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A internet chegou ao Brasil no ano de 1988 e sua exploração comercial teve início a partir de 1994, com um projeto piloto da empresa Embratel, fato transformador na vida das gerações que vivenciaram tal transformação ou nasceram depois dela.

As mudanças que ocorreram com a conectividade abrangem todas as áreas da vida cotidiana e a educação não ficaria de fora: hoje é quase impensável, para a geração de nativos digitais, fazer um trabalho manualmente ou pesquisar sem abrir sites de busca on-line, bem como educação a distância se intensificou devido à Covid-19.

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No entanto, muito antes da internet ser sequer criada, as pessoas estudavam e ensinavam com o que tinham  disposição: recursos offline. O LeiaJá ouviu estudantes e professores para falar do processo de ensino e aprendizado antes da internet surgir e explicar como se desenvolveram as tecnologias aplicadas à educação. 

Em vez de Google, Barsa

Livros, enciclopédias, jornais, revistas, radiolas, toca-fitas, computadores sem monitor e até mesmo equipamentos cujo nome deve ser desconhecido e soar estranho para os mais jovens, como por exemplo “mimeógrafo”, faziam parte do cotidiano de algumas pessoas que foram estudantes em tempos offline.

O ex-bancário e administrador Edmar Bezerra Torres tem 59 anos e foi aluno da Escola Estadual Cristo Rei, na cidade de Pesqueira, Agreste de Pernambuco, a 214,3 km do Recife, e relata estudar pelo caderno com anotações feitas nas aulas. “Naquela época, os livros serviam para vários anos, quando a gente ia passando de ano, ficava para os mais novos. O professor escrevia no quadro negro com giz branco e a gente estudava pelos cadernos”, relembra.

Filho de um operário da antiga fábrica 'Peixe' e de uma dona de casa, Edmar conta que a falta de recursos financeiros dificultava a compra de materiais de leitura e pesquisa. “Na biblioteca eu sempre lia literatura brasileira: Machado, Érico Veríssimo, Aluízio de Azevedo, Casimiro de Abreu. A pesquisa era através de enciclopédia, revistas. A Barsa era a mais famosa. Existia também uma chamada Tesouro da Juventude, era bem diversificada. Existia uma revista chamada Seleções, que era bem completa, a gente lia muito. Normalmente o trabalho era em equipe, a gente sempre ia na casa dos colegas fazer o trabalho. Eram manuais, na munheca”, acrescenta Edmar. 

Um cenário bem distinto foi percebido na chegada ao ensino superior, em uma época que, segundo o ex-bancário, a internet já existia, mas ainda não era difundida como está atualmente. “Era parecido com hoje, pois não faz tanto tempo que cursei, mas não tinha esses recursos da internet não. Em 1980, quando entrei no banco [para trabalhar], cada conta-corrente era uma ficha gráfica, a gente lançava os débitos e créditos, os lançamentos contábeis eram feitos na máquina de datilografia e contratos feitos à mão. E agora com a pandemia, as aulas são virtuais, videoconferência, live, tudo mudou muito”, conta.

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Zilma Barros de Almeida e Silva tem 60 anos, estudou o “científico” (uma das modalidades do antigo colegial, equivalente ao ensino médio) no Ginásio Pernambucano, é bancária aposentada, foi engenheira química formada pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap), onde ingressou em 1977 aos 17 anos. Em sua época de colégio, ela conta que as aulas eram tradicionais e os recursos extras disponíveis eram, no máximo, bibliotecas, laboratórios e raras vezes um projetor. 

“Basicamente eram o professor e quadro negro. Professor ensinava sem grandes tecnologias porque não tinha. Tinha uma biblioteca para quem não tivesse livros, e pessoas da parte de biologia trabalhavam em uma biblioteca de pesquisa, coisas que a gente aprendia no laboratório. Os trabalhos eram apresentados em cartolinas", descreve.

Os estudos para provas costumavam se basear tanto nos cadernos quanto em livros indicados pelos professores. O custo deles era muito alto e, impossibilitada de comprar, Zilma recorria tanto à biblioteca do colégio quanto a outras que ficavam perto dele, como o Gabinete Português de Leitura da Rua do Imperador e a Biblioteca Pública do Estado de Pernambuco, próxima ao Parque 13 de Maio, ambas na região central do Recife, onde ela estudava e também buscava material para pesquisar e fazer seus trabalhos.

“Era enciclopédia a fonte de pesquisa mais apurada, a Barsa era bem famosa na época, a gente sempre buscava estudar e pesquisar na Barsa. Também jornais, pesquisas, artigos, teses. Todo trabalho que a gente fazia o professor queria saber a fonte, tinha que ter um embasamento, o Ginásio sempre foi um colégio de referência”, diz Zilma. 

A chegada de novas formas de tecnologia, com o passar do tempo, trouxe a necessidade de se adaptar ao novos modelos de ensino e ferramentas, quando Zilma chegou ao ensino superior. As dificuldades, adversidades e necessidade de se adaptar ao desconhecido, no entanto, não a impediram de seguir estudando e realizar sonhos. 

