecânica.
As poesias sem rimas, escritas em sua maioria dentro dos ônibus que circulam na Região Metropolitana do Recife, serviram como válvula de escape para Bione, que usou todo seu talento para se desprender das amarras e convenções sociais e de expor sua homossexualidade à família. A necessidade de ser vista, ouvida e de se fazer existente foi o motor necessário para que a obra tomasse vida.
##RECOMENDA##
“‘Furtiva’ foi um pedido de socorro e depois que ele foi pra rua eu me senti livre, eu falei ‘Eu estou livre para ser o que eu sou, para ser quem eu sou’”, revelou a jovem escritora em entrevista ao LeiaJá.
Criada por uma base formada por mulheres, Bione foi instruída desde cedo sobre o suposto ‘lugar de mulher’. Submissão e machismo eram vistos como necessários. No entanto, isso nunca entrou em sua cabeça: conformismo não era uma opção para a menina.
Aos 11 anos, inspirada em Racionais MC's, Bione escreveu seu primeiro poema. Assim como os do livro, ele também falava de amor.
Poesia Marginal e Slam
Com 13 anos, Bione ainda era Júlia, mas ela já sabia o que queria ser e resolveu se arriscar em uma roda de rima próxima de sua casa, no Prado, Zona Oeste do Recife. Antes de conseguir batalhar, foi impedida de disputar pelo menos duas vezes, simplesmente pelo fato de ser mulher. Na primeira vez, ela se deparou com a afirmação ‘Menina não batalha. A gente pega muito pesado e não queremos pegar pesado com menina’. Indignada, a adolescente voltou para casa e continuou a escrever, meses depois retornou na roda e aderiu o nome de ‘Bione’, com o intuito de confundir os realizadores sobre seu gênero, mas a tentativa foi em vão.
Frustrada, em decorrência da proibição de fazer o que foi destinada, a adolescente passou por problemas psicológicos durante um período. “Eu pensava: ‘Eu não tô conseguindo batalhar aqui, não tô conseguindo fazer o que eu gosto do lado de casa, como é que vou fazer pra o mundo inteiro?’”, revela.
No entanto, Bione não estava satisfeita com a proibição e voltou à roda uma terceira vez, quando finalmente conseguiu batalhar. A poeta conta que a primeira vez que conseguiu participar foi quando sentiu mais medo. “A primeira vez que eu pensei em desistir foi a primeira vez que eu quis fazer”, diz. Como a batalha era de rap (com improviso) a adolescente não se saiu bem, mas já se sentiu uma vitoriosa por ter conseguido fazer parte da roda.
Um tempo depois, Bione conheceu o ‘Slam das Minas’, em que as poetas recitam poesias autorais e foi ali que encontrou o seu lugar. Produzindo poesias marginais sobre resistência e revolução, ela trata de problemas sociais, como o racismo, o machismo e a homofobia. A jovem poeta conta que no início só queria falar sobre o que estava sentindo, até perceber que outras pessoas também sentiam a mesma coisa e encontravam nela uma maneira de ter voz na sociedade.
[@#video#@]
Em Pernambuco, existem três grupos de Slam: O Slam PE, o Slam Caruaru e o Slam das Minas, do qual Bione faz parte. Além das rodas de batalhas individuais em cada grupo, os slams também competem entre si para garantir representantes do Estado no Slam BR - Campeonato Brasileiro de Poesia Falada, que acontece anualmente em São Paulo. O evento reúne ‘slammers’ de todo o Brasil e o vencedor representa o país na Copa do Mundo de Slam, disputada em Paris.
Em 2018, após vencer as batalhas em Pernambuco, Bione foi a São Paulo representando e ficou em 3° lugar. Com 15 anos, ela era a poeta mais nova da competição. “Eu fiquei muito assustada, pois no ano anterior quem tinha ganho era Pernambuco, com Bell Puã. Eu era a sucessora, em busca do bi”, conta.
Sobre políticas públicas de incentivo à cultura, Bione fala que é escassa e seletiva, um assunto complicado de falar. “Quando a gente fala de Slam e batalhas de rap, políticas públicas é um assunto que não se encaixa muito, elas às vezes impedem de que a gente vá pra rua, que a gente fale. Vai além de colocar um palco e colocar os meninos pra rimar, tem relação com o respeito. Todo mundo respeita uma roda de poesia na rua da Aurora, porque é na rua da Aurora, mas políticas públicas dentro da favela não existe”, enfatiza. Bione sabe por quem fala e para quem fala. Confira uma de suas poesias: