Em 1850, Pernambuco e, principalmente, o Recife foram devastados pela febre amarela. Há quem afirme que a moléstia foi trazida ao estado por um marinheiro chamado Mário Icard, vindo já doente a bordo do brigue Alcyon, da Bahia, mas na época ninguém sabia exatamente como ocorria a transmissão. Com a doença se espalhando rapidamente, e entre todas as classes sociais, o Estado foi urgido a agir. Assim, o Conselho Geral de Salubridade Pública, atuando no governo de Francisco do Rego Barros, ordenou expurgos, quarentenas e o recolhimento de doentes a um hospital provisório na Ilha do Nogueira, atual bairro de Brasília Teimosa, zona sul da cidade e que, na época, não passava de um coqueiral pontilhado por choupanas de pescadores.
Com gente adoecendo e morrendo aos montes, passaram a se organizar Procissões de Penitência. É que o povo, desacreditado da ciência e dos médicos, começou a ir às ruas pedir a Deus e aos santos que fossem perdoados de faltas diversas, umas confessadas, outras tantas secretas, além de várias outras que ninguém sabia definir bem quais seriam, ainda mais que morriam da mesma forma adultos e crianças, justos e ímpios, ricos e pobres, nobres e plebeus, culpados e inocentes. Assim, tomavam as vias públicas os flagelados, homens arrastando pesadas cruzes e grossas correntes, aos prantos e pedindo aos céus pelo livramento daquela praga.
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Da Revista do Nordeste, 1945:
“O desfile realizou-se à meia-noite em ponto. Hora morta, hora pressaga, hora de súplicas pelas almas penadas na Terra. E, para aumentar o horror destes atos de mistério, em que os indivíduos se imprecavam mutuamente e mutuamente se torturavam, as irmandades avisavam que tais desfiles não podiam ser acompanhados de mulheres e crianças e, ainda mais, não deviam ser observados das varandas, como ‘infeliz e abusivamente se tem praticado’. E a febre ia devastando sem cessar. Até o Presidente da Província fora atacado. Até o Bispo Diocesano entrara para o rol dos amarelentos”.
Havia quem se aproveitasse do desespero das pessoas para comercializar imagens de santos e outros objetos, “advogados da peste”, como se dizia, que supostamente protegiam os crentes da doença. A epidemia ainda provocou uma curiosa guerra entre os curandeiros do Recife, com homeopatas e alopatas reivindicando para si os restabelecimentos que iam acontecendo. E havia até mesmo figuras públicas locais servindo como uma espécie de garotos-propaganda de um ou outro tratamento, garantindo sua eficácia. Uns defendiam tinturas milagrosas, outros vomitórios e clisteres. Este último procedimento era também conhecido como “chá de bico”, “cristel” ou “enema”.
Era uma espécie de lavagem intestinal caseira, receitada em casos de prisões de ventre persistentes, quando chás purgativos e outros laxantes não davam jeito. Fazia-se uso de um aparelho comum – ainda que, por motivos óbvios, pouco comentado - em algumas casas oitocentistas e mesmo de início do século XX. Consistia geralmente em um conjunto formado por penico, mangueira de borracha e um tipo de torneira. De uma ponta entrava a água, enquanto a outra era introduzida no reto do paciente, e assim se procedia à lavagem interna do enfermo. Para se curar, de constipação ou mais improvavelmente, de febre amarela, valia tudo mesmo.
O surto de febre amarela desorganizou a vida dos recifenses, em praticamente todas as suas esferas: as aulas foram suspensas e as escolas fecharam as portas. O tradicional desfile comemorando o aniversário da constituição do Império do Brasil precisou ser adiado. As igrejas já não tinham mais espaço para tantos mortos. E os jornais se enchiam de notícias de falecimento, notas de pesar ou sonetos fúnebres, estes não apenas escritos, mas também recitados às lágrimas junto às sepulturas que eram abertas e fechadas diariamente.
Foi aí, aliás, que o Estado, aliado às noções mais modernas e científicas de sanitarismo, venceu não só a poderosa Igreja, mas a indignação popular também. Passava-se enfim a proibir os sepultamentos dentro dos templos católicos ou qualquer outro, sob os protestos do povo, que não aceitava que seus mortos fossem enterrados fora da terra consagrada das igrejas. Apesar da gritaria, autorizou-se a construção do Cemitério de Santo Amaro, ao custo de 10 contos de réis à Câmara Municipal do Recife, com projeto do engenheiro José Mamede Alves Ferreira. O terreno foi abençoado em 25 de março de 1850 e, ao fim das obras no ano seguinte, era entregue à população, sob a égide do Senhor Bom Jesus da Redenção. As medidas ajudaram a debelar os novos casos, e a doença, aos poucos e a custo de muito sofrimento, foi afinal desaparecendo do Recife e do resto da província.
Assim, o surto de 1850 transformou a sociedade pernambucana, forçando medidas sanitárias que interrompiam o cotidiano e testavam a fé das pessoas, afetando até a cultura funerária que se praticava até então. E deixou – ou deveria ter deixado – lições preciosas acerca do papel do Estado na manutenção da saúde pública e da importância da ciência no enfrentamento de epidemias, em oposição a crendices e tratamentos infundados. Hoje, em tempos de covid-19 e exatos 170 anos desde que a febre amarela arrasou o Recife, esses ensinamentos precisam urgentemente ser postos em prática.
Por Frederico Toscano
Mestre em História Social do Nordeste pela UFPE, doutor em História Social pela USP
Especial para o LeiaJá