“A tecnologia foi entrando e eu tendo que aprender as coisas. Na UPE teve prova no computador e eu não sabia nem mexer. Teve cadeira no computador e eu tive que aprender. Foram muitos desafios. Uma coisa importante é ter a mente aberta, não ter medo, meter a cara e ir. Sempre gostei de desafio, dá um frio na minha barriga, mas eu sempre gostei de desafio, conhecer o novo. Na universidade foram muitas coisas que eu não sabia e tive que aprender. Até hoje é assim. Quando a pessoa se propõe a uma coisa e tem sonhos, tem que ir atrás. Eu acordei de 4 horas da manhã, dei conta de uma filha, não foi fácil. Tive que abrir mão de muitas coisas, não foi fácil. Você não pode ter tudo, tem que ter paciência. Você vai conseguindo, mas com esforço”, conta Zilma. 

Foto: Edivane Maria Tôrres/Cortesia

O que a tecnologia muda no ensino? 

A professora de língua portuguesa Maria de Fátima de Oliveira tem 54 anos, dos quais 27 foram dedicados à docência de alunos da educação básica no ensino público, e atualmente leciona na Escola Estadual Pintor Lauro Villares, localizada na Comunidade de Roda de Fogo, no bairro de Torrões, Zona Oeste do Recife. No início de sua carreira, em 1993, os recursos disponíveis eram limitados, em termos de tecnologia, e Fátima lançava mão de outras estratégias para dar aulas mais diversificadas às suas turmas. 

“No início, eram os livros impressos, quadro verde com giz branco. Dicionários, gibis que eu levava de casa e recortes de jornais com notícias, reportagens, anúncios publicitários, tirinhas, charges e cartuns dos jornais que eu tinha assinatura. Boa parte destes recursos era providenciada por mim. Também eu costumava levar CDs para as escolas, quando havia onde tocar. Acho que a partir de 2007, eu fui fazendo projetos iniciados com canções e filmes, para sensibilizar os estudantes sobre os projetos que íamos trabalhar no bimestre”, recorda a professora. 

A elaboração das provas também era mais difícil pela falta de recursos tecnológicos, e principalmente financeiros das escolas, uma vez que não adianta que a tecnologia exista se ela não estiver ao alcance dos alunos e professores. Por exemplo, em um dos relatos para esta reportagem, Fátima conta que até o ano de 2007 uma das escolas onde trabalhava utilizava equipamentos de cópia e impressão que eram considerados arcaicos para a época e dificultavam o trabalho.

“Minhas provas eram feitas no mimeógrafo [uma espécie de ‘avô da impressora’], colocava o álcool e muitas vezes manchava as provas, ficavam ou muito claras ou borradas. Só a partir de 2007 a escola onde eu trabalhava comprou uma copiadora e passamos a fazer cópias de provas e outros gêneros textuais, com a verba da escola”, relembra ela. 

Fátima costumava ir a editoras em busca de dicionários, livros do professor e paradidáticos para auxiliar na preparação de suas aulas em uma época que ainda não existia a política de distribuição gratuita de livros didáticos do Ministério da Educação e o custo deles, assim como hoje, era muito alto, principalmente para alunos e professores de escolas da rede pública de ensino. “A saída era escrever no quadro ou eu fazia apostilas resumidas com os assuntos mais importantes e exercícios e fazia cópia com um dinheiro arrecadado dos estudantes, quando havia esta solicitação da parte deles”, descreve a educadora.

Avaliar o conteúdo produzido pelos estudantes nos trabalhos de pesquisa escolar era, também, uma dificuldade em um cenário em que não existia o apoio de tecnologias como computadores e internet e o acesso a livros e enciclopédias também era dificultado pelo custo. Além disso, problemas comuns no ensino público brasileiro, como a defasagem de aprendizado e letramento, segundo Fátima, também dificultavam esse processo. 

“Eu mesmo não tendo feito o antigo magistério, e não ter aprendido a alfabetizar pessoas, tive que me virar para a fazer o letramento de estudantes no ensino médio! Eu perguntava às amigas e colegas de trabalho que trabalhavam no ensino fundamental, turmas iniciais, antigo primário, o que elas faziam e foi quando comecei a usar os meus gibis da Turma da Mônica. Boa parte das pesquisas e trabalhos que me eram entregues, era de meras cópias mal feitas de enciclopédias ou de livros que eles e elas conseguiam com muita dificuldade. Livro em casa de estudante de escola pública é um artigo de luxo! Os que eles têm são os livros didáticos, que depois da publicação da nova Lei de Diretrizes e Bases (LDB) em 1996, foi aprovado o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (FUNDEF), uma verba que garantia esta distribuição de livros didáticos gratuitos, mas que deveriam ser usados por três anos. Ou seja, no final do ano eles devem ser devolvidos às escolas”, relatou ela. 

