Memórias são ferramentas para que o amanhã não seja, simplesmente, uma versão corrompida do hoje e este, por sua vez, uma variação nonsense do ontem. A vida é contínua porém finita, assim as pessoas, suas memórias e os instrumentos que as despertam. Conservá-los - pessoas, memórias, instrumentos… - pode custar fortunas, ou partir para níveis em que o capital é apenas o primeiro empecilho à resistência.
Em “Aquarius”, Sônia Braga é Clara, que resiste a um câncer, à perda do marido, à distância dos filhos, ao passar dos anos. Conserva amigos, parentes, discos, livros, quadros, essência. No passado e presente, vive no prédio que dá nome ao filme. Nem todos, entretanto, estão interessados na conservação do Aquarius. Na verdade, só Clara se mantém como moradora do local, enfrentando as ardilosas estratégias da construtora que, após comprar os apartamentos de todos os demais inquilinos, vê em Clara a resistência solitária à construção do “Novo Aquarius” e, assim, à derribada do “velho”.
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Kléber Mendonça Filho novamente mira nas agruras do desenvolvimento urbano, desigual e desumano, enquanto sua câmera foca em primeiro plano uma personagem universal e sua vicissitudes. Em tela, Clara é a locomotiva que move toda a narrativa. A tensão é deflagrada por sua posição ante os atentados ao maior patrimônio material de sua memória. Suas reações não são previsíveis. Seus embates com Diego (Humberto Carrão, surpreendentemente bem em cena), pupilo da construtora, carregados de ideologia, são apenas reflexos do chamado à resistência que lhe salta a pele. Do vociferar às lágrimas, dos olhares suspeitos aos gemidos de tesão, Sônia Braga enche a tela de um talento embasbacante. Isso sob o olhar sensível de Kléber, que fotografa a atriz com farto deslumbre, transposto nas imagens por Pedro Sotero e Fabricio Tadeu.
E se em “O Som ao Redor” os fotógrafos exalaram o acinzentado da cidade empoeirada pelas máculas do passado, neste os mergulhos são mais profundos, principalmente no azul que, de antemão, toma de assalto os olhos do público no próprio Aquarius. O prédio também revela o excelente trabalho de direção de arte no longa. O apartamento de Clara é projetado em duas épocas diferentes e a sutileza e precisão na passagem do tempo acontece justo pela verossimilhança dos cenários construídos e da acuidade na representação da personagem: que objetos específicos ainda guarda, do passado? Como se veste depois de tudo o que viveu? Quais cicatrizes carrega?
Grande parte das demais peças do elenco que orbitam em torno de Sônia, em linhas gerais, representam esteriótipos e tem funções de escada para a personagem. Alguns são extremamente acessórios, como Roberval (Irandhir Santos), o salva-vidas, e o jornalista Geraldo Bonfim (Fernando Teixeira). Encantadora, porém, mostra-se a relação entre Clara o sobrinho Tomás (Pedro Queiroz). Mais próximo a ela do que seus próprios filhos, Tomás ativa as memórias da tia com seu interesse no que ela viveu, ouviu, ouve e produz. Julia (Julia Berna) parece ser uma exata mescla entre os dois personagens e, turista do Rio de férias em Recife, surge como um espectador desavisado, encantado e consternado com o que vê e ciente de que o passado guarda o sentido de quem se é no presente.
O roteiro de Kléber é sinônimo de como se comporta o olhar de sua câmera. Constantemente viva, sejam em planos que se encerram ou começam em zoom, movimentos laterais ou planos aéreos, a imagem em Aquarius estuda a personagem ou a desenvolve a partir do ambiente - há muitos plongées no filme, mergulhos profundos nos cenários e situações. As diferentes facetas de Recife também invadem a tela na captura das peculiaridades de cada novo local apresentado (Brasília Teimosa, Pina, Boa Viagem são apenas alguns destes). Assim, a narrativa se descola da personagem de Clara ao passo em que ela se afasta de quaisquer padrões impostos, ou lugares comuns, para crescer como voz que “clama no deserto” (ou no/por Aquarius, metáfora de toda uma nação), política, denunciativa, voraz.
E se o filme é do diretor de “O Som ao Redor”, mais uma vez este garante um trabalho especial à trilha sonora e aos efeitos de som do filme. As músicas são responsáveis ainda por embalar ou preludiar os estados de humor da protagonista. Entre estas estão composições do Gilberto Gil, Roberto Carlos, Ave Sangria, Alcione, Queen, dentre (muitas e boas) outras.
“Aquarius” consegue ser, ao mesmo tempo, seco e sensível, como um bom representante do neorrealismo italiano, com elementos discursivos e imagéticos do cinema da nouvelle vague. E se há passagens do roteiro nas quais os diálogos parecem se alongar demais, não há nada “errado” em tela, muito pelo contrário, sobrepõe-se uma rica leitura (absurda de tão real) de um povo que, lentamente, atenta contra a memória de si mesmo e estranha quem renega tal dissabor. Mas Kléber Mendonça Filho resiste. Clara resiste. Sônia Braga resiste. Nós resistimos.
Nota: 4 / 5