Questionada sobre as mudanças trazidas pela tecnologia e conectividade que a internet proporciona, Fátima elogiou as facilidades que as ferramentas on-line trazem para professores e estudantes, mas apontou, outra vez, a questão da falta de acesso de grande parte da população a tais bens tecnológicos. “Estas novas ferramentas tecnológicas abrem muitas possibilidades. O Google Classroom é fantástico! Teremos a possibilidade de usar o Google meet, mas até agora, poucos estudantes conseguiram se cadastrar no e-mail educacional que a Secretaria de Educação criou o para eles. Eu também ainda estou aprendendo a usar. Começamos a usar, a partir de abril de 2020, um grupo de zap por turma para interagir com os estudantes e eles enviavam as respostas das atividades por um e-mail criado também pela escola para cada turma, mas poucos acessam o WhatsApp, na hora em que estamos dando a aula”, pontua a professora.

Luciano Meira tem 28 anos de experiência como docente, carreira que iniciou com formação em pedagogia e seguiu com mestrado em psicologia cognitiva e doutorado em educação matemática.Ele, atualmente, é professor adjunto do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), nas áreas de ciências da aprendizagem e psicologia cognitiva.

Ao longo de sua carreira como docente e pesquisador, Luciano não apenas presenciou o surgimento e desenvolvimento da aplicação da tecnologia em salas de aula, como também participou desse processo. “Os primeiros projetos de tecnologia educacional datam do começo da década de 80. Naquele momento, projetos como o Educom que rodavam em várias universidades, eram projetos de instaurar na universidade pesquisas e reflexão sobre os usos de computação e computadores no ensino universitário e ensino básico. Eu fazia mestrado e fui bolsista de Educom, em cerca de 1985. Foi um dos primeiros projetos sistemáticos organizados nacionalmente para implementar pesquisas direcionadas à tecnologia educacional no país. Não era o único, mas um dos mais relevantes”, conta o professor.

O início da inserção de computadores e redes educacionais no ensino básico, segundo Luciano, foi nos anos 90, em uma época que as secretarias de educação começavam a prestar atenção a essa tecnologia que no período era nova e ganhava projeção internacional. “Mas se hoje ainda temos muitas dificuldades de conectividade com a banda larga nas escolas de ensino público, imagine anos 90. Eram computadores, não era internet. Passamos num projeto para organizar os chamados laboratórios de informática. Era tudo muito nascente, a maioria das escolas usava os computadores para texto, em vez do papel, usavam o Word. No final dos anos 90, já tinha os cds multimídia com jogos para instalar, era o acesso para o mundo imagético para além dos editores de texto, mas sempre em torno às visitas ao laboratório de informática”, comenta ele, lembrando também que na época era comum a figura do professor de informática orientando os alunos, sem interação direta entre os professores da sala de aula e os laboratórios de informática, cenário que só mudou quando as escolas passaram a ter internet.

Falando sobre um passado mais distante, vale lembrar que computadores e internet não foram as únicas formas de tecnologia que se aliaram aos professores e alunos no processo de ensino e aprendizagem. “A TV e o videocassete eram a sensação dos anos 70 e ainda no começo dos anos 80, o telecurso. Descobriu-se que a TV, filmes, vídeos explicativos, poderiam apoiar as aulas dos professores porque podiam ilustrar situações difíceis de representar com imagens estáticas dos livros ou apenas a oralidade. TVs e videocassetes estavam presentes em salas de aula que podiam, porque eram equipamentos caros. Era isso que era tecnologicamente mais avançado antes mesmo dos computadores surgirem”, lembra o professor. 

Além disso, existiram outros equipamentos que eram utilizados para visualizar imagens na parede das salas de aula coletivamente, através de filmes e feixes de luz que projetavam o que estivesse no filme: os retroprojetores, que ganharam versões high tech com a chegada dos computadores. O professor Luciano fez questão de lembrar, no entanto, que os equipamentos mais antigos não eram ruins quando bem utilizados. 

“No final dos anos 90, surgiu a impressora de slides, a gente podia pegar um cd-rom, imprimir no slide e levar para sala de aula. Essas coisas não eram ruins nem boas, elas dependiam de como eram usadas. Pegar instrumentos e criar uma abordagem inovadora, prática didática que promova uma prática didática. Precisa criar experiências, os equipamentos não criam por eles mesmos”, opina o docente.

Questionado sobre a maneira como o surgimento e aperfeiçoamento da tecnologia e das conexões entre equipamentos eletrônicos impactaram e seguem modificando a educação no que diz respeito ao trabalho e formação profissional dos professores brasileiros, Luciano afirmou que “os processos de adaptação dos sistemas de ensino, em geral, são mais lentos que a sociedade tomada mais largamente” e isso tem diversas razões para acontecer".

“Uma [das razões] é que as escolas estão comprometidas com currículos e você não os muda do dia para a noite, eles têm que ser repensados. A Base Nacional Curricular Comum (BNCC) é uma forma de rever os currículos, levou quatro anos para ser aprovada e foi abandonada por esse governo imbecil. Não é que o professor é resistente, é que a nação não se organizou suficientemente para organizar o sistema de ensino. A segunda é que os artefatos digitais não são pensados para a escola. E o terceiro [motivo] é que sistemas de ensino são complexos, de incertezas e atores demais envolvidos. Tem os estudantes, professores, suas famílias, os gestores, ordenadores de despesa, é extremamente complexo”, argumenta.

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